No passado dia 22 de Fevereiro, realizou-se no Porto, na Cooperativa Árvore, um debate sobre o tema em epígrafe. Sala cheia, com um público atento e muita gente em pé.
Mas não é estranho reflectir sobre Deus no século XXI? Não é Deus sempre o mesmo?
Não há dúvida de que Deus é sempre o mesmo, mas ele transforma-se no encontro com os homens e as mulheres, como eles e elas se transformam nos encontros e desencontros com Deus.
Há mais de um século, Nietzsche proclamou a morte de Deus. De qualquer forma, dir-se-á que estamos a assistir ao regresso do religioso. Mas a pergunta é: que religiosidade é essa que está de regresso? Não é a religiosidade burguesa, aquela religiosidade que legitima o êxito e o sucesso? A religiosidade que dá consolação? (Mas será que o Deus verdadeiro consola? Pelo contrário, não é preciso gritar a Deus por Deus: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?").
A religiosidade está de volta. Mas qual religiosidade? A do consumo? Mais um artigo de consumo? Mais um prazer, numa sociedade consumista e hedonista? Numa palavra, o religioso que está de regresso não é o da religião sem Deus? Uma religiosidade difusa, opiácea, confortável, frequentemente de adivinhos e de bruxos..., mas uma religião sem Deus?
Mas, se Deus morreu, não morreu também o Homem, como já Nietzsche antevia? De facto, o Homem não é Homem precisamente porque referido ao Infinito, a Deus, pelo menos como questão? Então não é hoje a religiosidade que está de volta a da banalidade rasante?
Porque Deus morreu, já não há esperança para lá da morte, e a nossa sociedade é a primeira na História que fez da morte tabu: uma sociedade poderosíssima nos meios, mas sem finalidade humana, teve de fazer da morte tabu, o último tabu... Espanta-me a resignação dos europeus, mesmo cristãos e católicos: resignados com o nada após a morte. Morremos e acabamos. Caminha-se do nada para o nada... É o niilismo, na errância sem fim.
E assim se esquece o Homem, reduzido agora ao último resto de natureza ainda não manipulado, mas que há-de sê-lo com a engenharia genética, para que se veja que não é senão um produto biotécnico.
Mas então onde está o Homem, onde está a memória dos mortos, onde está concretamente a memória das vítimas inocentes que clamam por justiça, como pergunta o teólogo J. Baptist Metz?
O que se passa com Deus? O que se passa com o Homem? Vivemos em tempos de deserto e de penúria, como preveniram Hölderlin e Heidegger. Este deixou em testamento: "Só um Deus nos pode salvar", e o ateu religioso E. Bloch queixava-se de um tempo com subprodução de transcendência...
Mas não será o modo de presença de Deus hoje precisamente o da ausência? Não está Deus presente enquanto ausente? Ai! a dor que isso causa...
Quando as religiões vão ao seu núcleo de profundidade de abismo sem fim, sabem que estão referidas a Deus enquanto o Mistério, o Sagrado.
As religiões todas têm como referente último o Mistério, que nenhuma domina. Por isso, não há lugar para o fundamentalismo. Pelo contrário, as religiões devem dialogar para melhor tentarem dizer, na gaguez quase muda, o Mistério que a todas convoca e a todas transcende.
Quando sabem o que isso quer dizer, as religiões são perspectivas sobre o Mistério - daí, o perspectivismo, que não é relativismo --, e estão referidas ao Mistério que salva. As religiões são o lugar da resposta para a pergunta: o quê ou quem dá salvação? O fio hermenêutico de todas é o da liberdade e, portanto, contra toda a opressão.
E aqui estão as duas vertentes da religião boa: a mística - paixão por Deus - e a ética: compaixão por todos. A mística, sem ética, é ilusória, como a ética, sem religião, no limite, corre o risco de ficar cega.
Não há, pois, lugar nem para o fundamentalismo nem para o choque de religiões. Aliás, o que, antes de mais, congrega a todos é a humanidade, que leva consigo a oração-pergunta por Deus. Nessa oração-pergunta é que se fundamenta a dignidade inalienável do ser Homem.
Anselmo Borges, no DN