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domingo, 1 de julho de 2018

Diário de Notícias aposta em novos desafios



Os que me seguem neste espaço sabem que já tenho o Diário de Notícias (por extenso) na mão. Encomendei-o na véspera, não fosse o diabo tecê-las. E quando cheguei ao quiosque lá estava o jornal guardado, escondido dos olhares dos clientes. 
Folheei-o com avidez para apenas em casa o saborear com calma. E comecei, logicamente, pelo editorial (sem essa indicação, porém) do diretor Ferreira Fernandes. Bem no seu estilo, que aprecio. 
Cada parágrafo, mais ou menos, poderia servir de mote a esta minha primeira referência ao mais antigo quotidiano de Portugal Continental, agora renovado. Mas fico-me pelas notas, oportunas, neste tempo do vale tudo a nível da comunicação social, com duas ideias:   “A semana das boas notícias" e “crónicas “edificantes e de enternecer”. Infelizmente, estas opções têm dado lugar ao mal-dizer, às raivas e ódios de estimação, às notícias falsa. Só quando  o homem morde o cão ou há faca e alguidar, no sentido literal ou metafórico, é que alguns jornalistas acordam. "São estas que vendem", dizem-me. 
No meu Pela Positiva, nem sempre segui o que me propus fazer desde que abri esta minha janela para o mundo. Terei que rever esta minha posição. Obrigado pela sugestão, Ferreira Fernandes. 

Fernando Martins

domingo, 24 de junho de 2018

Joel Neto e a vida no campo

O meu filho Pedro com o escritor Joel Neto, no lançamento do seu mais recente livro, "Meridiano 28"
Na sua habitual crónica do DN, "A vida no campo", Joel Neto despede-se dos seus leitores, entre os quais me incluo, refletindo sobre o que não escreveu. Consultando o seu ficheiro de notas, enumera os temas que não abordou na sua coluna, evocando pessoas e acontecimentos. E nessa consulta não passou da página sete das 56 que tem o referido ficheiro. Contudo, nesta hora de despedida do DN, que a partir do próximo domingo se apresentará renovado, com uma única edição semanal em papel, passando no dia a dia a jornal online, Joel Neto promete voltar em Janeiro. 
As crónicas de Joel Neto têm um sabor intimista e mexem com a minha sensibilidade. Acabei  há dias a leitura do seu livro “A vida no campo” e hoje fiquei com pena de não o poder ler, ao menos com certa regularidade, na comunicação social. 
É curioso verificar que nunca fiz um ficheiro dos temas escritos e a escrever. Sou o rosto do caos em organização. E quando tenho de escrever, seja para os meus blogues seja para publicar noutro sítio qualquer, por iniciativa própria ou a pedido, enfrento naturalmente a questão: Mas eu já não terei escrito sobre isto? 
Pondo de lado essa preocupação, já que não vislumbro hipótese de passar a ordenar ficheiros sobre o que escrevi ou tenciono escrever, chego à conclusão de que nunca haverá perigo de me repetir porque os meus escritos, modestos, não passam dos horizontes da minha janela. 

Fernando Martins

sexta-feira, 13 de abril de 2018

O DIABO E OS EXORCISMOS

Anselmo Borges no DN

 
1 Fico a saber através de Jesús Bastante que, segundo a Associação Internacional de Exorcistas, há um "auge" das possessões demoníacas, centenas de milhares em todo o mundo, embora o próprio Vaticano tenha advertido que desses "endemoninhados" só uns 2% a 3% o eram realmente. São poucos os padres que se sentem com vocação para exorcistas; aliás, para "expulsar o demónio", têm de ter uma autorização especial do bispo. Em face da escassez de exorcistas, "a Santa Sé está a organizar cursos para treinar mais sacerdotes". "Por estranho que possa parecer, a preocupação com o demónio aumentou nas fileiras católicas, e o próprio Papa Francisco fala frequentemente das influências de Satanás, como mostra a maldade no mundo, o auge das guerras e do ódio", tendo inclusive "recomendado aos sacerdotes que recorram aos serviços de um exorcista caso sintam alguma actividade demoníaca contrária. No entanto, pediu precaução na situação de determinar se uma pessoa sofre influências demoníacas ou transtornos mentais". Um facto: instado por um padre que lhe apresentou alguém alegadamente possuído - "Santidade, esta pessoa precisa da sua bênção. Viram-no dez exorcistas, fizeram-lhe mais de 30 exorcismos e os demónios que leva dentro não querem sair" -, Francisco saudou esse homem, que lhe beijou o anel e caiu em transe, mas o Papa não se deixou impressionar e continuou com a sua oração. Depois, "o Vaticano desmentiu que Francisco tivesse realizado um exorcismo, embora tenha rezado junto dessa pessoa". Na exortação "Gaudete et exsultate", desta semana, diz que o diabo é "um ser pessoal" e "não um mito, um símbolo ou uma ideia".

sexta-feira, 6 de abril de 2018

O QUE É RESSUSCITAR?

Anselmo Borges 
Anselmo Borges
no DN


1Eu tinha dito às crianças para escreverem uma carta a Jesus. Apareceram várias, que foram lidas na missa do Domingo de Ramos. Jesus acabou por receber muitos beijinhos e desejos de Páscoa feliz. Houve uma particularmente encantadora, a da Margarida, 8 anos. Alguns parágrafos: "Nesta minha carta gostava de te dar uma ideia - espero que não fiques chateado. Se calhar, se falasses um bocadinho mais alto, as pessoas podiam ouvir-te um bocadinho melhor e seguir o teu caminho. Eu acho que assim haveria menos guerra e menos fome. (...) Eu ainda não percebi muito bem como se pode ressuscitar mas, como és infinitamente bom, sei que é possível."
2Apesar da idade, a Margarida já tem as suas perplexidades perante o mistério. E o Mistério, o Absoluto, tem duas faces: Deus e a morte. Quando nos confrontamos com a morte, é mesmo com o mistério que estamos. Ninguém sabe o que é morrer nem o que é estar morto, mesmo para o próprio morto. E tropeçamos em conflitos da linguagem e da realidade, quando, perante o cadáver do pai, da mãe, de uma pessoa amiga, dizemos: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo, a minha amiga, está aqui morto/morta... O que falta é precisamente o pai, a mãe, o amigo, a amiga... E que os levamos à sua última morada ou que os vamos visitar ao cemitério... Quem se atreveria a enterrar ou a cremar o pai ou a mãe, a pessoa querida? Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém, só "ossos e podridão", diz o Evangelho de modo cru. Então, o que há nos cemitérios para que a sua profanação seja um crime hediondo? Lá, o que há é a memória e uma infinita interrogação: o que é o Homem? A morte é o impensável - o filósofo Michel Foucault, nos seus últimos dias no hospital, terá sussurrado: "O pior é que não há nada a dizer" - que obriga a pensar.
Claro que é natural morrer. Sim, a vida acaba-se como uma vela..., mas já Ernst Bloch se insurgia: "O ser humano não é uma vela." Morremos como qualquer animal, mas a pessoa não é um animal qualquer: o que caracteriza o ser humano é mesmo a consciência de que é mortal, insurgindo-se ao mesmo tempo contra a morte. Lá está Pascal: a condição humana situa-se algures entre le néant et l"infini (o nada e o infinito) e daí nascem, sem fundo e sem fim, as perguntas últimas, metafísicas e religiosas: qual é o fundamento de tudo, o que sou e quem sou, donde venho, para onde vou, qual o sentido, o sentido último da minha existência e de tudo?

sexta-feira, 9 de março de 2018

FRANCISCO. E DEPOIS?

Anselmo Borges 

Anselmo Borges


1. Num belo livro, Cartas a Francisco, escreve também um destacado filósofo e teólogo, L. González-Carvajal, que, na sua carta, resume a parábola de J. Bouchaud para exprimir a impressão causada por João XXIII, aplicada agora ao Papa Francisco:
"Havia uma vez um barco, um velho e belo barco que há muito tempo estava ancorado no porto. A vida a bordo era de prerrogativa. Os oficiais estavam ataviados com uniformes de diferentes cores - o negro para os de mais baixa graduação, violáceo, vermelho e púrpura para os outros -, a que alguns tinham juntado adornos (capas, arminhos, condecorações...). As relações entre os comandos superiores e os subalternos regiam--se por um cerimonial carregado de requintados ritos e reverências. Na realidade, a vida a bordo era fácil, porque tudo o que havia para fazer ou deixar de fazer estava determinado por um regulamento muito preciso que todos observavam escrupulosamente.
Como é lógico, no barco havia também marinheiros, embora dificilmente fossem vistos. Trabalhavam no porão e na sala das máquinas, apesar de o trabalho com os motores não ser muito importante num navio que nunca deixa o porto.
As veneráveis senhoras que passeavam pelo cais diziam umas às outras: "Este barco é o meu preferido; é um barco fidelíssimo, nunca se move do seu sítio".

sexta-feira, 2 de março de 2018

AMEAÇAS PARA A HUMANIDADE

Anselmo Borges
Anselmo Borges 

A história da humanidade é feita de êxitos e fracassos, avanços e recuos, conquistas e derrotas, guerras e algum tempo de paz, esperanças e ameaças.
A novidade das ameaças, hoje, é que são globais. Numa obra lúcida, acessível, L"Humanité. Apothéose ou apocalypse?, com contributos de pensadores de vários horizontes e dando uma panorâmica do que está em jogo no século XXI, J.-L. Servan-Schreiber, optimista quanto ao futuro, apresenta também algumas dessas ameaças, obrigando a reflectir. Sintetizo.

1. Aquecimento global. Uma ameaça que todos têm presente: o aquecimento climático. Apesar da oposição de Trump e de as medidas concretas não serem suficientes, cresce a consciência do problema, que é realmente dramático.

2. Excesso de população. E a questão é que o crescimento da população se dará sobretudo nas regiões mais pobres, desencadeando ondas de emigrantes a fugir da miséria. Por outro lado, o envelhecimento das populações trará problemas explosivos para a saúde.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

A LEI DO CELIBATO DOS PADRES

Anselmo Borges 

Anselmo Borges

1 Escreveu-se imenso sobre um padre da Madeira que assumiu a paternidade de uma menina. Também me perguntaram o que é que eu penso.
Desconheço a situação concreta, mas, em princípio, ter assumido a paternidade é um acto que honra o padre. Está, aliás, na linha do recente documento da Conferência Episcopal Irlandesa, que Francisco quer estender a toda a Igreja, estabelecendo que os padres devem, como qualquer outro pai, assumir as suas responsabilidades, colocando os interesses da criança em primeiro lugar, com todas as consequências: afectivas, legais, morais, financeiras. É inaceitável que os filhos dos padres continuem a ser "sobrinhos" ou "afilhados". As crianças têm direito à sua identidade e a mãe não pode ficar sozinha e excluída. Se a Igreja prega os direitos humanos aos outros, tem de praticá-los em primeiro lugar no seu próprio seio.
Ter sido pai não deve implicar automaticamente o abandono do sacerdócio. A questão deve ser dialogada entre o padre, o bispo, a mãe e a comunidade a que o padre preside. Se quiser casar-se, deverá seguir o seu caminho, abandonando.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Mudança da hora tem os dias contados?


Li no Diário de Notícias que o "Parlamento Europeu questionou a necessidade de adiantar e atrasar relógios e convidou a Comissão Europeia a estudar os efeitos da mudança". Acho bem que se questione a obrigação de todos os anos sermos obrigados a alterar, atrasando ou adiantando, a caminhada dos nossos relógios. Nunca achei graça a esta lei que exige a nossa adaptação às circunstâncias. Cá para mim, preferia que voltássemos, definitivamente, ao chamado horário de verão. 

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Francisco no Chile e no Peru

Anselmo Borges 
Anselmo Borges

1 Por ocasião da visita do Papa Francisco ao Chile e ao Peru, fui confrontado, lendo José Manuel Vidal, que cita um estudo de Latinobarómetro, com estatísticas temíveis quanto à situação da Igreja na América Latina. Os números mostram uma forte queda da Igreja Católica latino-americana devido à saída para as igrejas protestantes, no contexto da religião evangélica, e, num processo acelerado de secularização, para o agnosticismo e o ateísmo, como afirmou Marta Lagos, que dirigiu o estudo.
Os países com maior número de pessoas que se declaram católicas são Paraguai (89%), México (80%), Equador (77%), Peru (74%), Colômbia (73%) e Bolívia (73%). 65% dos inquiridos nos 18 países da América Latina dizem confiar na Igreja, sendo as nações onde tem mais crédito Honduras (78%), Paraguai (77%) e Guatemala (76%). No Chile, o número baixa para 36% e, segundo Marta Lagos, a quebra deve-se sobretudo aos abusos sexuais perpetrados pelo influente padre Fernando Karadima: antes desse escândalo, a confiança dos chilenos rondava os 69%, descendo abruptamente em 2011 para 38%.
O número de latino-americanos que se declaram católicos caiu paulatinamente nas duas últimas décadas: se em 1995 os católicos representavam 80%, esta percentagem baixou para 59% em 2017. Há sete países onde a população católica já representa menos de metade da população: República Dominicana (48%), Chile (45%), Guatemala (43%), Nicarágua (40%), El Salvador (39%), Uruguai (38%) e Honduras (37%). "A esta velocidade, daqui a dez anos os países da América Latina que terão a religião católica como religião dominante serão uma minoria." A eleição de Francisco em 2013 teve um "efeito positivo" e uma prova é que 60% dos chilenos reconheceram como "positiva" a visita que acaba de fazer ao país.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Jerusalém: com um "estatuto especial"?

Anselmo Borges 

Anselmo Borges

1 Jerusalém é uma cidade mítica no imaginário de milhões e milhões de pessoas, concretamente crentes das três religiões monoteístas.
O significado da cidade para os judeus está bem expresso no Salmo 137, versículos 5-6: "Se me esquecer de ti, Jerusalém, fique ressequida a minha mão direita! Pegue-se-me a língua ao céu da boca, se eu não me lembrar de ti, se não fizer de Jerusalém a minha suprema alegria!" Os cristãos sabem que foi em Jerusalém que Jesus enfrentou a religião oficial, exploradora do povo, ali foi condenado à morte e crucificado, ali fizeram os primeiros discípulos a experiência avassaladora de que a morte não teve nem tem a última palavra, pois Jesus está vivo para sempre em Deus. Para os muçulmanos, Jerusalém, onde se encontra a mesquita Al-Aqsa, é o terceiro lugar sagrado, depois de Meca e Medina.
Mas Jerusalém foi e é também lugar de confrontos constantes, de invasões permanentes ao longo da história, de contínua conflitualidade e, actualmente, um dos focos mais explosivos, com perigos e ameaças para a paz. A recente decisão do presidente Trump de passar para lá a Embaixada dos Estados Unidos, reconhecendo Jerusalém como capital de Israel, só contribuiu para incendiar os ânimos e agudizar as tensões.

2 Neste contexto, no passado dia 17, teve lugar no Cairo, por iniciativa das autoridades da universidade e mesquita Al-Azhar, uma conferência internacional sobre a Cidade Santa, Jerusalém, também com a presença, entre outras personalidades, do patriarca copta ortodoxo Teodoro II, o patriarca maronita Béchara Boutros Raï e o catholicos arménio Aram.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

As tentações e o Diabo

Anselmo Borges 

1 - Também por influência do Papa Francisco, está-se a rever, em várias línguas, a tradução do "Pai Nosso". A tradução portuguesa, pedindo a Deus: "Não nos deixeis cair em tentação", está de acordo com a mudança que o Papa quer fazer. Noutras línguas - alemão: "führe uns nicht in Versuchung", inglês: "lead us not into temptation", francês: "ne nous soumets pas à la tentation" -, está o pressuposto erróneo de que Deus é responsável pelas tentações que levam ao pecado, pois seria ele que nos conduz ou submete à tentação. Ora, se Deus é amor, não tenta as pessoas. Na Carta de São Tiago lê-se: "Ninguém diga, quando for tentado para o mal: "É Deus que me tenta." Porque Deus não é tentado pelo mal, nem tenta ninguém. Cada um é tentado pela sua própria concupiscência, que o atrai e seduz." Deus nada tem que ver com o mal, pois é o Bem e o Anti-Mal.

2 - Fica a pergunta: é o diabo que nos tenta? O Papa Francisco disse recentemente que "Satã é uma pessoa, e muito manhosa, que entra com os seus modos sedutores". Ele tenta, pois é o seu ofício. Penso que, aqui, é I. Kant que tem razão, ao colocar na boca de um catequizando iroquês a pergunta: Porque é que Deus não acabou com o diabo? E: Se os diabos nos tentam, quem tentou os anjos, para, de anjos bons, se tornarem maus e demónios? Colocar o diabo ao lado de Deus, no quadro de um dualismo maniqueu, é uma contradição. O diabo não faz parte do Credo. O diabo não explica nada. O mal é inevitável por causa da finitude. Não é preciso o diabo para explicar as tentações. O ser humano, dada a sua natureza finita, carente, tensional, será sempre tentado, isto é, seduzido pelas "vantagens" aparentes do mal e pode cair na tentação e praticar o mal e o pecado. E o que é o pecado? Aquilo que, pelo mau uso da liberdade, nos faz mal, a nós e aos outros.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

CINCO BOMBAS SOBRE A HUMANIDADE

Anselmo Borges 


Escrevi aqui, em duas crónicas, sobre os triunfos da humanidade em relação à fome, à pobreza, à saúde, ao saber, à liberdade, à igualdade... Foram apresentados factos, números, estatísticas, inegáveis. Isso tem de ser registado, para que se saiba do nível actual sem precedentes nos padrões de vida globais. Mas não quereria que se ficasse com a ideia de um optimismo ingénuo. Na verdade, é preciso ser realista e tomar consciência, como acentua o filósofo e teólogo Xabier Pikaza, das cinco bombas que pesam sobre a humanidade e que podem destruí-la pura e simplesmente. A ameaça maior para a Humanidade na actualidade tem que ver com o seu excesso de poder, de tal modo que, sem diálogo, sem uma mudança de paradigma, ela pode auto-eliminar-se. Quais são essas cinco bombas e o seu risco?

1. Vimos da natureza, mas é em nós que a natureza e a sua história tomam consciência de si. Somos da natureza, mas, ao mesmo tempo, na natureza, contrapomo-nos a ela, reflectimos sobre nós e sobre ela. Temos capacidade para descobrir os seus segredos, as suas leis, os seus mecanismos interiores, e tanto podemos servir-nos dela, contemplá-la na sua grandeza e beleza, como destruí-la. Aí está o armamento nuclear, atómico, que pode dar azo à total destruição da natureza e da humanidade. Antes, não tínhamos, mas agora temos a possibilidade de realizar um suicídio global. Muitos países possuem ou possuirão armas atómicas e, com esse meio, podem acabar com a vida e a humanidade toda no planeta. O Papa Francisco não se cansa de repetir que a Terceira Guerra Mundial está em curso, embora aos pedaços, às fatias, e o receio é uma guerra total, que pode tornar-se uma guerra nuclear. Suponhamos que um grupo terrorista se apodera de armamento atómico...

sábado, 30 de dezembro de 2017

Anselmo Borges - O tempo para o diálogo inter-religioso

1. Quando se olha para a situação do mundo, é o teólogo Hans Küng quem tem razão: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, um ethos mundial."

2. A religião tem na sua base a experiência do Sagrado. Crente é aquele que se entrega confiadamente ao Mistério, ao Sagrado, Deus, esperando dele sentido último, salvação. De facto, as religiões aparecem num momento segundo: são manifestações e encarnações, necessárias e inevitáveis, da relação das pessoas com Deus e de Deus com as pessoas. São mediações, construções humanas e, por isso, têm do melhor e do pior, entendendo-se, também a partir daqui, que o diálogo inter-religioso tem de assentar nalguns pilares fundamentais.
Todas as religiões, na medida em que não só não se oponham ao humano mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas, num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social e, por outro lado, estão relacionadas com o Sagrado, o Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá do que possamos pensar ou dizer. Precisamente porque nenhuma possui Deus na sua plenitude, devem dialogar para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todas convoca. Assim, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus e os agnósticos, porque estando de fora mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.
Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos e a realização plena de todas as pessoas. A violência em nome da religião contradiz a sua natureza, que é a salvação. Face a um Deus que mandasse matar em seu nome só haveria uma atitude digna: ser ateu.
Dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal mas histórico-crítica dos Livros Sagrados e a laicidade do Estado, que não deve ter nenhuma religião, para garantir a liberdade religiosa de todos. Evidentemente, a laicidade não se pode de modo nenhum confundir com o laicismo. De facto, a religião tem de ter lugar no espaço público, pois é uma dimensão do humano e faz parte da cultura.

Anselmo Borges no DN

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Anselmo Borges — Lutero: a fé e as indulgências




1. Por causa de Lutero, pus-me a caminho de Worms, era eu ainda estudante na Alemanha. Foi uma senhora que amavelmente me disse: ali adiante, no jardim, junto à catedral, vai encontrar uma placa no chão alusiva à presença de Lutero. E lá encontrei a placa: "Hier Stand Vor Kaiser Und Reich Martin Luther, 1521" (aqui compareceu perante o império e o imperador Martinho Lutero, 1521). Foi ali, na Dieta de Worms, que Lutero fez o discurso que marcaria a ruptura com a Igreja de Roma, o discurso que termina com as famosas palavras sempre lembradas quando se trata de defender a objecção de consciência: "Se me não refutardes através do testemunho das Escrituras ou mediante argumentos evidentes - uma vez que não creio nem nos papas nem nos concílios, pois é evidente que já muitas vezes se equivocaram e se contradisseram -, estou encadeado aos textos da Escritura e a minha consciência cativa da Palavra de Deus. Não posso retractar-me nem me retractarei de nada, porque não é justo nem honesto agir contra a consciência. Que Deus me ajude! Amém."

Lutero já estava excomungado e podia ser preso. Por isso, Frederico III conseguira do imperador Carlos V um salvo-conduto para ele poder ir a Worms e regressar, sem ser detido. Depois da sua declaração, ficava proscrito, podendo o seu fim ser a fogueira, como acontecera a Jan Hus, que também queria a reforma da Igreja. Assim, o príncipe Frederico, astutamente, sequestrou-o, para protegê-lo no seu castelo de Wartburg, onde se dedicou à tradução do Novo Testamento, contribuindo decisivamente para a constituição do alemão moderno. Abandonou o hábito de frade em 1524 e casou-se com Catarina de Bora em 1525, tendo sido um bom marido e pai.

2. Lutero nasceu em Eisleben em 1483. Estudou Filosofia e Direito. A sua vida sofreu uma reviravolta quando no dia 2 de Julho de 1505, no meio de uma grande tempestade, um raio lhe caiu perto e, aterrado, prometeu: "Santa Ana, ajuda-me, far-me-ei monge." No dia 17 de Julho seguinte, contra a vontade do pai, cumpriu e deu entrada no Convento dos Agostinhos em Erfurt, em cuja universidade estudava. Foi ordenado em 1507, doutorando-se em Teologia em 1512, e exerceu como professor de Teologia Bíblica. Antes, enviado pelo superior, J. von Staupitz, passou por Roma, onde, constatando o fausto e a vida escandalosa do Papa e da Cúria, mais aprofundou a urgência da reforma da Igreja.
Foi um frade piedoso e cumpridor, na oração, no jejum, na penitência, confessava-se frequentemente. Sedento de Deus e de salvação, vivia em crise interior permanente, angustiado com os escrúpulos, torturado com o pecado e a ira de Deus e a sua justiça como castigo. Obcecava-o a pergunta: "Que devo fazer para obter a misericórdia de Deus?" Em 1545, recorda no prólogo à edição das suas Obras Completas em latim: "Embora a minha vida de frade fosse irrepreensível, sentia-me pecador diante de Deus, com a consciência perturbada. Indignava-me contra este Deus, alimentando em segredo, senão a blasfémia, pelo menos uma violenta murmuração... Sei de um homem que sofreu estas penas muitas vezes... com violência tão dura e infernal que nem a língua pode exprimir nem a pena escrever..."
Foi em 1514 que se deu a viragem total na sua vida, ao descobrir, através da Carta aos Romanos, de São Paulo, o Deus da misericórdia, cuja justiça não é de castigo mas de amor. "Pela fé recebemos um coração diferente, novo e puro. Deus quer ter-nos totalmente justificados por causa de Cristo, nosso mediador." Em terminologia simples, a questão que já São Paulo tinha é esta: o que vale a minha vida? Que valor tem ela e para quem? Quem me reconhece? Valho o quê para quem? E São Paulo e Lutero descobrem que valemos infinitamente para Deus. A fé é a entrega confiada a esse mistério do Deus misericordioso que, através de Cristo, reconhece o nosso valor para ele. Nisso consiste a salvação.

3. Resolvido este problema pessoal, no quadro da urgência da reforma da Igreja, no contexto da necessidade de uma piedade mais interior e pessoal, quando os príncipes exigiam autonomia face ao imperador Carlos V e a Roma e estavam em marcha transformações culturais, económicas e políticas, destronando o paradigma medieval, Lutero acabou por desencadear, nem sempre consciente disso e até contra a sua vontade, uma ruptura religiosa e um cataclismo civilizacional. Como escreveu Jaume Botey, "as consequências desse cataclismo puseram em evidência a existência na Europa de duas culturas, dois modelos de relações sociais, duas formas de entender a política e o poder, inclusive, dois modelos económicos que, de facto, ainda hoje continuam entre a Europa do Norte e a Europa mediterrânica".
A causa imediata foi a venda de indulgências. No dia 31 de Outubro de 1517, Lutero afixou nas portas da igreja do castelo de Wittemberg as célebres 95 teses, apenas com o propósito de um debate teológico académico. Algumas dessas teses: "Deve-se ensinar aos cristãos que age melhor quem dá esmola ao pobre do que quem compra indulgências." "Se o Papa soubesse dos métodos de extorsão usados pelos pregadores de indulgências, preferiria ver a Basílica de São Pedro a afundar-se em cinzas a edificá-la à custa da pele, da carne e dos ossos das suas ovelhas." "Deve ensinar-se aos cristãos que o Papa, como é seu dever, estaria, se fosse necessário, disposto a vender a Basílica de São Pedro para dar do seu próprio dinheiro a muitos a quem alguns pregadores o tiram."

4. Qual o cristão que não estará de acordo com a crítica da venda das indulgências?
Recentemente, o Papa Francisco, com a audácia que o Evangelho dá, "denunciou e condenou o "mercadejar" no que ao inferno, ao céu e ao purgatório se refere, como frequentemente se faz nas cúrias eclesiásticas e seus arredores". E convidou a todos a deixar-se "misericordiar" por Deus.

Anselmo Borges no DN

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Anselmo Borges — A sida espiritual



Quarenta e três anos de democracia para que serviram? É uma pergunta que frequentemente me colocam. E eu tento responder.

1. Do ponto de vista formal, houve um bom caminho que se fez e a democracia está consolidada. Mesmo do ponto de vista da justiça social, há conquistas significativas. Mas nem tudo está bem. As pessoas deixaram-se estontear pelo "deus" dinheiro e temos a corrupção que se sabe. Há desconfiança em relação aos políticos, fundamentalmente por causa da corrupção e da cumplicidade entre política e negócios. Depois, porque se governa para as eleições, portanto, para o curto prazo, vão faltando as reformas estruturais, necessárias para não termos de viver em constante sobressalto, mesmo do ponto de vista económico-financeiro. Temo, quando ouço hoje muita gente dizer sobre os políticos: "São todos iguais, querem ir para o poder não porque se interessem por nós, mas por causa dos interesses deles." Aliás, a percentagem de abstenção nas eleições é já muito elevada. Terá de haver transparência na governação - veja-se o que se passa com a banca, Tancos, os incêndios...

2. Considero a actividade política uma actividade nobre, das mais nobres. Mas receio quando vejo, na época das eleições, um número quase sem fim de cidadãos a concorrer como candidatos. Desconfio de tanta competência e sobretudo continuo a não acreditar que a maior parte o faça por amor à causa pública, ao serviço do bem comum. Como já aqui escrevi: "Que interesses, que vantagens, que compadrios, que cumplicidades, que privilégios, que benesses, que vaidades os movem?" Se os políticos quisessem realmente saber o que os outros cidadãos pensam deles, haveria um teste poderoso, embora saiba ser perigoso e talvez não aplicável: nas eleições, os votos em branco traduzir-se-iam, segundo a lei da proporção, em cadeiras vazias no Parlamento. Seria o "partido da cadeira vazia". Poupava-se dinheiro e retórica de sofistas, inútil e manhosa. Votar seria obrigatório, mas, em vez de sanções para os cidadãos que não votassem, os cidadãos tinham a possibilidade do voto em branco, com esta consequência.
De qualquer forma, é necessário reformar o Estado e a política, a começar por cima. Corte-se nos privilégios de tantos, reduza-se o excesso de mordomias, siga-se, sobretudo, a famosa "navalha de Ockam": "Não multiplicar os entes sem necessidade", por exemplo, não se aumente o número de funcionários só para dar a impressão de que diminui a taxa do desemprego.

3. Concretizemos mais.

Apesar dos bons resultados quanto aos últimos orçamentos, aproveitando aliás, mesmo que se não queira admitir, das políticas que vinham de trás, não se pode caminhar agora para orçamentos eleitoralistas, esquecendo a dívida. Há sempre aquela pergunta fatal: o que leva tantos a procurar o poder? Respondeu quem sabe, Henry Kissinger: "O poder é o maior afrodisíaco." Mas não se venha iludir os cidadãos, pois eles sabem, por exemplo, do atraso do Ministério das Finanças em desbloquear verba para mais cirurgias no IPO de Lisboa. Para lá disso, também sabem das cativações e que em 2016 morreram 2605 portugueses à espera de uma cirurgia - "uma coisa que é assustadora e que, em circunstâncias normais, devia ter causado um terramoto (mas os fogos tiraram toda a normalidade aos nossos dias)", escreveu Pedro Ivo Carvalho. Não é bom pretender que os cidadãos acreditem que a austeridade acabou, pois eles sabem das "engenharias financeiras" e dos impostos e de como os impostos indirectos são os mais injustos, porque são cegos e atingem a todos.
O que se passou e passa com Tancos é inqualificável.
Sobre as desgraças continuadas quanto à banca, só se pode exigir que se ponha cobro à situação e que se faça justiça. Haja transparência! Há uma palavra do Evangelho, sempre viva e actual: "A verdade libertar-vos-á."
Que mal é que há em reconhecer que o Estado falhou clamorosamente nos incêndios, sobretudo quando se pensa no aviso que vinha de Pedrógão? Os prejuízos podem alcançar os três mil milhões de euros. Evidentemente, os 110 mortos não têm preço e a angústia mortal de tantos e tantas que ficaram sem os seus entes queridos e com a vida toda tolhida e destroçada serão um eterno peso na nossa consciência. A atitude do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, foi e continua a ser exemplar.

4. Diz-se frequentemente: "Já não há valores." Não penso isso. O que se passa é que se inverteu a pirâmide dos valores e corre-se o risco de o valor dinheiro se tornar o valor e a medida de todos os valores. Onde está a honra, a dignidade, o valor da palavra dada, a solidariedade, a família como esteio que segura os valores, a escola que forma pessoas íntegras e, assim, bons profissionais, alguns princípios orientadores de humanidade e para a humanidade?
No que mais temo está também que, depois de terem caído "princípios" inaceitáveis na sua rigidez, reste apenas a imediatidade, a auto-satisfação de cada um a seu bel-prazer, e, consequentemente, a desorientação, no sem-sentido da intranscendência. O que infecta esta nossa sociedade é o que chamo a sida espiritual, que derruba a capacidade de defesa face à mentira, à desonra, à indignidade, à corrupção, à falta de valores na sua hierarquia autêntica. E não vejo que sejamos mais felizes. Os próprios jovens, a quem tudo é dado materialmente, educados na anomia facilitista e no "dedar" constante e caótico do smartphone e não para o estudo sério e a capacidade e a alegria de superar obstáculos, nas batalhas pelo bem e na conquista do melhor, que é ser si mesmo na autenticidade e na superação de si, acabam mergulhados na dor da derrota e da desorientação.


Anselmo Borges no DN 

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Anselmo Borges - Onde estarei, quando deixar de existir?

Anselmo Borges


1 A pergunta do título é feita, textualmente, por Ivan Ilitch, nas vésperas de morrer. Uma pergunta de abismo e de calafrio, que abala até à raiz do ser, terrível e lancinante.
Há muitos anos, tinha lido A Morte de Ivan Ilitch, uma das obras-primas de Tolstoi, pequena em volume, mas imensa em humanidade: vai até aos abismos da nossa condição. Recentemente, o livrinho vinha acoplado, gratuitamente, a uma revista. E reli. E lá está a pergunta, que retomo, para algumas reflexões, em vésperas do Dia de Todos os Santos e do Dia dos Finados (1 e 2 de Novembro), os dias em que as nossas sociedades, que fizeram da morte tabu - disso não se fala - permitem alguma abertura à pergunta que está na raiz de todas as perguntas: onde é que eu estarei, quando já cá não estiver?
Ivan Ilitch, o conselheiro do Supremo Tribunal, sabia que ia morrer e estava apavorado, desesperado. "No fundo da sua alma, estava bem certo de que ia morrer mas não só era incapaz de se afazer a essa ideia, não a compreendia sequer, era incapaz de a compreender." Ele também tinha estudado lógica e lá estava um exemplo de silogismo: todos os homens são mortais, Caio é homem, logo Caio é mortal. Isso era evidente. Mas Caio era um homem em geral e, claro, tinha de morrer, era natural que morresse. Ivan Ilitch, porém, não era Caio, era ele mesmo, único, irrepetível. E estava perante o abismo sem fundo do incompreensível. Como compreender que morresse? Era simplesmente horrível, apavorante, paralisante, incompreensível. Impossível. Tentava, pois, escorraçar aquela ideia, "como coisa falsa, anormal, doentia, tentando substituí-la por outras ideias, normais e sãs". E, contudo, era assim mesmo: ia morrer. Essa realidade bruta erguia-se, impenetrável e certa, diante dele.
Ivan Ilitch tinha um tormento maior, que consistia na mentira, admitida por todos: afinal, ele apenas estava doente e não era um moribundo. Mas ele sabia bem que o esperavam sofrimentos terríveis e a morte. Essa mentira atormentava-o e sofria por não quererem admitir a realidade bruta, tendo ele próprio de participar naquela intrujice. "A mentira que cometiam para com ele nas vésperas da sua morte, essa mentira que rebaixava o acto formidável e solene da sua morte até ao nível das suas visitas, dos seus jantares, era atrozmente penosa a Ivan Ilitch. E, coisa estranha! Esteve muitas vezes quase a gritar-lhes, quando eles exibiam à volta deles as suas histórias da carochinha: "Basta de mentiras! Bem sabeis e eu bem sei que vou morrer! Acabem ao menos com essas mentiras!" Mas nunca teve coragem de agir assim. O acto atroz da sua agonia era rebaixado pelos que o rodeavam, bem o via, ao nível de um simples dissabor." Aliás, outros pensamentos ocupavam agora alguns colegas: o aborrecimento de terem de ir ao funeral, mas, com a morte dele, também poderia estar mais próxima a sua promoção e a dos amigos, tinham sobretudo um sentimento de alegria: era ele que estava a morrer e não eles. Ivan Ilitch, esse, gemia de angústia, porque os dias e sobretudo as noites eram intermináveis: "Se isto pudesse acabar mais depressa. Mais depressa? O quê? A morte, as trevas!... Não, não! Tudo é melhor do que a morte!" E chorava e gritava por causa da sua situação, "pela horrível solidão, pela crueldade dos homens, pela crueldade de Deus, que o tinha abandonado".

2 Philippe Ariès chamou a atenção para o facto de esta obra de Tolstoi ser dos primeiros avisos de que estava a caminho a "mentira" sobre o morrer e a morte. Na atitude tradicional, a morte era natural e quase familiar, mas, entretanto, ela tornou-se tabu, o último tabu. Não é de bom tom referir-se-lhe. Disso pura e simplesmente não se fala. O próprio luto é ocultado.
O que se passou? Evidentemente, a "morte" de Deus e a desafeição pela religião deixaram as pessoas no desamparo. Vive-se numa sociedade da produção e do consumo, do êxito, do hedonismo, uma sociedade tecnocrática, poderosíssima nos meios mas paupérrima nas finalidades humanas, posta em causa precisamente pela morte. A morte não deixou, portanto, de ser problema; pelo contrário, de tal modo é problema, o único problema para o qual este tipo de sociedade não tem solução, que a única solução é ignorá-la, como se não existisse. Vive-se então na banalidade rasante, na superfície de uma existência agitada e fragmentada, na vertigem do tsunami (des)informativo e na busca do êxito a qualquer preço e no espectáculo indecoroso de um poder interesseiro, sem atenção ao essencial e decisivo, ignorando os outros, numa solidão atroz.
Não sou de modo nenhum partidário do pensamento mórbido sobre a morte, que foi muitas vezes utilizada, também pela Igreja, para dominar e tolher a vida. Mas estou convicto de que, sem o pensamento são da morte, se perde o essencial. Porque é ele que obriga a distinguir, como sublinhou M. Heidegger, entre a existência autêntica e a existência inautêntica, entre o justo e o injusto, entre o que verdadeiramente vale e o que realmente não vale, e a abater tanta vaidade ridícula e a pouca-vergonha. Esse pensamento não envenena a vida, pelo contrário, leva a viver digna e intensamente cada momento e a abrir-se aos outros. Já perto da morte, o filósofo H. Marcuse voltou-se para o amigo, também filósofo, J. Habermas: "Sabes, Jürgen? Agora sei onde se baseiam os nossos sentimentos morais: na compaixão."
A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos estando mortos. Com a morte, acaba tudo? É tão próprio do ser humano saber da sua morte como esperar para lá dela. Para a eternidade vamos: a eternidade do nada ou a eternidade da vida plena em Deus. É razoável esperar e confiar em Deus, e a razão está em que, no próprio acto de confiar, se mostra a razoabilidade desse acto, porque então, contra o absurdo, o mundo e a existência encontram sentido, sentido último, a salvação.

Anselmo Borges no DN

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Anselmo Borges — Francisco sobre: 5. A Igreja e a política


Ainda com os diálogos do Papa Francisco e de Dominique Wolton: Politique et Société. Concluo.

1. Um tema que atravessa todo o livro é a política. Francisco pronuncia-se sob múltiplos ângulos. Trump "terá dito de mim que sou um homem político... Agradeci--lhe, porque Aristóteles define a pessoa humana como um animal político, e é uma honra para mim. Portanto, sou, pelo menos, uma pessoa! Quanto aos muros..." "A Igreja deve servir em política, lançando pontes: é esse o seu papel diplomático. "O trabalho dos núncios é lançar pontes"." Mas há "a grande política e a pequena política. A Igreja não deve meter-se na política partidária. A política, a grande política, é uma das formas mais elevadas de amor. Porquê? Porque está orientada para o bem comum de todos". "Há sempre uma relação com a política. Porque a pastoral não pode não ser política", para indicar caminhos e valores do Evangelho. Mas concorda com Wolton na denúncia do fundamentalismo e "do risco de fusão da religião e da política".

2. Sobre as desigualdades. Os números: "Hoje, no mundo, 62 ricos possuem a mesma riqueza que 3,5 mil milhões de pobres. Há hoje 871 milhões de pessoas com fome, 250 milhões de migrantes que não têm para onde ir, que não têm nada. Mas o tráfico de droga envolve mais ou menos 300 mil milhões de dólares e pensa-se que, nos paraísos fiscais, 2,4 milhões de milhões de dólares circulam de um lugar para outro."
Na base, está "o ídolo dinheiro". "Caímos na idolatria do dinheiro." Segundo o Evangelho, há incompatibilidade entre Deus e o dinheiro, quando este é divinizado. "Os dois pilares da fé cristã, das nossas riquezas, são: as Bem-aventuranças e o capítulo 25 de São Mateus, que estabelece o critério pelo qual seremos julgados": tive fome, tive sede, e destes-me de comer, de beber...; "é aqui que está a nossa riqueza. Mas irá dizer que sou um Papa demasiado simplista! [risos]. Graças a Deus..."
Wolton: "Diz que é necessário o Estado e que se comprometa..." Francisco: "A economia liberal de mercado é uma loucura. Temos necessidade de que o Estado regule um pouco. E é o que falta: o papel do Estado regulador. Por isso, peço que se abandone a "liquidez" da economia para voltar a qualquer coisa de concreto, isto é, à economia social de mercado: mantenho o mercado, mas "social" de mercado." O problema é "uma economia líquida. A finança". Wolton concorda: "A finança é um modelo de liberalismo demasiado desigual. A finança comeu a economia, que comeu a política..." E Francisco: "É o virtual contra o real." Para meditação, avisa: "Na morte, não levaremos dinheiro connosco. Nunca vi atrás de um carro funerário um camião com os haveres da residência anterior..."

3. Sobre as migrações e a Europa. Francisco é o primeiro Papa jesuíta da história e também o primeiro latino-americano. Argentino, filho de pais italianos, imigrados. "A identidade do povo argentino provém da mestiçagem, porque as vagas de imigrações misturaram-se, misturaram-se... E eu senti-me sempre um pouco assim. Para nós, era absolutamente normal ter na escola várias religiões em conjunto."
Esta sua experiência contribuirá para a sua sensibilidade para com os migrantes. Considera aliás que a teologia cristã é "uma teologia de migrantes", "o próprio Jesus foi um refugiado, um emigrante".
"O problema começa nos países donde vêm os emigrantes. Porque deixam a sua terra? Por falta de trabalho ou por causa da guerra. São as razões principais... Pode-se investir, as pessoas terão uma fonte de trabalho e não terão necessidade de partir. Mas, se há guerra, de qualquer modo, têm de fugir. Ora, quem faz a guerra? Quem dá as armas? Nós."
"A Europa é uma história de integração cultural, multicultural, muito forte. Neste momento, a Europa tem medo. Ela fecha, fecha, fecha..." A questão é que "creio que a Europa se tornou uma "avó". Ora, eu quereria ver uma Europa mãe. A Europa pode perder o sentido da sua cultura, da sua tradição. Pensemos que é o único continente a ter-nos dado uma tão grande riqueza cultural, quero sublinhá-lo. A Europa é o berço do humanismo. A Europa deve reencontrar as suas raízes, também cristãs. E não ter medo. Não ter medo de tornar-se a Europa mãe". E atira de modo mordaz: "Se os europeus querem ficar só com europeus, façam filhos!" Inquietação maior: "Já não vejo estadistas como Schuman, como Adenauer..."

4. Wolton lança desafios a Francisco.

4. 1. Seja como for, "a Europa representa o maior "estaleiro" pacífico democrático da história do mundo". Porque é que as Igrejas não convocam, com todas as religiões e famílias de pensamento, um "acontecimento solene, para dizer que é fundamental" que a união da Europa resulte? Trata-se da "maior utopia democrática da história da humanidade: nunca 27 a 30 países, isto é, 500 milhões de habitantes com 25 línguas, tentaram pacificamente coabitar". Francisco: "Desejo fazer um encontro sobre a Europa com os intelectuais europeus", do Atlântico aos Urais...

4. 2. Há tensão à volta da diversidade cultural. Francisco reafirma que a Igreja não pode ser "imperialista" e que a globalização "em forma de esfera é má" enquanto a Igreja fala da globalização em "poliedro".

4. 3. É urgente uma reflexão crítica sobre a comunicação: por todo lado há comunicação técnica e, no entanto, "nunca houve tanta incomunicação"; está-se perante o perigo de "uma forma de esquizofrenia da comunicação": uma mundialização das técnicas e cada vez menos comunicação humana; não há "o toque, falta o corpo". E pense-se no poder inaudito, quanto a dinheiro e controlo, dos GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon)...

5. Wolton confessa que foi um privilégio dialogar com "uma das personalidades intelectuais e religiosas mais excecionais do mundo". Duas frases o marcaram: "Não tenho medo de nada" e "Não é fácil, não é fácil..."

Anselmo Borges no Diário de Notícias

*padre e professor de filosofia

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Anselmo Borges — Francisco sobre: 1. si próprio


Quem é e o que pensa e quer verdadeiramente o Papa Francisco para a Igreja e para a humanidade?
Durante mais de um ano, na discrição, Dominique Wolton, um intelectual francês, laico, director de investigação no CNRS (Centro Nacional de Investigação Científica), especialista em comunicação, e o Papa Francisco encontraram-se 12 vezes para diálogos sobre os temas mais candentes do nosso tempo e da existência humana: a paz e a guerra, a política e as religiões, a Europa e os imigrantes, a mundialização e a diversidade cultural, os fundamentalismos e a laicidade, a ecologia, as desigualdades, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, a alteridade, a família, a ideologia do género, o tempo, a alegria. Desses encontros resultou uma obra inédita e surpreendente. Acaba de ser publicada com o título: Politique et Société e a que dedicarei algumas crónicas. Hoje, a primeira, precisamente sobre Francisco, que se confessa.

O que é que mais o marca? "Há algo que, mesmo quando era criança, sempre me fez sofrer. É o ódio, a guerra." O que é que mais o comove? "Os actos de ternura fazem-me sempre bem, a compreensão, o perdão... Mas não só no campo religioso. Em toda a parte. A ternura é qualquer coisa que me traz muita paz." Por isso, fala do "analfabetismo afectivo". O que é que lhe provoca cólera? "A injustiça. As pessoas egoístas. E eu próprio, quando estou nessa situação. Preciso de muito tempo para convencer-me de que o Senhor me perdoou, depois pedir perdão à pessoa e fazer alguma coisa para reparar essa injustiça. Mas há o irreparável." O seu maior defeito? "É um pouco o oposto do que se julga de mim. Tenho uma certa tendência para a facilidade e para a preguiça." E a qualidade principal? "A qualidade... eu diria simplesmente que gosto de escutar os outros. Porque descubro que cada vida é diferente. E que cada pessoa tem o seu caminho." É feliz? "Sim. Sou feliz. Eu sou feliz. Não por ser Papa, mas o Senhor deu-me isto e rezo para não cometer asneiras... Mas cometo."

Para comunicar humanamente, é preciso "baixar-se, colocar-se ao nível do outro. Baixar-se, não porque o outro é inferior, mas por humildade..., trata-se de um acto que consiste em "ir à casa do outro". Sou eu que devo ir lá."
Em casa ouvia-se ópera e "comecei a falar de música tinha eu 15, 16 anos... Pus-me a sonhar como gostaria de ser chefe de orquestra".

E o papel das mulheres na sua vida? "Agradeço pessoalmente a Deus por ter conhecido verdadeiras mulheres na minha vida. As minhas duas avós eram muito diferentes, mas ambas verdadeiras mulheres... Depois, a minha mãe. A minha mãe. Era uma mulher, uma mãe. Depois, as irmãs. É importante para um homem ter irmãs, muito importante... Depois, houve as amigas da adolescência, as "namoraditas"... Estar sempre em relação com as mulheres enriqueceu-me. Aprendi, mesmo na idade adulta, que as mulheres vêem as coisas de um modo diferente do dos homens. Porque, perante uma decisão a tomar, perante um problema, é importante escutar os dois."

Depois da adolescência houve alguma mulher que o tenha marcado particularmente? "Sim. Houve uma que me ensinou a pensar a realidade política. Era comunista. Foi morta durante a ditadura. Era química, chefe do departamento onde eu trabalhava, no laboratório de bromatologia. Esther Ballestrino de Careaga. Deu-me livros, todos comunistas, mas ensinou-me a pensar a política. Devo tanto a essa mulher."

Qual o lugar das mulheres na Igreja? "É muito importante. Com a reforma da Cúria, haverá muitas mulheres que terão um poder de decisão, não apenas de aconselhamento." Qual é o problema da reforma da Cúria? "O poder." Vai conseguir? "Sim... ouvi um velho cardeal dizer-me: "Não desanimes, porque o caminho da reforma da Cúria é difícil. E que a Cúria não deve ser reformada, ela deve ser suprimida [risos]. No gozo, evidentemente. É impensável, a Cúria é indispensável."

E consultou uma psicanalista. "A um dado momento da minha vida em que tive necessidade de consultar. E consultei uma psicanalista judia. Durante seis meses fui a casa dela uma vez por semana para esclarecer certas coisas. Ela foi muito boa. Muito profissional como médica e psicanalista. Manteve-se sempre no seu lugar. Depois, quando estava já para morrer, chamou-me. Não para os sacramentos, pois era judia, mas para um diálogo espiritual. Durante seis meses, ajudou-me muito, tinha eu na altura 42 anos."

Bem-aventurada a pessoa que, como Francisco, pode dizer: "Sou livre. Sinto-me livre. Isso não quer dizer que faço o que quero, não. Mas não me sinto prisioneiro, na gaiola. Na gaiola aqui, no Vaticano, sim, mas não espiritualmente. Não sei se é assim... A mim nada me mete medo. Talvez seja inconsciência ou imaturidade! Sim, as coisas são assim, faz-se o que se pode, as coisas assumem-se como são, algumas andam para a frente, outras não... Talvez seja superficialidade, não sei. Não sei como chamar a isso. Sinto-me como um peixe na água."

P.S. Quando foi nomeado para bispo do Porto, escrevi aqui que até no nome era Francisco: António Francisco dos Santos. Um homem humilde, afável, próximo, discreto. Um cristão. Há prioridades, alertou, aquando da sua entrada na diocese: "Os pobres não podem esperar." Contou-me como uma vez, após uma missa pontifical, lhe apareceu um sem-abrigo a pedir dinheiro para comer. Convidou-o para almoçar com ele no paço episcopal. No fim, também lhe pediu dinheiro para cortar o cabelo. Mandou-o ao barbeiro dele, um conterrâneo, que um dia lhe telefonou: "Está aqui um mendigo a dizer que foste tu que lhe disseste para vir aqui, que tu pagavas..." "É verdade, faz como se fosse para mim!" Morreu inesperadamente, também por causa da sua inexcedível bondade incompreendida e não correspondida.

Anselmo Borges no DN 

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Anselmo Borges — Trump, Merkel, Macron e Francisco. Sobre a Europa


1. Há uns versos famosos de Hölderlin que dizem assim: "Wo Gefahr ist, da/ Wächst das Retttende auch." Traduzidos: onde está o perigo, aí cresce também o que salva.
É verdade. A tomada de consciência do perigo leva a reunir vontades e forças para desviar e vencer as ameaças. A não ser que se seja completamente inconsciente, não se fica de braços atados, à espera de que o perigo tome conta da situação e tudo possa afundar-se.

2. Da primeira vez que o Presidente Trump chegou à Europa foi claro: que os europeus não contassem muito, para a sua defesa, com o guarda-chuva americano. Os europeus tinham de contar, antes de mais, com eles próprios e pagar a sua defesa. Aí, percebeu-se bem que das duas, uma: ou os europeus têm consciência da sua identidade, dos seus valores, do seu futuro, e estão decididos a defendê-los, porque vale a pena, ou acontece o pior: já não há essa consciência nem essa força, e o futuro deixa de existir.

3. Merkel viu claramente e foi dizendo que os europeus estão agora entregues a si mesmos e têm de defender-se a si próprios. E os mais lúcidos começaram a aprofundar a ideia de que não haverá autêntica União Europeia sem um exército europeu, com todos os custos e sacrifícios.

4. Macron chegou, com todo o seu vigor político e novos horizontes. Também ele pensa e quer que haja mais Europa, mais integração europeia, uma nova Europa. Seria uma perda irreparável para o mundo, num mundo globalizado, o desaparecimento da Europa, pois ela tem contributos essenciais a dar, como a consciência da dignidade da pessoas humana, a tolerância, o humanismo, a consciência dos direitos humanos nas suas várias gerações. O eixo Paris-Berlim tem de aprofundar-se e adquirir mais consistência, o que é fundamental para a própria Alemanha, pois esta pode ser grande na Europa, mas, sem união, torna-se pequena e insignificante num mundo globalizado.
Macron tem a seu favor ter sido também assistente universitário de um dos mais significativos filósofos do século XX, Paul Ricoeur. E certamente encontrarão eco no seu pensar as ideias do seu mestre, expressas numa entrevista de 1997, recentemente publicada pela Philosophie Magazine: "Estamos em guerra económica. É um problema muito perturbador, sobre o qual nunca tinha dito nada. É hoje o problema de toda a Europa ocidental. Onde, para sobrevivermos, devemos manter uma ética e uma política da solidariedade. O combate a travar tem duas frentes: por um lado, as nossas economias têm de permanecer competitivas; por outro, não podem perder a alma - o seu sentido da redistribuição e da justiça social. Um problema enorme, quase tão difícil de resolver como a quadratura do círculo...
Ainda não acabámos com a herança da violência e da última guerra. Nem com a dureza e a brutalidade do sistema capitalista, que deu KO ao comunismo, ficando sem rival. É hoje a única técnica de produção de riqueza, mas com um custo humano exorbitante. As desigualdades, as exclusões são insuportáveis.
Estou um pouco tentado por uma solução que se poderia dizer cínica. Pode causar-lhe espanto da minha parte, mas, enquanto este sistema não tiver produzido efeitos insuportáveis para um grande número, continuará o seu caminho, pois não tem rival... Penso que vamos conhecer na Europa Ocidental uma travessia no deserto extremamente dura. Porque já não somos capazes de pagar o preço que os mais pobres do que nós pagam. A ascensão das jovens economias asiáticas, concretamente a da China, supõe um custo que seremos incapazes de suportar. Não só não queremos isso, mas não devemos fazê-lo. Não vamos voltar aos tempos do trabalho infantil!... É por isso que eu sou tão fortemente pró-europeu; só uma economia de grande dimensão permitirá à Europa sair disto."

5. Embora não veja claro sobre o como, há muito que penso não ver futuro para a Europa sem estruturas políticas federativas. Daí ter-me dado especial contentamento a entrevista que o Papa Francisco deu na semana passada ao jornal italiano La Repubblica, no contexto da cimeira do G20 em Hamburgo. Francisco disse a Eugenio Scalfari estar muito preocupado com a reunião do G20: "Temo que haja alianças muito perigosas entre potências que têm uma visão distorcida do mundo: América e Rússia, China e Coreia do Norte, Rússia e Assad na guerra da Síria." Qual é o perigo destas alianças? "O perigo diz respeito à imigração. O problema principal e crescente no mundo de hoje é o dos pobres, dos débeis, dos excluídos, dos quais os emigrantes fazem parte. Por outro lado, há países onde a maioria dos pobres não provém das correntes migratórias, mas das calamidades sociais daquele país; noutros países, porém, há poucos pobres locais, mas temem a invasão dos imigrantes. Eis a razão por que o G20 me preocupa."
À pergunta sobre se a mobilidade dos povos está em aumento, pobres ou não pobres, respondeu: "Não haja ilusões: os povos pobres são atraídos pelos continentes e países ricos. Sobretudo pela Europa." É também por esta razão que se deve concluir que "a Europa deve assumir o mais rapidamente possível uma estrutura federal, sendo as leis e os comportamentos políticos subsequentes decididos pelo governo federal e pelo Parlamento federal e não pelos países singulares confederados?", perguntou Scalfari. E Francisco, que já várias vezes levantou a questão, até quando falou no Parlamento europeu: "É verdade que sim." Foi muito aplaudido e recebeu mesmo ovações por essa afirmação no sentido do federalismo. "É verdade. Mas, infelizmente, isso significa bem pouco. Fá-lo-ão, se se derem conta de uma verdade: ou a Europa se torna uma comunidade federal ou não contará nada no mundo."

Anselmo Borges no Diário de Notícias

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Anselmo Borges — António Nobre e Francisco


António Nobre escreveu um poema. Dedicado ao Papa Leão XIII. É comovente e foi seleccionado por Eugénio de Andrade para a sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Diz assim:

"Ó Padre Santo! Meu Irmão! Ó meu amigo/Do velho mundo antigo/- Dá-me consolação, e prova-me que há Deus;/Resolve-me a equação estrelada dos céus;/Admite-me ao Conselho amigo dos Cardeais;/Deixa-me ler, também, na letra dos missais!/Muito que te contar! Não conheces o mundo?/Nunca desceste, Padre!, a esse poço profundo?/Metido nessa cela ideal do Vaticano,/Há quanto tempo tu não vês o Oceano?/Nunca viste um bordel! Sabes o que é a desgraça?/Ouviste acaso o "pschut"! delas, a quem passa?/Sabes que existem, dize, as casas de penhores?/No teu palácio, há, porventura, amores?/Viste passar, acaso, um bêbado na rua?/Já viste o efeito que na lama imprime a lua?/Ouve: tiveste já torturas de dinheiro?/Já viste um brigue no mar? Já viste um marinheiro?/Que ideia fazes das crenças dos rapazes?/Já viste alguém novo, Padre? Que ideia fazes,/Santo Leão, do Boulevard dos Italianos?/Recordas com saudade os teus vinte e três anos?/Ó Leão XIII! Ó Poeta, essa é a minha idade!,/Como tu vês, estou na flor da mocidade!,/Ainda não contei metade de cinquenta./Começa-me a nascer a barba, o mundo tenta/A minha alma: ah, como é lindo esse Demónio!/Nasci em Portugal, chamo-me António;/(...) Em pequenino, Padre, ajoelhado na cama,/A erguer as mãos a Deus, ensinou-me a minha ama:/Sabia de cor mil e trezentas orações,/Mas tudo esqueci no mundo aos trambolhões.../Nossa Senhora te dirá se isto é assim!/ - O que há-de ser de mim?"

Se fosse agora, com o Papa Francisco, António Nobre não se queixaria tanto. Porque Francisco não é o Papa da distância, mas da proximidade. Ele não é prisioneiro dentro do Vaticano: ele vai à rua, fala com os sem-abrigo, abraça os doentes e que "se não deve ter medo da ternura", ele sabe de bordéis e ainda recentemente visitou uma casa de antigas prostitutas, já viu bêbados e amparou-os, tem experiência do que é ter torturas de dinheiro e, por isso, ergue-se contra o cancro da corrupção e prega contra a injustiça e o ídolo do dinheiro, sabe das crenças dos rapazes e das raparigas e das suas lutas e demónios e tem e pede aos padres e bispos compreensão para eles e que a confissão não seja "uma câmara de tortura", vê oceanos nas suas viagens pelo mundo em busca do diálogo e da paz entre os povos...

Francisco também sabe das dificuldades da fé. Porque a Igreja anda, como dizia o cardeal Carlo Martini, com duzentos anos de atraso, e a teologia tem sido marginalizada, calada e perseguida. Ele conhece concretamente o que o seu companheiro jesuíta José María Castillo escreveu recentemente sobre o tema: de como as ciências e as tecnologias avançam com novos conhecimentos enquanto a teologia fica entregue ao desalento, tolhida, cada vez com menos interesse, incapaz de responder às novas perguntas, empenhada como está em manter, como intocáveis, alegadas "verdades" que não sabe como é possível continuar a defender. E dá exemplos: "Como podemos continuar a falar de Deus, com a segurança com que dizemos o que Ele pensa e quer, sabendo que Deus é o Transcendente, não estando portanto ao nosso alcance? Como é possível falar de Deus sem saber exactamente o que dizemos? Como se pode assegurar que "por um homem entrou o pecado no mundo"? Vamos continuar a apresentar como verdades centrais da nossa fé o que na realidade são mitos que têm mais de quatro mil anos? Com que argumentos se pode assegurar que o pecado de Adão e a redenção desse pecado são verdades centrais da nossa fé? Como é possível defender que a morte de Cristo foi um "sacrifício ritual" de que Deus precisou para nos perdoar as nossas faltas e salvar-nos? Como se pode dizer que o sofrimento, a desgraça, a dor e a morte são "bênçãos" que Deus nos manda? Porque continuamos a manter rituais litúrgicos que têm mais de 1500 anos e que ninguém entende nem sabe por que razão se continua a impor às pessoas? É mesmo verdade que acreditamos no que nos é dito em alguns sermões sobre a morte, o purgatório e o inferno?" E a lista de perguntas sobre doutrinas estranhas e contraditórias poderia continuar. E as igrejas esvaziam-se. E uma das razões é uma teologia paupérrima, tolhida pelo medo.

Aí está uma das razões por que Francisco tem tantos adversários e mesmo inimigos. E ele o que faz? Para abrir o caminho de uma teologia aberta, depôs o cardeal G. Müller de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e substituiu-o pelo jesuíta L. Ladaria. Continua a ir em frente, procurando pôr em marcha o Evangelho a favor da humanidade. E socorre-se também do bom humor, e todos os dias reza a oração do bom humor, oração de São Thomas More, o autor de A Utopia, que não se esqueceu de levar a gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a também aos membros da Cúria Romana, sobretudo aos díscolos:

"Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/e que não se amedronta facilmente diante do mal,/mas, pelo contrário, encontra os meios para voltar a colocar as coisas no seu lugar./Concede-me, Senhor, uma alma/que não conhece o tédio, /os resmungos,/os suspiros/ e as lamentações,/nem o excesso de stress por causa desse estorvo chamado "Eu"./Dá-me, Senhor, o sentido do bom humor./Concede-me a graça de ser capaz de uma boa piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria /e poder partilhá-la com os outros./Ámen."

Anselmo Borges no Diário de Notícias de hoje