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sábado, 26 de dezembro de 2020

Gafanha: Mulheres amanham a terra

“Nas Gafanhas da Nazaré, da Encarnação, na d'Aquém, na do Carmo, na Vagueira,... em todas as Gafanhas de Ílhavo, as mulheres amanham a terra, durante o tempo (às vezes, dez meses por ano!) em que os homens pescam o bacalhau nos mares distantes da Terra Nova, da Gronelândia, da Costa do Labrador. Elas cavam, semeiam, ceifam e colhem: duramente, com sanha viril. E assim se bastam e aos filhos. Quando o marido vier da campanha, encontrará a casa cheia como um ovo; e branquinha, sem sombra de dívida: Então com a ajuda de Deus, ele poderá comprar mais um pedaço de terra.
É assim com o Ribau, com o Chibante... com muitos outros. Com o Sarabando, também gafanhão e dos sete costados, não será bem assim: muitos filhos e todos pequenos ainda. Mas já alguém o viu triste, ao nosso Sarabando? Eu cá, nunca. Pobrete, mas alegrete.”


In "Nos mares do fim do mundo",
de Bernardo Santareno

Foto de "As mulheres do meu país" de Maria Lamas 

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Bernardo Santareno - Meditação



«Se para lá do leito que limita este mar profundo, houvesse um outro mar ainda mais fundo e depois deste um terceiro e outro e outro… se através de todos estes mares, eu fosse descendo em vertigem… se assim descendo, me fosse esquecendo de ideias, imagens, desejos e afectos… se depois do último mar, de mim restasse somente um simples ponto luminoso, brilhante num túnel de treva densa… se eu vencesse a angústia, o terror, o desértico vazio deste túnel negro… se eu suportasse o silêncio terrível desta noite cerrada e sem estrelas…: Então, talvez eu pressentisse a madrugada que se evola do sorriso de Deus… talvez eu ouvisse a Música inefável, oculta para lá do humano silêncio… talvez eu fosse penetrado pela alegria de Deus, pela simples claridade de Deus: tão pura e tão simples, que nenhuma das palavras que os homens sabem a pode conter!... Só então, ultrapassados abismos de mares sucessivos, perdido das minhas mãos e do fruto que as chama, cortadas as raízes da minha voz de sangue, separados os meus gestos das aves que os voam… só então, aniquilado, perdido de mim, um simples ponto luminoso na treva mais absoluta… só então, verei a luz virgem, oculta no riso de Deus!» 

In “Nos mares do fim do mundo”, 
de Bernardo Santareno

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

BERNARDO SANTARENO - Médico e Dramaturgo



«A propósito do centenário do nascimento de Bernardo Santareno, celebrado a 19 de novembro de 2020, o Museu Marítimo de Ílhavo e a Biblioteca Municipal de Ílhavo vão lançar, entre os dias 19 e 22 de novembro, um conjunto de vídeos nas respetivas páginas de Facebook, que evocam a obra do dramaturgo e médico da frota bacalhoeira.
Durante quatro dias serão lançados dois vídeos por dia (um de manhã e outro à tarde), com leituras de excertos da obra de Bernardo Santareno, alguns dos quais encenados: “Nos Mares do Fim do Mundo”, encenado por alguns participantes em projetos de teatro de comunidade do Município de Ílhavo; “Heróis do Mar”, encenado por jovens do grupo de teatro Mar Alegre; e poesia, recitada por colaboradores da Câmara Municipal de Ílhavo.»

NOTA: Imagem e texto do MMI. Ver programa aqui 

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

RELER É UM PRAZER

Um livro de Bernardo Santareno 




Reler é um prazer. E quando os livros me dizem algo de especial, muito maior é o prazer. O livro que ando a reler – NOS MARES DO FIM DO MUNDO – é do dramaturgo Bernardo Santareno. Foi escrito com base em duas viagens que o escritor fez, como médico, na frota da pesca do bacalhau, nos anos de 1957 e 1958. Nos navios “David Melgueiro”, “Senhora do Mar” e navio-hospital “Gil Eannes”. Nesta obra, Bernardo Santareno conta-nos deliciosas e comoventes histórias de pescadores à linha nos mares da Terra Nova e da Gronelândia, com quem privou de perto. Não se preocupou muito com os oficiais de bordo, mas enalteceu a tenacidade dos que, cada um no seu dóri, enfrentaram os mares gelados, com risco constante da própria vida. Os últimos pescadores do mundo a deixarem este tipo de pesca. 
O escritor dedica o seu livro essencialmente a esses: “A todos os pescadores bacalhoeiros portugueses, que têm o riso claro e feroz; Que sempre ocultam nos olhos um aceno de morte; Que todos os dias, naturalmente, fazem milagres de força; Que, se a pesca adrega de ser boa, cantam e bailam sozinhos, como os meninos e os loucos… Que são tipos perfeitos da raça.” 
Neste trabalho, o dramaturgo recorda-me histórias que ouvi desde menino. Apelidos de pescadores que me foram próximos, porque gafanhões e ilhavenses; naufrágios de que tanto ouvi falar, como o do “Maria da Glória”, em que morreram gafanhões meus vizinhos; a vida a bordo dos que nunca esquecem a família; as mulheres dos “mais rijos navegadores do mundo”; as competições e ‘guerras’ entre pescadores; e tantas outras estórias cheias de poesia e de ternura que é tão saboroso ler e reler.
No fim do livro, o escritor não deixa de reflectir o que foram estas viagens com estes bravos. Diz assim: “Faço, mais uma vez, o exame da minha consciência: Cumpri realmente bem? Fui o clínico seguro e decisivo, o amigo sereno e infatigável (eu ia a escrever o “pai”) de que estes mil e tantos homens precisavam? Nem sempre: por ignorância, por tibieza, por comodismo. No entanto, uma verdade quase me sossega: Eu amo estas gentes. E elas sabem que assim é.” 

Fernando Martins

terça-feira, 28 de novembro de 2006

MEDITAÇÃO - BERNARDO SANTARENO



MEDITAÇÃO 

Se para lá do leito que limita este mar profundo, houvesse um outro mar ainda mais fundo e depois deste um terceiro e outro e outro… se através de todos estes mares, eu fosse descendo em vertigem… se assim descendo, me fosse esquecendo de ideias, imagens, desejos e afectos… se depois do último mar, de mim restasse somente um simples ponto luminoso, brilhante num túnel de treva densa… se eu vencesse a angústia, o terror, o desértico vazio deste túnel negro… se eu suportasse o silêncio terrível desta noite cerrada e sem estrelas…: Então, talvez eu pressentisse a madrugada que se evola do sorriso de Deus… talvez eu ouvisse a Música inefável, oculta para lá do humano silêncio… talvez eu fosse penetrado pela alegria de Deus, pela simples claridade de Deus: tão pura e tão simples, que nenhuma das palavras que os homens sabem a pode conter!... Só então, ultrapassados abismos de mares sucessivos, perdido das minhas mãos e do fruto que as chama, cortadas as raízes da minha voz de sangue, separados os meus gestos das aves que os voam… só então, aniquilado, perdido de mim, um simples ponto luminoso na treva mais absoluta… só então, verei a luz virgem, oculta no riso de Deus! 

In “Nos mares do fim do mundo”, de Bernardo Santareno