Antigamente, os cricos eram do povo. Os cricos eram (e são) os berbigões. O povo, com toda a naturalidade, ia apanhá-los à ria. A ria, noutros tempos, era também do povo.
O povo pegava num cesto ou num balde, arregaçava as calças ou as saias, e num instante arranjava que comer. Os cricos comiam-se crus, abertos numa chapa aquecida ao lume, cozidos ou com cebolada. Lembro-me como se fosse hoje.
Os tempos passaram e a ria começou a ser alugada para nela “semearem” cricos e amêijoas. Que eu saiba, ainda não a venderam a ninguém. E o povo começou a ficar limitado na apanha desse conduto. Mas o povo era sábio. Os cricos não se podiam comer em meses sem “r”. Os que arriscavam podiam ter que andar com as calças na mão. Que eu saiba não morreu ninguém.
Depois foram fechando a ria ao povo da Gafanha da Nazaré. Cais, portos, fábricas e estradas reduziram o acesso a quem gostava de apanhar cricos, amêijoas, mexilhão, navalhas. E de pescar uns peixitos. Inventaram as licenças para quase tudo. E o povo ficou, em parte, sem liberdade para usufruir em pleno da sua laguna.
Havia, como hoje, quem vivesse da apanha de bivalves. Mas leis são leis e as análises de vez em quando acusam a presença de toxinas. Vai daí, proíbe-se a apanha porque é perigoso. Em toda a ria. Como se toda ela estivesse contaminada. E como se não houvesse processo de matar as ditas toxinas. Claro que há o defeso, que todos aceitam, para regular o crescimento dos bivalves.
Os mariscadores, como são conhecidos, protestam com frequência. Se calhar têm razão. Talvez não tenham sido suficientemente esclarecidos. Talvez fosse bom criar um equipamento para matar as toxinas, garantindo a qualidade alimentar dos bivalves. Talvez… Talvez…
Desculpem este desabafo. É que hoje senti saudades da liberdade com que entrávamos na ria. Para molhar os pés, para nadar, para pescar, para apanhar cricos.
Fernando Martins