sexta-feira, 22 de setembro de 2017

No Outono da vida



Estamos no outono da vida sem cansaços nem desânimos. A vida continua em nós e irradia, indelevelmente, para os que nos cercam. A primavera e o verão deram-nos o aconchego necessário para mantermos o sorriso da felicidade vivida com esperança de continuidade. Eis-nos no outono do calendário com a mesma disposição de sempre, de espírito aberto a quem nos ouve e quer bem. Também a tantos com quem nos cruzamos nas inquietudes dos tempos incertos, porém enriquecidos pelos encantos que a natureza se encarrega de matizar os nossos dias. Não há nem pode haver pessimismos entre nós. O otimismo é norma de vida constante.
A natureza dá-nos lições extraordinárias que nem sempre captamos com a pressa dos dias. Floresce na primavera, frutifica no verão, fica depenada no outono e adormece em sono semelhante ao da morte no inverno. E depois, como que por milagre, salta para a luz do dia... 
Os seres vivos são assim. Nascem, crescem, reproduzem-se, envelhecem e morrem. Os humanos, contudo, preservam memórias e deixam rastos de luz ou de sombras nos que lhes sucedem. Bom seria que todos deixássemos apenas luz. 
No outono da vida os humanos têm a sua riqueza: revivem o passado, sentem-se membros ativos da família e da sociedade, oferecem experiências, partilham saberes e sabores, recomendam atitudes benfazejas, estabelecem uniões, constroem pontes, dão e recebem amor. E esperam pacientemente o inverno, com a grata certeza de que fizeram o melhor que souberam e puderam durante a longa existência. 
Bom outono para todos.

Fernando Martins

Anselmo Borges — Francisco sobre: 1. si próprio


Quem é e o que pensa e quer verdadeiramente o Papa Francisco para a Igreja e para a humanidade?
Durante mais de um ano, na discrição, Dominique Wolton, um intelectual francês, laico, director de investigação no CNRS (Centro Nacional de Investigação Científica), especialista em comunicação, e o Papa Francisco encontraram-se 12 vezes para diálogos sobre os temas mais candentes do nosso tempo e da existência humana: a paz e a guerra, a política e as religiões, a Europa e os imigrantes, a mundialização e a diversidade cultural, os fundamentalismos e a laicidade, a ecologia, as desigualdades, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, a alteridade, a família, a ideologia do género, o tempo, a alegria. Desses encontros resultou uma obra inédita e surpreendente. Acaba de ser publicada com o título: Politique et Société e a que dedicarei algumas crónicas. Hoje, a primeira, precisamente sobre Francisco, que se confessa.

O que é que mais o marca? "Há algo que, mesmo quando era criança, sempre me fez sofrer. É o ódio, a guerra." O que é que mais o comove? "Os actos de ternura fazem-me sempre bem, a compreensão, o perdão... Mas não só no campo religioso. Em toda a parte. A ternura é qualquer coisa que me traz muita paz." Por isso, fala do "analfabetismo afectivo". O que é que lhe provoca cólera? "A injustiça. As pessoas egoístas. E eu próprio, quando estou nessa situação. Preciso de muito tempo para convencer-me de que o Senhor me perdoou, depois pedir perdão à pessoa e fazer alguma coisa para reparar essa injustiça. Mas há o irreparável." O seu maior defeito? "É um pouco o oposto do que se julga de mim. Tenho uma certa tendência para a facilidade e para a preguiça." E a qualidade principal? "A qualidade... eu diria simplesmente que gosto de escutar os outros. Porque descubro que cada vida é diferente. E que cada pessoa tem o seu caminho." É feliz? "Sim. Sou feliz. Eu sou feliz. Não por ser Papa, mas o Senhor deu-me isto e rezo para não cometer asneiras... Mas cometo."

Para comunicar humanamente, é preciso "baixar-se, colocar-se ao nível do outro. Baixar-se, não porque o outro é inferior, mas por humildade..., trata-se de um acto que consiste em "ir à casa do outro". Sou eu que devo ir lá."
Em casa ouvia-se ópera e "comecei a falar de música tinha eu 15, 16 anos... Pus-me a sonhar como gostaria de ser chefe de orquestra".

E o papel das mulheres na sua vida? "Agradeço pessoalmente a Deus por ter conhecido verdadeiras mulheres na minha vida. As minhas duas avós eram muito diferentes, mas ambas verdadeiras mulheres... Depois, a minha mãe. A minha mãe. Era uma mulher, uma mãe. Depois, as irmãs. É importante para um homem ter irmãs, muito importante... Depois, houve as amigas da adolescência, as "namoraditas"... Estar sempre em relação com as mulheres enriqueceu-me. Aprendi, mesmo na idade adulta, que as mulheres vêem as coisas de um modo diferente do dos homens. Porque, perante uma decisão a tomar, perante um problema, é importante escutar os dois."

Depois da adolescência houve alguma mulher que o tenha marcado particularmente? "Sim. Houve uma que me ensinou a pensar a realidade política. Era comunista. Foi morta durante a ditadura. Era química, chefe do departamento onde eu trabalhava, no laboratório de bromatologia. Esther Ballestrino de Careaga. Deu-me livros, todos comunistas, mas ensinou-me a pensar a política. Devo tanto a essa mulher."

Qual o lugar das mulheres na Igreja? "É muito importante. Com a reforma da Cúria, haverá muitas mulheres que terão um poder de decisão, não apenas de aconselhamento." Qual é o problema da reforma da Cúria? "O poder." Vai conseguir? "Sim... ouvi um velho cardeal dizer-me: "Não desanimes, porque o caminho da reforma da Cúria é difícil. E que a Cúria não deve ser reformada, ela deve ser suprimida [risos]. No gozo, evidentemente. É impensável, a Cúria é indispensável."

E consultou uma psicanalista. "A um dado momento da minha vida em que tive necessidade de consultar. E consultei uma psicanalista judia. Durante seis meses fui a casa dela uma vez por semana para esclarecer certas coisas. Ela foi muito boa. Muito profissional como médica e psicanalista. Manteve-se sempre no seu lugar. Depois, quando estava já para morrer, chamou-me. Não para os sacramentos, pois era judia, mas para um diálogo espiritual. Durante seis meses, ajudou-me muito, tinha eu na altura 42 anos."

Bem-aventurada a pessoa que, como Francisco, pode dizer: "Sou livre. Sinto-me livre. Isso não quer dizer que faço o que quero, não. Mas não me sinto prisioneiro, na gaiola. Na gaiola aqui, no Vaticano, sim, mas não espiritualmente. Não sei se é assim... A mim nada me mete medo. Talvez seja inconsciência ou imaturidade! Sim, as coisas são assim, faz-se o que se pode, as coisas assumem-se como são, algumas andam para a frente, outras não... Talvez seja superficialidade, não sei. Não sei como chamar a isso. Sinto-me como um peixe na água."

P.S. Quando foi nomeado para bispo do Porto, escrevi aqui que até no nome era Francisco: António Francisco dos Santos. Um homem humilde, afável, próximo, discreto. Um cristão. Há prioridades, alertou, aquando da sua entrada na diocese: "Os pobres não podem esperar." Contou-me como uma vez, após uma missa pontifical, lhe apareceu um sem-abrigo a pedir dinheiro para comer. Convidou-o para almoçar com ele no paço episcopal. No fim, também lhe pediu dinheiro para cortar o cabelo. Mandou-o ao barbeiro dele, um conterrâneo, que um dia lhe telefonou: "Está aqui um mendigo a dizer que foste tu que lhe disseste para vir aqui, que tu pagavas..." "É verdade, faz como se fosse para mim!" Morreu inesperadamente, também por causa da sua inexcedível bondade incompreendida e não correspondida.

Anselmo Borges no DN 

Georgino Rocha — Tens inveja por eu ser bondoso?



Esta pergunta é feita pelo dono da vinha que mostra a sua bondade ao pagar por igual aos trabalhadores contratados. Os queixosos começam a murmurar e questionam abertamente o seu proceder. Aduzem diferenças de horário e de condições do tempo variáveis ao longo da jornada. E desabafam dizendo: “Suportámos o peso do dia e o calor”. E era verdade, pois vêem os que trabalharam apenas uma hora receberem a mesma paga.
Aquela pergunta é a última de três. “Amigo, diz a um deles, em nada te prejudico. Não foi um denário que ajustaste comigo? Leva o que é teu e segue o teu caminho. Eu quero dar a este último tanto como a ti. Não me será permitido fazer o que quero do que é meu? Ou serão maus os teus olhos porque eu sou bom?”

Jesus conta parábolas que são histórias da vida corrente, acessíveis e cheias de sabedoria, para ajudar os ouvintes a descobrir a novidade que anuncia ou seja que o proceder de Deus é surpreendente e desconcertante, que os seus critérios de avaliação são diferentes em relação aos nossos, que a sua preocupação maior é o bem de todas as pessoas e não apenas o interesse de algumas. Mateus, hábil narrador, faz um belo relato do que terá acontecido e tem particular impacto nas comunidades a que dirige o seu Evangelho. Um dos maiores problemas estava relacionado com os judeus ouvirem dizer que outros povos receberiam as mesmas bênçãos de Deus, teriam acesso aos bens do Reino, seriam considerados herdeiros das promessas. Mesmo convertendo-se, mas sem passarem pelas práticas religiosas judaicas. A fidelidade às tradições impede-os de se abrirem à novidade que surge em Jesus de Nazaré e de começarem a acolher um Deus diferente na sua relação com todas as pessoas. Simplesmente porque é bom e a sua misericórdia se estende a todas as criaturas, como reza o salmo hoje recitado.

A bondade como prática pastoral prolonga este modo de ser e de agir do nosso Deus. A Igreja, que somos nós em comunhão de irmãos com o nosso Bispo e o Papa Francisco, tem aqui a regra de ouro para o seu proceder e a sociedade a pauta da verdade para o robustecimento da cidadania. Dom António Francisco dos Santos deu rosto humano irradiante à bondade e deixa-nos a certeza de que: "Só pela bondade aprenderemos a fazer do poder um serviço, da autoridade uma proximidade e do ministério uma paixão pela missão de anunciar a alegria do evangelho".

A parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20, 1-16a) é muito rica de sentidos e tem um alcance enorme para desvendar o projecto de salvação que Deus oferece à humanidade ao longo dos tempos. João Paulo II faz-lhe um comentário magistral ao apresentar a Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo, em 1988. Diz o Papa logo na introdução: “A parábola do Evangelho abre aos nossos olhos a imensa vinha do Senhor e a multidão de pessoas, homens e mulheres, que Ele chama e envia para trabalhar nela. A vinha é o mundo inteiro (Cf Mt 13,8), que deve ser transformado segundo o plano de Deus em ordem ao advento definitivo do Reino de Deus”. “O convite do Senhor Jesus «Ide vós também para a minha vinha» continua, desde esse longínquo dia, a fazer-se ouvir ao longo da história: dirige-se a todo o homem que vem a este mundo”.

Tendo presente este horizonte tão rasgado, vale a pena mergulhar na realidade em que vivem os judeus e fazer brilhar alguma centelha de luz para a nossa situação actual. O trabalho aí está a interpelar profundamente a consciência humana, as leis laborais e a organização da sociedade. Os direitos adquiridos com o seu cortejo de exigências em que sobressai sempre o interesse individual, impõe-se sem piedade, quebra todos os laços de solidariedade e acaba por desumanizar as pessoas. Os critérios de rentabilidade invadiram a cultura actual que faz ecoar por toda a parte: “quanto vale”, “para que serve”, “só o útil merece a pena” eliminam o gratuito, o dom, o amor solidário e oblativo, isto é, reduzem a pessoa a um objecto prestes a ser substituído por um robot ou um drone. A economia de mercado cresceria em humanidade se tivesse em conta a economia solidária, de comunhão, do dom de Deus que nos é legado. “O Evangelho é norma de sabedoria e critério determinante de humanidade” (J.M. Castillo, La Religión de Jesús, p. 397).

Tens inveja por eu ser bondoso? Pergunta que desafia a mente humana e, sobretudo o coração dorido por tantas vítimas “sobrantes” como os últimos convidados da parábola. O proceder do dono da vinha é justo, segue à risca o que contratou de forma explícita e estende a sua bondade àqueles que, sem o salário da jorna, não tinham o indispensável para o dia seguinte. O contexto ajuda a medir o alcance da parábola: Respeitar a justiça e dar largas à generosidade compassiva. Bela lição!

Georgino Rocha

Miguel Torga — Outono

OUTONO

Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.

Miguel Torga,
in Poesia Completa, pág. 754

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Divorciados recasados pedem à Igreja a bênção de Deus




“Não deixa de ser estranho que a Igreja no seu Ritual de Bênçãos contemple tanta diversidade de pessoas, de animais e de coisas e mostre relutância em atender o pedido de divorciados recasados que as desejam para a sua nova situação”, diz-me um amigo de velha data familiarizado com esta temática. Estou de acordo com ele, embora para suavizar a intensidade da queixa lhe lembre que é para evitar confusões com os ritos do matrimónio sacramental. Ele prossegue: “Por medo a confusões e ao risco, a história dá-nos lições de profecia, vendo a realidade cultural a avançar e certas instâncias da Igreja a ficarem paradas no tempo ou mesmo a entrar em conflito com as novas realidades”. E o Papa Francisco a proclamar que prefere uma Igreja acidentada, hospital de campanha…

Festa dos Bacalhoeiros — 23 de setembro


«Para assinalar o 80.º aniversário da sua fundação, o Museu Marítimo de Ílhavo organiza a Festa dos Bacalhoeiros, um encontro entre gerações de homens de todo o país que andaram ao bacalhau nos mares gelados do Atlântico Norte, com relatos de vivências, visitas ao Museu e ao Navio-Museu Santo André, bem como um almoço partilhado no Jardim Oudinot. Durante o dia será apresentada a versão final do Portal Homens e Navios do Bacalhau, uma ferramenta digital de recolha e de partilha da memória coletiva da grande pesca, que permite a inclusão, pelos familiares ou pela comunidade, de novas informações, imagens, vídeos ou documentos. Este portal é fruto da junção de duas preciosas bases de dados – as fichas de inscrição do Grémio dos Armadores dos Navios da Pesca do Bacalhau e a base de dados Frota Bacalhoeira Portuguesa 1835-2005 – resultando num museu virtual do património humano da pesca do bacalhau que relaciona dois elementos fundamentais para a pesca do bacalhau: os homens e os navios.»


Nota: Texto e foto do MMI

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Senos da Fonseca — “Saga Maior - Os «ílhavos» no marear da vida litoral fora”




“Saga Maior — Os «ílhavos» no marear da vida litoral fora (Séc. XVIII a Séc. XX)”, de Senos da Fonseca, foi um dos livros do meu habitual período de férias. Li-o com a serenidade devida a obra tão esperada e elucidativa sobre a diáspora dos ílhavos pelo litoral português, onde deixaram «uma marca indelével de traços identitários, ainda hoje bem perdurantes da cultura ilhavense», como sublinha o autor. 
Para abrir o apetite, Senos da Fonseca brinda os leitores com um saboroso naco de prosa poética de Maia Alcoforado, de que transcrevo apenas o último parágrafo: «E a embrulhar-lhe o peito [do ílhavo, claro], mais rijo que um cepo, o blusão de flanela salpicado de cores, onde arrecada a onça mail’o cachimbo, os lumes e o lenço d’Alcobaça — quase tão grande como as bandeiras do mariato».
Senos da Fonseca é um apaixonado pela sua terra. Emociona-se e empolga-se com o historial da Saga Maior, não se cansando de ouvir «noites e noites a fio» histórias dessa saga que lhe deixaram marcas profundas na alma, de tal modo que correu meio mundo para registar ao vivo vestígios palpáveis desse passado, para as doar, de mão beijada, às gerações atuais e futuras, como herança que urge preservar. 
A diáspora dos ílhavos pelo litoral português não foi fruto apenas do espírito de aventura, mas resultou das circunstâncias impostas pela natureza. Laguna de águas estagnadas e sem acesso ao mar ditaram a sentença e a demanda de novos desafio tornou-os migrantes. «E num exercício de prodigiosa temeridade, lançaram-se à pancada do mar, a procurar sustento para sobrevivência», refere o autor.
Tejo e Douro foram desafios para os primeiros ílhavos, como desafios também foram as artes de pesca que souberam implementar e adaptar, influenciados pela Catalunha, «via Galiza». E neste trabalho, profusamente ilustrado, o autor disseca barcos e redes, brindando-nos com pormenores enciclopédicos, para mim, pelo menos, que sou leigo em tais matérias.
Li capítulo a capítulo, página a página, debrucei-me sobre as muitas fotografias e desenhos técnicos, e fiquei a saber mais do que o suficiente sobre a chegada de Luís Barreto à Costa Nova, a presença dos ílhavos em Cova e Costa de Lavos, os Palheiros de Mira e da Tocha, Leirosa e Pedrógão, os Avieiros e Costa da Caparica, Costa da Lagoa de Santo André, Buarcos, Peniche e Sesimbra, Nazaré e Algarve, entre outras povoações. Por todas estas terras, de Norte a Sul de Portugal, Senos da Fonseca registou motivos identitários, embarcações, Capelas, naufrágios, mestres e figuras marcantes da gesta ilhavense. 
Destaque ainda para o linguajar do litoral e para a bibliografia e glossário, sempre fundamentais em obras deste género. 
O autor contou com o apoio à edição de Ana Maria Lopes.

Fernando Martins

Da Alegria e da Tristeza



«Alguns de entre vós dizem: “A alegria é maior que a tristeza”, e outros dizem: “Não, a tristeza é maior». Mas eu vos digo que elas são inseparáveis. 
Juntas elas surgem e, quando uma se senta sozinha convosco à mesa, recordai-vos de que a outra está a dormir na vossa cama.»

Khalil Gibran,
in “O Profeta”

Manuel António Assunção — D. António Francisco: um tributo


A partida prematura do Bispo do Porto determinou, inexoravelmente, a minha crónica de hoje. Honrou-me D. António Francisco com a sua amizade. Mas mais do que isso, privilegiou-me com o seu convívio, com a partilha de tantos episódios emocionalmente ricos, principalmente com a vivência das suas ideias e das suas práticas.
É difícil imaginar um homem tão autêntico no seu modo de ser e tão genuíno na sua essência. Eu não encontrei muitos, se é que encontrei algum. Era uma pessoa intrinsecamente boa, um ser humano de primeira grandeza. Lembro-me de uma das primeiras vezes em que estivemos juntos, uma bênção de finalistas na Universidade de Aveiro. A cerimónia prolongou-se em excesso e de uma forma que pôs em causa a dignidade do ato e o respeito devido pela presença do então bispo de Aveiro. D. António, imperturbável, prosseguiu no seu caminho de conceder a cada representante de curso a palavra devida com a bonomia que o caracterizava, no tempo e no modo programados. E no fim ainda me veio agradecer, reconhecido pelo que entendeu ser a minha resistência solidária para com ele. Marcou-me muito este seu saber estar, ao mesmo tempo tão inteligente e tão humilde.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Divorciados recasados fazem caminho


Constitui uma fonte preciosa o legado de D. António Francisco dos Santos em vários âmbitos do agir pastoral da Igreja. No caso presente da relação a promover com os divorciados recasados. Em entrevista de 2015 para a revista “Vida Nueva” afirma: “Diante da Igreja e na Igreja todas as pessoas têm nome, rosto, alma e coração. Muitas vezes, um coração partido, a sofrer, dorido, por muitas desventuras! Mas a Igreja tem de saber acolher e fazer um caminho em comum nesse sentido” E mais adianta, como informa António Marujo: “Temos também de saber reflectir com eles, não apenas acolher. Importa saber ouvir e decidir com os casais divorciados recasados os caminhos de cada um no empenhamento concreto na vida da Igreja. Mesmo com aqueles que estejam em situações de ruptura ou de não aceitação das orientações da Igreja, sabemos que nunca podem ser marginalizados e que podem sempre encontrar a Igreja aberta.”

domingo, 17 de setembro de 2017

Miguel Torga — Um poema


UM POEMA

Um poema, poeta!
É o que a vida te pede.
A fome diligente
Colhe
E recolhe
Os frutos e a semente
Doutros frutos.
Junta à fecundidade
Da natureza
Os frutos da beleza...
Versos grados e doces
Na festa do pomar!
Versos, como se fosses
Mais um ramo, a vergar.


Miguel Torga,
in "Poesia Completa"

Ilustração da rede global

Bento Domingues — Este Papa é uma decepção!



1. Num dos períodos de conflito armado mais ameaçador e de medo generalizado, dei aulas e fiz conferências de teologia em Bogotá e Medellin. Depois de 50 anos de horror, comoveu-me a coragem e o empenhamento do papa Francisco, no meio de muitas dificuldades locais, em intensificar e tornar irreversível o processo de paz na Colômbia.
Bergoglio não foi celebrar um país reconciliado, sem traumas nem ressentimentos. Quis contribuir para que todos desejem que o diálogo e a reconciliação se tornem o estilo de vida do país.
É difícil aceitar que o ressentimento do ex-presidente Álvaro Uribe — que se confessa um fervoroso católico — o tenha tornado alérgico à iniciativa do Papa, que declarou aos colombianos: “Foi demasiado o tempo que passaram no ódio e na violência; não queremos que mais nenhuma vida seja anulada ou restringida.” A conversão não é um acontecimento impossível.
Bergoglio não escolheu apenas o nome de Francisco de Assis. Em todo o lado, na Europa, no Oriente, em África, nas Américas, na Ásia, a sua vontade é realizar a oração que dele recebeu: “Senhor, fazei de mim um instrumento da vossa paz; onde houver ódio, que eu leve o amor; onde houver discórdia, que eu leve a união; (...); pois é dando que se recebe; é perdoando, que se é perdoado; é morrendo que se vive para a vida eterna.”
Mas se este é o espírito e o comportamento do Papa, porque suscitará ele tanta oposição?

2. Uma revista jesuíta [1] resolveu divulgar um texto de um biblista italiano, Alberto Maggi, membro da Ordem dos Servos de Maria, intitulado Desilusão. O autor desenhou uma tipologia que alguns julgarão simplista, mas talvez seja apenas tão exacta que lhe baste ser simples.
Segundo ele, tudo começou com um murmúrio discreto, que se tornou uma queixa e se foi ampliando. Agora, a resistência já é declarada: um confronto público, por vezes uma provocação acompanhada de ameaças de um cisma.
Francisco, em pouco tempo, conseguiu decepcionar quase todos. Esta decepção de ressentimento encapotado converteu-se em algo que está à vista de quem quiser ver. Alguns dos cardeais que o elegeram estão desiludidos. Parecia o homem ideal, sem esqueletos nos armários, doutrinalmente conservador, mas aberto às novas ideias. Com ele poder-se-ia garantir um tempo de paz no meio dos escândalos da Igreja, um período sem turbulências nem divisões.
Nunca imaginaram que Bergoglio tivesse a intenção de reformar a Cúria Romana, de acabar com os seus privilégios e fustigar as vaidades do clero. A sua presença, simples e espontânea, é uma acusação constante aos prelados pomposos, faraónicos, anacrónicos, cheios de si mesmos.
Os bispos carreiristas estão decepcionados. A nomeação para uma cidade era só um passo para uma posição de maior prestígio. Estavam prontos a clonar-se com o pontífice de serviço, imitá-lo sempre em tudo, desde os gestos externos até aos doutrinais, fazer qualquer coisa para lhe agradar e obter os seus favores. Agora, vem este Papa e convida os bispos ambiciosos e vaidosos a ter o cheiro das suas ovelhas... Que horror!
Uma parte do clero também está decepcionada. Esse clero sente-se perdido. Criado no estrito cumprimento da doutrina, indiferente ao povo de Deus, já não sabe que fazer. Tem de recuperar um sentido de “humanidade” que o escrupuloso cumprimento das normas da Igreja tinha atrofiado. Pensava que estava, como “sacerdote” (presbítero), acima dos fiéis e, agora, este Papa convida-o a descer e a colocar-se ao serviço dos últimos...
Decepcionados também estão os leigos empenhados na renovação da Igreja, assim como os tradicionalistas superapegados ao passado. Para estes últimos, o Papa é um traidor, a ruína da Igreja. Para os primeiros, não está a fazer o suficiente, não muda nem as regras nem as leis que já não estão em sintonia com os tempos, não legisla, não usa a sua autoridade como “comandante” da Igreja...
Os mais entusiasmados com ele são os pobres, os marginalizados e invisíveis e também aqueles cardeais, bispos, padres e leigos que, durante décadas, estiveram afastados por causa da sua fidelidade ao Evangelho, encarados com suspeita e perseguidos por causa da sua mania louca de ligar mais à Sagrada Escritura do que à tradição.
Aquilo que só haviam esperado, sonhado ou imaginado converteu-se numa realidade com Francisco, o Papa que fez descobrir ao mundo a beleza do Evangelho.

3. Alberto Maggi não tinha de falar de tudo. Os leitores portugueses podem e devem completar os mapas locais e o mundo das suas relações cujas percepções serão, naturalmente, muito variadas.
Pelo que ouço dizer e observo, em Portugal existem movimentos e orientações paroquiais, discretamente empenhados em contrariar as consequências dos gestos, das palavras e das intervenções do Papa. Quando ele diz que a reforma litúrgica é irreversível, esses movimentos, organizações e personalidades não fazem declarações públicas de que estão contra ela. Adoptam gestos e devoções que a contrariam. Isto sem falar nos textos que escrevem para mostrar que o Papa é um homem de boa vontade, mas incompetente do ponto de vista teológico, para orientar a Igreja. O que lhe falta em teologia sobra-lhe em atrevimento e falta de respeito pelo Direito Canónico.
No meu ponto de vista, seria péssimo que os gestos e as atitudes do Papa não fossem discutidos. O uso da liberdade de expressão na Igreja é um direito e um dever. Aliás, é o que este Papa mais exerce e mais deseja para todos. O que é inaceitável é que aqueles que sempre atacaram a liberdade no passado usem todos os meios para restaurar um tempo em que só eles e os da sua tendência tinham direito de expressão. Servir-se de um tempo de liberdade para a destruir não é o caminho da ética humana e cristã mais respeitável.

P.S.: Foi no dia em que escrevi esta crónica que soube da morte do bispo do Porto, António Francisco dos Santos, o bispo português de quem mais gostava e que sempre me acolheu com muita amizade.

[1] http://www.jesuitas.co/21780.html

Frei Bento Domingues no Público 

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