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sexta-feira, 11 de março de 2022

Os Irmãos

Da Ucrânia com amor, crónica 
de Adriano Miranda no PÚBLICO

Fixo um jovem fardado e hirto. Tem consigo a bandeira que jurou defender. É parecido com o meu filho mais velho. Recordo o rosto do João. Recuso-me a imaginá-lo de arma em punho.

O autocarro com militares está estacionado numa rua perto da igreja. Alguns comem. Imagino que o pequeno-almoço no quartel tenha sido madrugador. Uma bandeira da Ucrânia está enrolada num pau grosso e castanho. Fazem um compasso de espera. Chegará em breve o camarada. Ou dois camaradas. Ou três camaradas. Morto, ou mortos, na linha da frente. Será a hora da despedida. De homenagear com flores e lágrimas. São os novos heróis do país. Anónimos com bravura ou sem bravura.
Alinhados, os jovens militares comungam da oração. O que será uma bala? O que será um estilhaço? Como será a dor da pele a estalar e da carne a abrir? Qual o sentido desta guerra? Mas que guerra faz sentido? Fixo um jovem fardado e hirto. Tem consigo a bandeira que jurou defender. É parecido com o meu filho mais velho. Recordo o rosto do João. Recuso-me a imaginá-lo de arma em punho. Vestido de farda e colete à prova de bala. A matar para não morrer. O soldado do outro lado da trincheira também mata para não morrer. Afinal, são ambos soldados e juraram defender uma bandeira. Mas antes do juramento, são filhos do ventre de mães felizes na hora do primeiro choro e na alegria do primeiro banho. Depois virão os vermes. Sentados em luxuosas cadeiras, com dedos grossos e cachuchos reluzentes. As mães terão de dar os seus filhos. Será o juramento da hipocrisia e da vergonha. Os vermes riem de prazer. Terão carne para se defender.
Militares mortos entrarão pela cidade com grande frequência. A cidade ganhará nova rotina. Haverá muitos pais sem filhos e muitos filhos sem pais. Nervos contidos. Impotência devastadora. A guerra continua. As vidas estão suspensas ou desfeitas. A dor tomou conta de tudo e de todos. É a luta de irmãos contra irmãos. De mães contra mães. No horizonte, não se vislumbra o mastro da bandeira branca. Ninguém tem imaginação suficiente para adivinhar o fim. A guerra não é um conto de fadas.

Adriano Miranda no PÚBLICO   de  ontem

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Notas do meu diário — Catástrofe Nacional



Quis hoje retomar, a esta hora, a edição do meu blogue, mas não consegui superar a emoção que me tem afetado estes dias. A Catástrofe Nacional, com mais de 100 mortos e feridos no corpo e na alma sem conta, impediu-me de avançar. Li os jornais online e alguns comentários nas redes sociais; vi imagem chocantes e ouvi gritos de dor; protestos desesperados e gente sem voz; pessoas abandonadas e políticos em guerra; revoltas sem propostas e silêncios angustiados. Tudo isto num país pobre, desertificado, cheio de autoestradas e rotundas, com povo a sobreviver em casebres humildes e com velhos entregues à sua sorte em plenas serras e aldeias quase sem vida, ou com a vida dos que só estão bem nos sítios que amam. 
Veio a chuva, o fogo está extinto e daqui a uns tempos a vida recomeça como se nada de anormal tivesse acontecido. Fico-me por aqui… hoje.

NOTA: A foto, de Adriano Miranda, no PÚBLICO, retrata o drama dos nossos compatriotas que tudo perderam. Ficaram as cinzas, um ar irrespirável e uma dor a abafar-lhes a voz. Por habitação, um céu escuro e por cama uma enxerga em qualquer canto, se não tiverem amigos e familiares que os acolham.