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sábado, 6 de abril de 2024

O Deus solidário com as vítimas

Crónica de Anselmo Borges
para este fim-de-semana

Comunidades cristãs vivas estão assentes em três núcleos ou pilares, que se interpenetram e exigem mutuamente.
Evidentemente, tudo se baseia na fé em Jesus Cristo e no seu Evangelho — Deus é bom, Pai e Mãe — como determinantes na vida e na morte e a celebração fraterna e bela dessa fé.
O outro núcleo é o da prática da justiça e do amor, o do combate lúcido e eficaz pela dignidade livre de todos os homens e mulheres, a começar pelos mais pobres, pelos humilhados e excluídos, no seguimento de Jesus, do que Ele fez e como fez. Não há religião verdadeira sem justiça e solidariedade. Mas isto implica que a justiça e o respeito pelos direitos humanos têm de começar pelo interior da própria Igreja. Na Igreja, Jesus queria mais do que uma democracia, pois o que Ele propunha era uma filadélfia, isto é, comunidades de amigos e irmãos (lê-se no Evangelho de S. João: “Já não vos chamo servos, mas amigos”).
O terceiro núcleo, que pode ser o primeiro, é o da pastoral da pergunta, da interrogação, e tem a ver com dar razões da dúvida e razões da fé e da esperança. Lá está a Primeira Carta de São Pedro, capítulo 3, versículo 15: “No íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça.” Isto significa que a fé não pode encerrar-se nas muralhas de um dogmatismo fixo e morto, tem de abrir-se ao diálogo e à razão crítica.

sábado, 30 de março de 2024

Sexta-Feira Santa, Sábado Santo, Páscoa

Crónica Semanal de Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Deus é radicalmente questionado quando se é confrontado com a realidade brutal dos holocaustos da História e concretamente com a tortura e a morte dos inocentes. Neste domínio, é sempre incontornável a passagem célebre de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, em que Ivan Karamázov refere precisamente a crueldade exercida sobre as criança inocentes. "A ciência toda não vale as lágrimas das crianças", proclama. O que faremos com o sofrimento dos inocentes? Como se pode alguma vez justificar o injustificável? É tal a revolta de Ivan Karamázov que ele devolve respeitosamente a Deus o bilhete de entrada na harmonia final da história do mundo.
Em última análise, é o sofrimento e a morte que nos obrigam a pensar. Mas precisamente o sofrimento e a morte são o que a razão nunca entenderá, concretamente quando se trata do sofrimento e da morte das vítimas inocentes. É por isso que Miguel de Unamuno escreveu: "O mais santo de um templo é que é o lugar onde se vai chorar em comum". E acrescentava de modo dramático: "Um Miserere cantado em comum por uma multidão, açoitada pelo destino, vale tanto como uma filosofia."
O paradoxo é este: face ao calvário do mundo, Deus comparece perante o tribunal da razão. Por outro lado, para haver salvação, também e sobretudo para as vítimas inocentes, ela só pode vir de Deus. Deus tem de justificar-se, e, ao mesmo tempo, só ele pode justificar, isto é, salvar.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Jesus: o poder e a autoridade

Cronica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias

Terminada a festa do Carnaval, os cristãos entram na Quaresma: 40 dias de mais profunda meditação, de mais intensa conversão, de amor mais vivo e perfeito, em ordem a poder celebrar com mais dignidade a Páscoa do Senhor enquanto passagem da escravidão à liberdade, da morte à vida.
Logo na quarta-feira de cinzas, é dita a cada um, a cada uma, ao mesmo tempo que lhe é colocada cinza na cabeça em sinal de humildade e exigência de reflexão, aquela palavra de Jesus no início da sua pregação: “Convertei-vos e acreditai no Evangelho”, a Boa Nova, notícia boa e felicitante.
De modo significativo, no primeiro Domingo da Quaresma, lê-se a passagem do Evangelho referente às tentações de Jesus. Ora, é importante que se diga que as três tentações estão todas referidas ao poder: poder económico, poder político, poder religioso. Jesus, antes de iniciar a sua vida pública, foi para o deserto rezar, meditar, e tinha de decidir se queria ser um Messias político, do poder, ou um Messias do amor, do serviço. Foi por esta segunda alternativa que seguiu: “Eu não vim para ser servido, mas para servir”, e servir até dar a vida.

sábado, 27 de janeiro de 2024

As condições do urgente diálogo inter-religioso

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Tanta gente que foi morta ao longo dos séculos, vítima do ódio e de interesses económicos, políticos, geoestratégicos, imperativos de monopólio religioso, e em nome de Deus!... Haverá coisa mais abjecta e absurda? É evidente que o deus em nome do qual arbitrariamente se torturou, se assassinou, se vandalizou, não existe. Não passa de um ídolo execrável, que serviu de legitimação a interesses brutais, sujos, selváticos. Escusado será dizer que esse deus idolátrico produz, e tem de produzir inevitavelmente, ateísmo. Matar, mandar matar está nos antípodas do santo nome do Deus vivo.
E hoje essa tragédia continua. E porque entre nós não se fala disso, quero (entre parêntesis) apresentar alguns números sobre a perseguição dos cristãos, sabendo-se que o cristianismo é hoje a religião mais perseguida no mundo. Não é a única, evidentemente - pense-se, por exemplo, nos rohinga, adeptos da religião muçulmana, e na sua perseguição brutal em Myanmar, país maioritariamente budista. Segundo a ONG Puertas Abiertas, no seu relatório de 2024 referente à perseguição dos cristãos, acabado de ser publicado, entre 1 de Outubro de 2022 e 30 de Setembro de 2023, 14 766 lugares de culto foram destruídos ou encerrados e 4998 cristãos foram assassinados.

domingo, 12 de novembro de 2023

Sínodo: tentativa de balanço

Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias


O Papa Francisco ficará na História por muitos bons motivos, mas estou convicto de que a razão principal tem a ver com a tentativa de avançar para uma "Igreja sinodal", uma Igreja na qual todos caminham juntos. Percebe-se a revolução que pode constituir, quando se lê este texto do Papa Pio X, que até foi canonizado, na encíclica Vehementer Nos: "A Igreja é por natureza uma sociedade desigual. É uma sociedade composta por uma dupla ordem de pessoas: os pastores e o rebanho, os que têm um posto nos diferentes graus da hierarquia e a multidão (plebs, plebe) dos fiéis. As categorias são de tal modo diferentes umas das outras que só na hierarquia residem a autoridade e o direito necessários para mover e dirigir os membros para o fim da sociedade, enquanto a multidão não tem outro dever senão o de aceitar ser governada e cumprir com submissão as ordens dos seus pastores."

sábado, 29 de julho de 2023

Notas sobre a Igreja Católica em Portugal

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

A poucos dias do início da Jornada Mundial da Juventude, deixo aí, também a partir de perguntas de jornalistas, inclusivamente estrangeiros, algumas notas dispersas sobre a Igreja em Portugal.

Genericamente, diria que o seu estado geral é um pouco estagnado, falta dinamismo. Entre os pontos mais positivos, parece-me que é de justiça sublinhar, disso ninguém duvidará, o papel social que a Igreja presta aos mais vulneráveis, nomeadamente através das IPSS (instituições particulares de solidariedade social), um papel insubstituível, mas também através de outras instituições como o Banco Alimentar, as conferências vicentinas de São Vicente de Paulo... A Igreja desempenha também um papel importante, decisivo, na salvaguarda de valores essenciais, como a família, a dignidade humana, a solidariedade...

sábado, 6 de maio de 2023

A pessoa em tensão

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

O Homem vive-se a si mesmo numa tensão insuperável. Por um lado, o corpo é o seu peso, a sua limitação - parece que, se fôssemos espírito puro, poderíamos, por exemplo, estar em todo o lado. Com o tempo, o corpo decai, envelhece e, aparentemente, envilece-nos. Referindo-se ao nascimento, Santo Agostinho, nada exaltado, tem estas palavras cruas: "inter faeces et urinam nascimur", que não traduzo, por ser desnecessário. Adoecemos e desmoronamo-nos. Depois, com a morte, o que resta do corpo é lixo biológico e coisa que apodrece.
Por outro lado, será sempre misterioso um corpo que fala: produz sons que encarnam e transmitem sentido. Um olhar é sempre a visita do infinito. Um corpo humano canta, ora, sorri, produz obras de arte, que param o tempo e visibilizam a transcendência.

sábado, 29 de abril de 2023

O enigma da pessoa humana

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias 

"Nunca trates os seres humanos como coisas, mas sempre como sujeitos e pessoas."

Com as biotecnologias, um dos novos continentes científicos é o cérebro, e a pergunta é se, com os avanços neste domínio, o enigma do ser humano será finalmente superado ou se, pelo contrário, ele permanecerá. Grandes debates se travam entre as neurociências e a filosofia, precisamente por causa de temas candentes e incendiários, como a subjectividade, a autodeterminação, a vontade livre.
Sobre estas questões, o filósofo e professor da Universidade de Tubinga Manfred Frank deu há algum tempo uma longa entrevista ao alemão Die Zeit. O que aí fica reflecte esse debate.
A questão da subjectividade pertence ao núcleo da reflexão humana. Embora algumas correntes filosóficas falem da sua dissolução, penso que o sujeito é ineliminável. Argumento, mostrando que a condição de possibilidade de objectivar -- no caso do Homem, de objectivar-se -- é o sujeito, de tal modo que, por mais que objective de si mesmo, nunca se objectivará completamente, já que continuará a ser o sujeito que (se) objectiva.

sábado, 8 de abril de 2023

"Pára e pensa". A Última Palavra

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Nunca tivemos tanto acesso à informação. Também nunca houve tantos meios de acesso, a ponto de aquilo que é um benefício poder tornar-se um verdadeiro desastre, como muitos especialistas chamam a atenção.
Por exemplo, no seu recente livro El arte de la felicidad, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld, escreve que nesta "era da distracção" corremos o risco de saltar de uma informação para outra sem reflectirmos nos conteúdos. Vivemos na sociedade do "ruído mental", com bombardeamentos constantes de informações e publicidade, e tudo isto nos impõe um "estilo de vida no qual faltam a atenção e a concentração". Se não houver capacidade de distanciamento, o risco é "perdermos as capacidades mais valiosas do pensamento humano: a criatividade, a reflexão e o pensamento crítico". O neurocientista Michel Desmurget, no seu recente livro A fábrica de cretinos digitais, mostra inclusivamente que, por causa da cultura do ecrã e do dedar constante, se está a registar uma diminuição do Quociente de Inteligência (QI).

sábado, 28 de janeiro de 2023

BENTO XVI MORREU. E AGORA, FRANCISCO?

Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias

Bento XVI morreu no passado dia 31 de Dezembro. As suas últimas palavras foram: "Senhor, eu amo-te." Não há dúvida de que o seu grande legado para a História foi a renúncia, sinal de humildade e dessacralizando o papado. Para lá disso, fica também, como sublinhou José Manuel Vidal, "o milagre da coabitação e da transição tranquila". Francisco punha fim a uma Igreja piramidal, clerical, carreirista, autorreferencial, e, agora, a caminho de uma Igreja sinodal, circular, "hospital de campanha". E podemos imaginar o sofrimento de BentoXVI ao "ver como a sua obra era derrubada" ao mesmo tempo que era "duro para o Papa Francisco este trabalho de desmontagem perante os olhos de Bento XVI... No entanto, de modo geral, a convivência durante quase dez anos foi delicada e até fraternal". Seja como for, não se deve de modo nenhum ignorar a diferença entre Bento XVI e Francisco, bem clara ao ler a obra póstuma de Bento XVI, Che cos"è il Cristianesimo (O que é o cristianismo), onde, por exemplo, defende uma ligação, dir-se-ia intrínseca, entre a ordenação sacerdotal e a obrigação do celibato.

sábado, 14 de janeiro de 2023

BENTO XVI: O PAPA QUE ABDICOU

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Tive uma vez um breve encontro com ele em Roma. A impressão que me ficou: uma pessoa agradável, afável, reservada e tímida. E pude aperceber-me também da importância decisiva que tinha para ele o que se pode chamar a "pastoral da inteligência", isto é, a reflexão sobre o diálogo entre a razão e a fé.
Joseph Ratzinger também teve o seu momento de rebeldia e de progressismo, no Concílio Vaticano II, como aqui expliquei em múltiplas crónicas, concretamente em 2020, em cinco textos sobre "Bento XVI. Uma vida". Não se deve esquecer o que, imagino, foi para ele, mais tarde, um escândalo: defendeu a possibilidade de pôr fim à lei do celibato obrigatório e ordenar como padres homens casados exemplares bem como de recasados poderem aceder à comunhão. Chegou a dizer nas aulas, em Tubinga: "em Roma, como sabem, não se faz boa Teologia".

sábado, 7 de janeiro de 2023

EVANGELHOS DA INFÂNCIA: verdade histórica e verdade teológica

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

Jesus Cristo - o Filho do Deus vivo
Não há figura mais estudada do que Jesus Cristo e não há hoje nenhum historiador sério que ponha em causa a sua existência histórica.
Depois, é preciso saber que a história se lê de trás para a frente; a partir do princípio, evidentemente, mas tem sobretudo de ser lida do fim para o princípio. Portanto, com a história e a razão hermenêutica. No caso de Jesus e do cristianismo, essa leitura é essencial, para se não cair em alçapões mortais.
Os Evangelhos escrevem sobre realidade histórica, mas foram escritos por quem, à luz do fim, já acreditava que Jesus é, na confissão de São Pedro, "o Filho do Deus vivo". Concretamente no que se refere aos Evangelhos da infância, é necessário ter em atenção a sua significatividade mais do que a historicidade. De facto, eles são construções teológicas, colocando no princípio a revelação do fim: Jesus é o Messias. Se é o Messias, nele realizam-se as profecias e as promessas de Deus. Assim:

sábado, 12 de novembro de 2022

Adriano Moreira: "o eixo da roda"

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias 

Estava no comboio e foi uma jornalista que me deu a notícia. Apesar de esperada, a morte de Adriano Moreira foi um choque para mim. É sempre um choque a morte de um amigo: ah!, aquele nunca mais para sempre neste mundo!...
Éramos amigos, e tive com ele conversas e debates inesquecíveis, sempre iluminantes para mim. Até lhe devo um prefácio poderoso a um dos meus livros, Corpo e Transcendência, no qual apela, se a Humanidade hoje com excesso de poder quiser sobreviver, para a urgência do diálogo entre a cultura tecnocientífica e as Humanidades: "os temas da subjectividade, da solidão, do desespero, do nada, da ambiguidade, já não são problemas de um ou de cada homem, são problemas do género humano estarrecido com o poder que alcançou, só ultrapassado pela ignorância." Neste contexto, apresentava a imagem da roda -- "Os valores são o eixo da roda. A roda anda, passa por mudanças, e o eixo acompanha a roda, mas não anda" --, acrescentando: "Incluamos, cimeiros, os valores da relação com a transcendência."

sábado, 15 de outubro de 2022

HAVERÁ SEMPRE GUERRAS?

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias 

Até quando a paz do mundo estará nas mãos dos que fazem o negócio da guerra? Até quando continuaremos a acreditar que nascemos para o extermínio mútuo e que o extermínio mútuo é o nosso destino? Até quando?"

1. Quando olho para a tragédia que se abateu sobre a Ucrânia: bombas atrás de bombas, milhões de refugiados, valas comuns, mortos e mais mortos, crianças afogadas no pânico, mulheres sem palavras para chorar e gritar os horrores, hospitais, creches, escolas destruídas, ruínas, mais ruínas, um mundo a desabar, ameaças de guerra nuclear..., só poderia desejar, do fundo do coração, poder responder: não, nunca mais haverá guerra. Mas sei que não é assim. Haverá sempre guerras, a não ser que se desse uma conversão radical da humanidade.
Neste sentido, há um texto que me foi enviado, cujo autor desconheço mas com o qual estou de acordo, até porque encontrou as palavras certas para descrever este mundo de loucura. Reza assim: "Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar: "Eu mato para roubar". As guerras invocam sempre motivos nobres: matam em nome da paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso, em nome da democracia e, por causa das dúvidas de nenhuma destas mentiras ser suficiente, aí estão os meios de comunicação dispostos a inventar inimigos imaginários para justificar a transformação do mundo num grande manicómio e um imenso matadouro.

sábado, 27 de agosto de 2022

Salman Rushdie e o diálogo inter-religioso

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

1 - Em 2006, realizou-se, em Santa Maria da Feira, o V Simpósio "Sete Sóis Sete Luas", que teve como tema "Qual é o Deus do Mediterrâneo?" Foram conferencistas Salman Rushdie, Cláudio Torres e eu próprio. O debate, moderado por Carlos Magno, durou quatro horas, com uma assistência atenta, que esgotou todos os lugares disponíveis da auditório da Biblioteca Municipal.
Evidentemente, a figura central era Salman Rushdie contra quem tinha sido lançada em 1989 pelo ayatollah Khomeini uma fatwa, isto é, um decreto religioso, condenando-o à morte por blasfémia. Trinta e três anos depois, no passado dia 12 de Agosto, Rushdie foi esfaqueado, quando se preparava para uma palestra em Nova Iorque. O atacante é Hadi Matar, um homem de 24 anos, de origem libanesa. A fatwa nunca foi levantada e havia até um prémio de mais de 3 milhões de dólares para quem assassinasse o acusado de blasfémia por causa do livro Os Versículos Satânicos.

sábado, 20 de agosto de 2022

O Apocalipse, as doze estrelas, Salman Rushdie

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

No contexto de uma reflexão sobre o Apocalipse, quero sublinhar como decisivo o diálogo inter-religioso, em ordem a evitar uma catástrofe apocalíptica. Por paradoxal que pareça, desse diálogo fazem parte também os ateus - os ateus que sabem o que isso quer dizer -, pois, "de fora", talvez mais facilmente se apercebam da superstição, idolatria, inumanidade, que tantas vezes envenenam as religiões. Voltarei ao tema.


1- O Apocalipse, último livro da Bíblia, anda constantemente associado ao esotérico, à catástrofe, ao fim do mundo... Quem nunca ouviu falar da besta, do dragão, do número 666? Quando se quer aludir a catástrofes, horrores, guerras, fim do mundo, lá vem o adjectivo tenebroso "apocapítico".
Quem quiser uma informação rápida, científica e séria, consulte as páginas que lhe dedicou o grande exegeta Padre Carreira das Neves na obra que escreveu a meu pedido: O que é a Bíblia. A título de exemplo, lá encontrará a explicação para os números: 3 é um número perfeito e o número de Deus; 3+4=7 ou 3x4=12, para simbolizar a plenitude (os dias da criação ou a aliança de Deus, respectivamente), os 144.000 assinalados são o múltiplo de 3x4x12x1.000 - 1.000 é o símbolo da universalidade - e simbolizam o novo povo de Deus. Em sentido contrário, a metade destes números só pode significar o não-tempo de Deus e a sua não-aliança, como é o caso de três e meio e de seis. Assim, 666 é o número da besta, um símbolo numérico do nome e título de Domiciano como imperador. A mulher pode designar a Igreja perseguida, a prostituta ou a noiva do Cordeiro...

sábado, 18 de junho de 2022

O Papa Francisco vai resignar?

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

É evidente que o Papa Francisco foi e é uma bênção para a Igreja e para o mundo e a História não vai esquecê-lo.

A notícia percorreu mundo e nenhum dos grandes meios de comunicação social internacionais terá ignorado a notícia sobre a possibilidade de o Papa Francisco resignar em breve, abrindo caminho à sua sucessão à frente da Igreja Católica. Isso concretamente a partir do momento em que foi visto numa cadeira de rodas e em que se viu obrigado a adiar a sua viagem nos princípios de Julho à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul.
Para os rumores sobre a renúncia contribuíram sobretudo três factores.
Em primeiro lugar, sabe-se que Francisco está doente, sofre concretamente de dores no joelho da perna direita, que o impedem de estar em pé e o obrigam a andar em cadeira de rodas e de bengala. Ora, ele próprio já dissera a propósito de uma operação ao intestino: "Sempre que o Papa está doente corre brisa ou furacão de conclave"; de qualquer forma, acrescentou, "não lhe tinha passado então pela cabeça renunciar." De qualquer modo, já em 2014 afirmou que "Bento XVI não é caso único", o que faz pensar que não exclui a resignação no caso de se sentir impossibilitado de exercer o cargo.

sábado, 14 de maio de 2022

O perdão e a génese do religioso

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

 Deus é aquele que ama. Deus está do lado da Humanidade. Deus criou não para a sua maior honra e glória, mas para a alegria e a realização plena dos homens, das mulheres, dos jovens, das crianças.

Pergunto-me a mim próprio se a maior revolução na história das religiões não está naquela ordem que Jesus, na continuidade dos profetas, essas figuras colossais da História, coloca na boca de Deus: "Ide aprender o que isto quer dizer: "Eu não quero sacrifícios, eu quero justiça e misericórdia"."
Por princípio, nas diferentes religiões, uma das componentes essenciais é precisamente o sacrifício a oferecer à divindade. E degolam-se cordeiros, vitelos, bois, pombas, cabritos. Mesmo pessoas humanas foram sacrificadas. Quem não se lembra do terror de Isaac, o miúdo carregando com a lenha do sacrifício, desconhecendo que a vítima era ele próprio? Também por princípio, só os sacerdotes podem oferecer sacrifícios. Há quem afirme que no tempo de Jesus, serviam no Templo de Jerusalém uns 20.000 sacerdotes e levitas - os levitas eram uma ordem inferior de clérigos, que ajudavam os sacerdotes em vários serviços, como apresentar os animais e a lenha para o altar.