domingo, 18 de dezembro de 2011

TECENDO A VIDA UMAS COISITAS - 268

DE BICICLETA ... ADMIRANDO A PAISAGEM – 51 



... VERGUINHA PARA A IGREJA ... 

Caríssima/o: 

Hoje é dia de falar da bicicleta na nossa região. Embora um pouco contra a corrente do tempo (isto de o Natal calhar ao Domingo traz destas coisas...), vou recordar um tudo nadinha como era a passagem do ano nos idos de 50-60. Então venham daí... 
[Esquecia-me de vos dizer que vou revelar um segredo da nossa juventude; tínhamos prometido guardar segredo. Os rapazes saberão perdoar-me atendendo a que já passaram mais de cinquenta anos e os «maiorais» todos partiram!...] 
Então foi assim: 
Juntámo-nos na Barbearia do Hortênsio; grupo numeroso, cada qual com a sua bicicleta e prontos para tudo... Pelas onze da noite, começou a fazer-se luz e a traçar-se um objectivo: 
- E se fôssemos ao mercado deitar abaixo as letras que dizem «Ílhavo»? 
Não foi precisa a discussão prévia: todos de acordo; sim que já era tempo de esses tipos aprenderem que o mercado é da GAFANHA! Pois claro, etc e tal. Toca a montar e rumar ao Cruzeiro, com a noção do perigo e a promessa de silêncio antes, durante e após o trabalhinho executado.
Só que... depois de passado o Cruzeiro, estava uma obra em reconstrução e alguém alvitrou que, do muito ferro amontoado junto à estrada, se levasse uma molhada de verguinha para as obras da Igreja. Mais uma brilhante ideia para esta passagem do ano: certamente que o dono nem dava por ela e fazia uma boa acção sem que ambas as mãos o soubessem. Verguinha em cima de duas bicicletas e, com todas as precauções motivadas pelo peso, lá a fomos colocar atravessada na porta da entrada da Igreja. 
Era quase meia noite. A estratégia estava preparada, agora era só executá-la: cada um aos seus postos incluindo as sentinelas que nos avisariam se alguém se aproximasse sem ser convidado. Estais a ver meia dúzia de saltadores, com grandes paralelos na mão, encarrapitados na platibanda da entrada do mercado. 
Quando o sino da torre começou a dar as doze badaladas, era ver quem mais batia. Mas não há plano perfeito, tinha havido um pormenor que nos escapou: o paralelo a bater nas letras fazia um barulho incrível e inesperado: começaram a acender-se janelas... E as letras não cediam... E bate, força... 
Nisto, uma sentinela cantou em surdina: 
- Vem aí o Regedor!... 
Foi o bom e bonito; valeu-nos termos combinado a retirada e cumprirmos à risca o plano, indo cada um pela rua que lhe fora indicada e recolhendo a casa com recato... 

O bonito estava reservado para os dias seguintes: 

1 – Alguns fomos à missa da manhã e ouvimos com o coração alargado o agradecimento do senhor Prior pela generosa oferta que, a recato da noite e conservando o anonimato, alguém tinha levado para as obras... Estamos a ver o senhor Padre Domingos com o gesto largo, sorriso nos lábios e palavra apropriada a louvar uma boa acção – rica deixa para uma boa prédica... 
Quando à tarde o grupo se reuniu ouviu o relato da missa e todo ele rejubilou. Mas o pior... 

2 - ... é que tinha ido à bomba da gasolina do senhor Regedor e ele estava pior que uma barata: queria saber à força quem foram os meliantes que naquela noite quiseram pôr abaixo as letras do mercado!... 
- Ó ti João, então que aconteceu?!- perguntei, fazendo-me de novas. - Na verdade, alguém se atreveu... 
- Pois, e quando eu e o Catraio [o Cabo de Ordens] nos aproximámos, desapareceram sem deixar rasto. Ah, mas eu hei-de apanhá-los! 
- Na verdade, é preciso muita pouca vergonha! E o prejuízo! 
- Vês... Mas eu hei-de apanhá-los! 

Todos os rapazes ficámos preocupados; e não era para menos que conhecíamos o Regedor. Consolados com as bênçãos do senhor Prior, renovámos o propósito do silêncio e fomos à vida. 

Todos os dias, eu ia visitar o senhor Regedor e ver como estava o fígado: continuava intragável. Passaram-se umas semanas e vi que o estado de espírito do nosso inquiridor se mantinha e, conhecendo-o como conhecia, comecei a temer que algum dos rapazes fosse menos cuidadoso e se viesse a descobrir a verdade. Havia que fazer alguma coisa. Resolvi ir falar com um amigo de peito do senhor Regedor e dizendo-lhe ao que ia, pôs-se a rir como um perdido: 
-Então também ias no grupo?!... O Regedor está pior que uma barata. Deixa estar que lhe vou falar e tudo se há-de arranjar. 

Este Amigo contou-me depois o que se tinha passado mas que só tinha dito quem eram as pessoas depois de o Regedor ter prometido que esquecia. A admiração causada foi enorme: 

- Não pode ser?!... Ele todos os dias me vinha perguntar se havia novidades!... Tão bom rapaz!... Mas tens a certeza?...Ah, mas isto não pode ficar assim!... 
- Mas tu prometeste! Deixa os rapazes em paz, esquece! Tu até eras capaz de fazer o mesmo! 

E esqueceu, mas quando me encontrava já não era a mesma festa; voltava a cara para o lado... Mas houve quem me dissesse que nesse momento ele sorria! 

Passados estes anos, muitas lições se poderiam tirar. Fico-me só com uma breve observação: quando nos encontramos e recordamos esta brincadeira de passagem de ano lembramos com respeito e algum pesar as pessoas que estavam a dormir e foram acordadas pelo barulho dos paralelos! 

Manuel  

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