quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Uma estória de Natal



Sem o pão da consoada 
Fernando Martins

A tarde de inverno, de nuvens carregadas a ameaçarem chuva, era propícia a recordações. À memória do Jorge Torpedo veio o filme de uma vida em bolandas, depois de se afastar da família por razões que nunca soube nem procurou explicar. Trabalhou nas marinhas do sal em Alcácer, foi estivador em Lisboa, tratou de animais num circo em Itália, labutou de sol a sol nas colheitas em França e Espanha e estava há uns anitos no Alentejo, numa herdade com horizontes a perder de vista. Ao seu redor e à sua guarda, gado e mais gado, tratores e outras máquinas agrícolas, que sabia manobrar e cuidar. Para o gado tinha atenções redobradas, não fosse aparecer por ali, como quem não quer a coisa, um qualquer ladrão, disposto, com a sua trupe, a carregar depressa qualquer animal que lhe surgisse mais à mão. 
Jorge Torpedo, conhecido pela sua força descomunal, de onde lhe veio o apelido, já conhecera muitos patrões, uns de encontros quase diários e outros de nome. Alguns foram suficientemente espertos para explorar a sua qualidade de homem valente, bem apoiado em músculos possantes que pareciam rebentar-lhe a camisa. Mas o Jorge não fazia gala da fama e do proveito da sua valentia, antes parecia e era pessoa capaz de se deixar vencer por uma qualquer ternura ou olhar amigo. Por índole, não fazia mal a uma mosca e nem sequer pressentia qualquer maldade nas pessoas com quem lidava e com quem se cruzava. 
Nesse dia de nuvens carregadas, caiu em nostalgias e pôs-se a rever a sua vida de saltimbanco, sem família próxima e sem amigos íntimos. Sonhava com mulher e filhos que nunca teve, com festas familiares da infância e juventude, com brincadeiras de escola e da rua, com carinhos que nunca experimentou. Agora, com outros colegas de camarata, qual deles o mais isolado e fugidio, o Torpedo por ali andava sem rumo que pudesse aliviar a solidão que o envolvia.

O Torpedo tinha carta de condução, tirada em França, e disso gabava-se com frequência, com se fora um curso superior, que lhe abria portas para trabalhos extras na herdada, onde nunca aspirara a ser capataz, que esse lugar estava destinado a um trinca-espinhas, na visão do Jorge. Era, realmente, um capataz sem autoridade, sem graça e sem carisma. De falinhas mansas, é certo, lá dizia o que tinha de ser, porque o patrão é que sabia, e passava adiante, com cochichos ao ouvido de alguns camaradas da herdade. Era aquilo que se chamava um passa-recados, sem jeito para mais nada, nem iniciativa que era suposto possuir um qualquer capataz que se preze. 

O Torpedo ficava intrigado face àquela situação, tanto mais que nem via razões para naquela herdade haver um capataz como este, tanto mais que o patrão andava habitualmente por ali. Era um lavrador abastado, lá isso era, que gostava de comezainas e da sua pinga, que acompanhava comiscando qualquer coisa que encontrasse à mão, mas tinha olho para o negócio. De vez em quando apareciam na casa grande do senhor gentes estranhas, que proclamavam, para quem as quisesse e pudesse ouvir, que ali, naquela herdade de horizontes vastos, é que se passavam boas férias, de verão ou de inverno, à sombra dos sobreiros ou ao calor da fogueira, com mesa farta e lugares que faziam sonhar. 
O trinca-espinhas adivinhava a chegada dos forasteiros e logo se aprontava para entrar na conversa, como se fora um deles. Mostrava-se até com alguma intimidade. Sorrisos frequentes ou risadas estridentes faziam parte do convívio, e o patrão, que se dava com todos, tornava-se um igual, nos segredos ciciados, nas anedotas partilhadas, nas patuscadas bem medidas. E ali, nesses convívios periódicos, longe das cidades e vilas, o Torpedo começou a magicar na vida daquela gente, que aparentemente não trabalha nem luta para ganhar o pão que há de comer, mas a quem nada falta. 
O trinca-espinhas, um sábado, abeira-se do Torpedo com falinhas mansas, como que a puxá-lo para uma conversa mais a sério. Que a vida não pode ser só trabalho duro, de sol a sol, sem salário condigno. É certo que o comer e o dormir eram por conta do patrão, nunca faltando o saboroso pão alentejano, bem acompanhado, de vez em quando, com presunto de porto preto, comprado na vizinha Espanha. E o vinho, também do Alentejo, macio e com sabor a frutos silvestres, casava lindamente com o ensopado de borrego, mais em dias assinalados, e com a açorda típica daquela zona do país, prato quase diário para quem ganhava a jorna naquela propriedade. 
Dizia o capataz que era preciso olhar para o lado e perceber que havia vidas melhores neste país de contrastes tão grandes, onde uns têm tudo e mais alguma coisa e outros se limitam às migalhas sobrantes dos ricos. 
— Não vez como vive o nosso patrão e esta gente que o visita de tempos a tempos? Achas que lhes falta alguma coisa? Não vez que, com a força que tens, podias fazer mais uns trabalhos, que te dessem, por fora, uns cobres? 
O Jorge, homem sem maldade nem grandes ambições, achou que sim, mas não via jeitos disso. Ninguém reparava nele e na sua força, à altura de voltar de pernas para o ar um carro por mais pesado que fosse. 
— O patrão não me paga mais por eu ser valente! Ganho tanto como os outros e faço mais do que eles! Como é que eu hei de ganhar mais uns cobres? 
A cama estava a ser feita a favor do trinca-espinhas, o braço direito do patrão alentejano. Era preciso agir com cautela, para não perder este homem, capaz de enfrentar qualquer um que se lhe atravessasse no caminho, coisa difícil, está bem de ver, já que se tratava dum bruto manso. 
Depois desta conversa inesperada e sem razão aparente, o Torpedo volta às suas nostalgias e sonhos. Com mais dinheiro certo, aí estava uma bela maneira de constituir família. A ideia de mulher e filhos, que ele ainda era jovem, mexeu-lhe na alma e no corpo. 
— Prepara-te para amanhã viajares até Espanha. Vais entregar uma encomenda a um espanhol que te espera frente ao café Arena, perto da praça de touros. Ele está de chapéu com fita verde e com toda a naturalidade passas-lhe a maleta que levas; mas cuidado, ele vai perguntar-te se és o Torpedo; se não perguntar, desanda com toda a calma. Depois telefonas-me a pedir instruções. Ele é amigo do nosso patrão; é importante que ninguém note nada de especial. Vais ganhar uns dinheiros, o que é muito bom para ti. 
O Torpedo não tinha maldade nem conhecia rastos de negociatas sombrias, entre gente abastada ou aparentemente abastada. Saiu num carro normal, na hora combinada, fazendo a viagem até à cidade raiana, que ele conhecera de passeatas frequentes com alguns camaradas. Agora, num carro à sua disposição, sem guardas na fronteira, como antigamente, parecia um senhor. E cumpriu a missão, sem grandes dificuldades. E como esta outras se seguiram, com destinatários diferentes: homens ou mulheres, bem vestidos, de boas falas, eram realmente amigos do seu patrão. Alguns chegaram até a visitá-lo, integrados no grupo das festas bem regadas. 
Mas um dia o Torpedo passou pela porta errada. Quando se dirigiu ao eventual destinatário da encomenda, num lugar mais recatado, como era hábito, foi abordado por um polícia disfarçado que lhe deu voz de prisão. Dois socos bem medidos deixaram o polícia estatelado no chão. Pega na maleta e escapuliu-se o mais depressa possível. Só agora sentiu que ali havia marosca e da grande. 
— Como é que eu nunca percebi que afinal andava a passar contrabando, provavelmente droga? 
Mandam as boas regras que o correio da droga tem de ser substituído em situações destas. A polícia estaria já a investigar. Não tardaria aí. O Torpedo tinha de ir à vida o mais depressa possível, não fosse dar-se o caso de ser apanhado. 
— O patrão vai fazer contas contigo; procura-o no escritório. Tens de abandonar a herdade quanto antes! — diz-lhe, abruptamente, o capataz. 
— Mas eu não tenho para onde ir; é aqui que tenho trabalho, pão e cama! 
O senhor, do alto do seu poder, entrega-lhe um envelope com algum dinheiro e diz: 
— Não quero na minha casa quem se mete em sarilhos; desanda! 
— Mas… 
— Desaparece! 
O Jorge, acabrunhado, como se fosse um criminoso, sai sem mais. Os anseios de anos ficam enevoados. Pela campina, ao deus-dará, vai caminhando sem destino pensado. Olha a paisagem e ao longe, ainda muito ao longe, vislumbra na cidade distante as luzes da noite que começa. Mais próximo percebe que são as iluminações de Natal. A noite santa em muitos lares tem hora marcada, mas o Torpedo está sem patrão, sem família, sem casa e sem o pão da consoada. 


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