“Coisas” da nossa democracia
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Democracia é uma das palavras mais caras. Ainda em muitos povos, a democracia é uma das lutas mais sofridas. Às suas custas, para que ela venha à luz do dia, muitos foram e são perseguidos, silenciados, torturados, mortos. Das tentações do domínio do outro, do poder absoluto, da autoridade exacerbada, da ditadura que não reconhece a diferença, tudo é possível, pois, no limite, não se olha a meios para atingir fins. E são, infelizmente, muitos os retratos de desumanidade que flagelaram milhões de vidas, cujo rio sangue foi abrindo o sentido da igual dignidade entre todos os seres humanos.
Em épocas políticas especiais, como a que atravessamos, é sempre interessante entreabrir o dicionário e repararmos mais na palavra “democracia”. Fala-nos da ideia de “povo que é soberano”, ideal que nasceu também como reacção ao poder só de alguns (oligarquia); desperta-nos para um nível de responsabilidade colectiva, onde ninguém está a mais (o Estado é de todos!), mas onde todos têm deveres para com a comunidade (como o dever cívico de votar, a sociedade precisa mesmo de todos!).
Talvez, neste contexto, faça sentido mesmo perguntar se a democracia, simplesmente, anda por si própria? Ou se precisará mesmo dos cidadãos? Que sentido de pertença e construção democrática vai reinando na sociedade portuguesa, e como interagem os diversos actores numa ideal respeitabilidade social recíproca? Bastará dizer “democracia” e está tudo feito?!... De modo algum. Quanto maior é a liberdade maior será a responsabilidade. Uma responsabilidade que deve perpassar, no máximo possível, permanentemente na vida social, em tudo quanto se diz, escreve, fotografa, gere.
Na presente caminhada de discernimento sobre o futuro próximo em termos de presidência da República alguns factos continuam a demonstrar algumas “coisas” menos felizes da nossa democracia, sinal de que há sempre caminho para andar. Se é certo que, numa linguagem inclusiva e com respeito, é essencial o debate sobre projectos do que poderá estar em jogo nas funções da presidência da república, contudo, tantas vezes, o ambiente em vez do saudável debate passa à luta feroz do ataque pessoal ao outro, espelhado por vezes mesmo nas generalidades da ausência de projecto.
Mas esta relativa “falta” democrática, sintoma de carácter ideológico de forças silenciosas que têm o seu interesse próprio, passa também pelo desigual tratamento de imprensa, sendo claramente no mínimo de desconfiar até da escolha fotográfica para as capas de jornais, em que tendo um candidato ao longo do dia muitos rostos…porque é que se escolhe uma pose e não outra?! Mas se olharmos aos conteúdos em debate, de todos os lados, pouco têm de presidência e muito mais têm de governo. (E todos criticam o facto, mas todos o fazem.) O que é que estará em causa nestas eleições? Andamos desfocados! E quando se fala de crise, porque é que se leva logo para a crise económica…quando essa área é da responsabilidade do governo? E quando vemos que todos os candidatos falam de economia…porque é que não se acusam todos de economicismo? E se é mesmo a eleição da primeira figura de Estado, em que numa democracia madura o debate entre todos os candidatos seria um pressuposto lógico… para quando os debates com o sexto candidato? Há democracia para todos, ou é só para alguns?!
Há qualquer coisa de esquisito e de condicionado que turba a pureza democrática (sinal de que há muito caminho a andar em sensibilidade de acção política como serviço autêntico e generoso ao bem comum), sendo logo de reparar nas questões das “máquinas” e nas gritantes desigualdades entre os candidatos. Há algo que se sente que torna inútil o debate aberto, o que é mau demais para ser verdade. Estaremos a perder a capacidade de conversar sobre o que somos e que queremos ser? E não esqueçamos que às novas gerações de cidadãos políticos cada campanha é uma escola…