Jorge Pires Ferreira
::
A persistência da linguagem religiosa
nas páginas dos jornais
::
A questão dos crucifixos na sala de aulas fez correr muita tinta, mas ficou esvaziada num ápice. Uma frase certeira de D. Carlos Azevedo, secretário da conferência dos bispos portugueses arrumou a polémica: “A Igreja Católica não vai exigir que os crucifixos permaneçam nas escolas, porque não foi ela quem exigiu que eles lá fossem colocados”.
Porém, por ter surgido, despertou a minha atenção sobre o uso e a presença de sinais especificamente religiosos na linguagem de todos os dias e principalmente nas páginas dos jornais. Podemos retirar os sinais religiosos das paredes, mas não podemos tirar a religião da cultura.
As expressões de origem religiosa abundam na imprensa “laica” portuguesa, em usos que nada têm a ver com a religião. Afinal, os jornalistas, cronistas ou fazedores de opinião sabem bem que essas metáforas e expressões podem abrir as portas da compreensão dos leitores. Vou dar alguns exemplos dos últimos dias. O espaço não me permite referir as dezenas de recortes de jornais que tenho em mãos, nem o uso que os políticos têm feito de termos ou figuras religiosas.
* “Bastaram duas missas para converter os incrédulos. Na primeira, celebrou-se o aeroporto da Ota, na segunda, o Plano Tecnológico. Os chamados agentes económicos, que, na sua grande maioria, pareciam rebeldes sem fé, perante anúncios, miraculosos do Governo, acabaram rendidos às evidências”, escreveu Vicente Jorge Silva, no Diário de Notícias (26-11-05).
* “Quem nos liberta desta cruz”, pergunta Henrique Monteiro (Expresso, 19-12-05), a propósito das reformas sobre reformas na educação, sem resultados aparentes. “Religião baseada num incontrolável relativismo é o «eduquês»”, diz o agora director do Expresso.
* “O país e a paróquia” é o título de um texto de João Miguel Tavares (Diário de Notícias, 07-10-05), a propósito da campanha das eleições autárquicas. “O que temos visto é Portugal no seu pior: um país paroquial e desconfiado”, escreve o cronista. (De onde terá vindo o sentido pejorativo da palavra paróquia e seus derivados? Porque é cada vez mais comum usar o adjectivo “paroquial” para dizer que algo/alguém é mesquinho, tem vistas curtas, é irrelevante? Seria interessante que um linguista se debruçasse sobre esta questão.)
* “O bom pastor”, afirma, num título, Eduardo Prado Coelho sobre o médico João Lobo Antunes e o seu livro “Sobre a Mão e Outros Ensaios” (Público, 31-12-05). O mesmo Prado Coelho escreve sobre o corpo do doente acamado num hospital e invoca a expressão “corpo glorioso” (Público, 03-01-16), que tem necessariamente conotações religiosas (alguém ainda se lembra dos “dotes do corpo glorioso”?).
* Finalmente, no suplemento económico do jornal Público (Dia D, de 2 de Janeiro de 2006), afirma-se: “Os sete pecados capitais foram enunciados para os males do corpo e do espírito, mas são igualmente bons para descrever os males da sua vida financeira. A cada um destes pecados financeiros corresponde uma virtude que, quando praticada, o coloca no caminho para a multiplicação do seu dinheiro. Em cinco anos, estas virtudes podem levá-lo a acumular até 100 mil euros. E olhe que isto não é só conversa”. Os sete pecados financeiros são aqueles que se aprendiam na catequese embora por outra ordem: luxúria, gula, avareza, preguiça, ira, inveja, vaidade. As sete virtudes financeiras: castidade, temperança, liberalidade, diligência, paciência, caridade e humildade. Um exemplo de luxúria: uso e abuso do cartão de crédito, gastando aquilo que se tem e o que se há-de ter. Ao longo de dez páginas o leitor tem imensas sugestões para gerir as suas finanças com base em pecados/virtudes.
Quem diria que aquelas quase lenga-lengas outrora memorizadas na catequese serviriam para sugerir uma boa administração do dinheiro?