A Ria de Aveiro
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A velha ponte da Gafanha da Nazaré |
Deixem-me ir hoje, no meu rico vagar, pela estrada que de Aveiro vai ter à Barra.
A começar nas Pirâmides.
Mas antes de lançar pés à suavíssima marcha, esperemos que avance e que passe uma vela que se mostrou ao longe, vinda certamente com pescaria miúda das costas de São Jacinto em demanda do nosso canal.
Já se distinguem perfeitamente os clássicos e variados remendos do pano: um xadrez, meus amigos, um verdadeiro xadrez!
À escota vem um marnoto de idade, de ceroilas curtas, nem chegam aos joelhos: de camisola azul ferrete, grossa como uma tábua, grossa como um cortiço, aberta à boca do peito; de carapuço de lã na cabeça, com a ponta derrubada para a nuca e terminada por uma bolinha.
— Linda manobra, sim senhora, linda manobra.
— Pois c’anté! — responde o velho, descobrindo a venerável cabeça.
A estrada não é muito larga nem dá muitas voltas para chegar ao seu aprazível e benfazejo destino: mas de ambos os lados tem uma renda finíssima de tamargueiras que mergulham os troncos na água e que se vêem surgir na maré-baixa, de entre os calhaus arroxados e humedecidos da margem.
Nestas alturas, não há remédio senão poisar a pena durante um momento e coçar a cabeça!
(…)
A Olha-se para um lado: água, muita água, brisas, espumas, velas, barcos, moinhos, areia e sol!
Olha-se para o outro lado: tabuleiros de cristal, montinhos brancos expostos ao tempo, marinhas, marnotos e salineiras, a planície, a imensidade, e no fundo, no extremo horizonte, a sombra quase imperceptível, a divina moldura dos pinheirais!
Olha-se para trás: a cidade: Alto! Ali não se distingue, ali não se aponta para nada: é a cidade, é Aveiro!
Nestas doces ocupações do espírito vai-se chegando, sem dar por ela, à ponte da Gafanha. Dizem que é uma ponte velha, feia, indigna dos nossos tempos; mas eu, se fosse milionário, comprava a peso de oiro a consolação de sentir neste momento debaixo dos pés as pranchas carcomidas do seu tabuleiro.
Agora começam casinhas baixas à beira da rua e, na areia amoliçada, semeadura às mãos cheias: milho, feijão, batata, abóboras, pinheiros!
Eram dez horas da manhã de 20 de Julho de 1909. Que estava eu a fazer em casa, taciturno, pasmado?! Fugi para aqui, vim passar a minha agonia para estas areias onde a Providência não me negaria com certeza o seu anjo de consolação! A Barra! O Forte! A Ronca! A Capela!
Eu já disse Missa naquela ermida. A meio da Missa ateou-se um ramo seco que deitou uma chama enorme; e um doido manso que estava presente, o Julinho de Esgueira, exclamou aterrado no meio da assembleia:
— Ai Portugal, que te vais à vela!
D. João Evangelista de Lima Vidal,
em “Aveiro: Suas Gentes, Terras e Costumes”, pág.125