Crónica de Anselmo Borges
1- Coloquei no título uma interrogação. Mas poderia lá não estar. De facto, há muito que o Papa Francisco vem dizendo que a Terceira Guerra Mundial está em curso, mas "aos bocados", "às fatias". Veio relembrá-lo na condenação veemente da tragédia de Paris. E não está sozinho.
O que se teme, quando se olha para a complexidade do nosso mundo, tremendamente perigoso e ameaçador, é que, de repente, se dê uma explosão. Todos se lembram de como para o início da Primeira Guerra Mundial bastou o que pareceria um pormenor: o assassínio do arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo, em 1914. Agora, Robert Farley, da Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos, acaba de apresentar alguns rastilhos que poderiam desencadear um conflito à escala global: em primeiro lugar, a guerra na Síria, mas também a ameaça do mau relacionamento entre a Índia e o Paquistão ou entre a China e o Japão, a crise na Ucrânia e um confronto entre a NATO e a Rússia...
2- Presentemente, o perigo maior está no ISIS, o autoproclamado "Estado Islâmico", e no terrorismo global. Como se chegou até aqui?
Claro que são mais as perguntas do que as respostas. Aliás, um dos problemas maiores no actual momento é a confusão devida à complexidade da situação, aos interesses contraditórios e cínicos dos diferentes actores, políticos, económicos, militares, geoestratégicos, ideológicos. Falei na Primeira Guerra Mundial e, então, é preciso dizer que ainda estamos a sofrer as suas consequências, sobretudo por causa do Médio Oriente. E talvez não tenha ainda acabado o ressentimento que deriva do facto de a quase totalidade dos países de maioria islâmica ter sido colónia europeia. E houve a insensatez da invasão do Iraque e, depois, da Líbia. Diz-se que Saddam Hussein, diante da forca, terá profetizado: "Deixo-vos o inferno." Após o vazio criado, surgiu o diabólico "Estado Islâmico", que é preciso destruir, mas como, com quem?
Faço minhas algumas interrogações do filósofo José Arregi, na presença dos mortos de Paris e das lágrimas dos vivos. "Quem criou, financiou e treinou a Al-Qaeda para combater a Rússia? E quem concebeu e continua a sustentar na sombra o Estado Islâmico para desestabilizar todo o Médio Oriente e tirar maior proveito e lucro? Não se sentam no G20 dos grandes do mundo alguns governos amigos de países, com a Arábia Saudita à cabeça, nos quais encontram suporte ideológico e financeiro os jihadistas que nos combatem e que dizemos combater? Não são estranhamente coincidentes os interesses do "Estado Islâmico" e os do poder financeiro do mundo ocidental?" Mas há igualmente perguntas a fazer ao mundo islâmico. "E vós, dirigentes políticos dos países árabes, para onde conduzis os vossos povos, essa imensa maioria de gente pacífica, com as vossas lutas fratricidas sem fim, com o vosso confronto secular entre sunitas e xiitas, com os vossos impossíveis projectos teocráticos, com o vosso sonho de califado confessional, medieval, absurdo? E vós, os dirigentes religiosos da Umma ou comunidade muçulmana universal, para onde conduzis essa multidão de gente crente, cheia de bondade e de generosidade, empenhados como estais em mantê-la encerrada no passado?"
3- Como combater o terrorismo fora, se há terroristas cá dentro? Pergunta imensa: o que é que leva tantos jovens europeus, e não se trata apenas de gente pobre dos arrabaldes das grandes cidades, a alistar-se para combater no "Estado Islâmico"? Que ideias, que valores lhes entregamos? Segundo o politólogo Gilles Kepel, especialista do islão e do mundo árabe contemporâneo, não bastam as explicações sociológicas, escreve no último L"Obs. "Jovens sem referências, perdidos no meio das desordens do mundo que a torneira mediática espalha, podem ser tentados a ir procurar num passado mitificado, o do islão das origens revisitado e falsificado, uma ordem que vai dar-lhes normas, valores. Sonhar com a jihad é fantasiar a sua vida, é projectar-se numa existência épica, viril. E é inscrever-se num projecto colectivo, a construção do califado, apresentado como uma utopia terrestre, onde todos têm um trabalho, onde não há pobres; é viver um antegosto do mundo perfeito do além.
4- Há muito que o famoso teólogo Hans Küng tornou claro que "não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões". O Papa Francisco sabe disso. Por isso, denuncia toda a violência, que, se for em nome de Deus, é "uma contradição", "blasfémia". "Uma guerra pode justificar-se, entre aspas, com muitas razões. Mas quando o mundo todo, como hoje em dia, está em guerra?! Uma guerra mundial, aqui e ali, por todos os lados. Não existe nenhuma justificação. E Deus chora."
E, sem medo, apesar do alto risco, seguiu para África, visitando o Quénia, o Uganda e a República Centro-Africana, para anunciar a paz, a justiça social, a reconciliação, o diálogo entre cristãos e muçulmanos. Em nome de Deus.