no PÚBLICO
«Porque não dar a conhecer as personalidades,
os países e os movimentos muçulmanos
que lutam contra o ódio e a guerra?»
1. A Revista Islâmica Portuguesa [1] Al Furqán fez uma declaração muito ampla sobre os acontecimentos de Paris. Destacamos a seguinte passagem: O ser humano merece viver em paz, independentemente de raça, credo ou cor.Não ao que aconteceu em Paris. Não ao que se passa na Palestina. Não ao que ocorre na Síria. Não ao que acontece no Iraque. Não ao que ocorre no Afeganistão. Não ao que se passa na Birmânia. Não e não aos massacres, não às atrocidades, não ao egoísmo e não à hipocrisia. Ninguém deve ser outro, mas sim o respeito mútuo. Merecemos viver num mundo melhor.
No mundo contemporâneo, global, nada é simples. Já quase não existem sociedades homogéneas do ponto de vista étnico ou religioso. Ao contrário da opinião corrente, como mostra L’Atlas des Religions (2015), nem todas as religiões são instituições petrificadas. Muitas delas evoluem, deslocam-se, recompõem-se como as culturas e as civilizações.
Se é verdade que as religiões podem motivar e aumentar os conflitos, também podem e devem fortalecer a coabitação pacífica e intensificar a comunicação. Com uma diferença: quando a religião é convocada para abençoar a violência e para legitimar a guerra, atraiçoa a sua própria natureza; quando religa as pessoas, as comunidades e os povos vive a sua missão essencial. É próprio da cultura e da religião produzirem significações múltiplas. A violência e a guerra respondem quase sempre ao absurdo, com mais absurdo.
Em 1986, João Paulo II convocou para Assis, em Itália, os líderes das grandes religiões para rezarem pela paz, proclamando: nunca mais uns contra os outros; sempre uns com os outros. Participaram, nesse acontecimento memorável, personalidades judaicas, cristãs, muçulmanas assim como de religiões orientais e de tradições africanas. Foi retomado depois do 11 de Setembro para recusar o choque das civilizações e das religiões.
Diz-se que há mundos religiosos e políticos que recusam, por princípio, o caminho do diálogo. Perante a crise síria por exemplo, os grupos do califado ou do império islâmico declaram que não é o diálogo que lhes interessa, mas a luta armada até à morte ou à vitória. Seguem o caminho de bin Laden: os ocidentais querem diálogo, nós queremos a sua morte.
Por tudo isto e muito mais, nas últimas décadas, tornou-se corrente associar a violência e o terrorismo ao Islão. Porque não dar a conhecer as personalidades, os países e os movimentos muçulmanos que lutam contra o ódio e a guerra?
Deixemos, por instantes, outras questões históricas e os terroristas profissionais e seja feita a pergunta: qual poderia ser o contributo dos muçulmanos que vivem em países de liberdade religiosa para que esta seja reconhecida e praticada nos países islâmicos?
Pode parecer uma pergunta ingénua, mas é tempo de a fazer. Será longo e difícil este caminho para a grande maioria. Esta julgará normal que os seus países de origem recusem a liberdade às outras religiões e que, nos países onde vive e trabalha, lhe reconheçam não só a liberdade de culto como o absoluto respeito pelas suas expressões públicas. Isto por uma razão muito simples inculcada desde a infância: o Islão considera-se a si próprio como a religião mais simples e perfeita da revelação divina. O Corão é o próprio ditado de Alá a Maomé e constitui a fonte de toda a lei e de todo o direito: relações com Deus, culto, higiene, urbanidade, educação, moral individual, vida social e política.
Em tempos de crise, os fundamentalistas - de várias origens e diversas reconfigurações - acabarão por se considerarem os guardas da pureza islâmica, recorrendo, se for preciso, aos métodos mais radicais. A submissão a Deus pratica-se na vida toda. Não me espanta.
2. Ainda conheci, na Igreja Católica, o império de certos teólogos que atacavam, como heréticas e inimigas da sã doutrina revelada, as correntes cristãs que defendiam a tolerância e a liberdade religiosa e consideravam uma loucura o diálogo inter-religioso.
A argumentação era muito simples: só a verdade tem direito a afirmar-se e a defender-se publicamente. Para o erro não pode haver nem tolerância nem liberdade. A Igreja Católica é a única verdadeira Igreja cristã e a única verdadeira religião. Deve fazer tudo para impedir a divulgação do erro.
O mais espantoso é o seguinte: investigada sob todos os aspectos, desde o começo do Concílio Vaticano II, a declaração Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, encontrou tantos obstáculos que só foi aprovada a 7 de Dezembro de 1965, apenas um dia antes do seu encerramento por Paulo VI. Seremos capazes de imaginar, hoje, a Igreja Católica contra a liberdade religiosa? Dir-se-á que é um texto menor comparado com as grandes constituições do Concílio. Sem estas não teria sido possível, mas é esta breve declaração que constitui o contributo maior do catolicismo para o diálogo entre os povos e entre as religiões.
Enquanto os países de maioria islâmica não deixarem praticar, nos seus espaços, a liberdade religiosa que para si reivindicam, estão a exigir que entre os seres humanos haja dois pesos e duas medidas. É a desumanidade. Não é bonito.
[1] Cf. Reflexões Islâmicas, Ano III, nº. 160, 15.11.2015