Crónica de Alexandra Lucas Coelho
no Público de hoje
Do ponto de vista do Vaticano, o Papa Francisco vai cada vez mais longe. Do ponto de vista de Lampedusa, da favela de Manguinhos ou do bairro PK5 da República Centro-Africana, está cada vez mais perto, de mais católicos, mas não apenas, de outros cristãos, de espíritas, de pagãos, de agnósticos, de muçulmanos. Francisco tem coragem, visão e uma empatia imediatamente sentida como verdadeira. Testemunhei isso de perto no Rio de Janeiro, na voz, na postura, na escolha dos lugares e das palavras. Há nele uma graça que parece vir de uma rara percepção do sofrimento. Como poucos, é tocado e toca, tanto que quase acredito na possibilidade de ele mudar a relação da igreja com a sexualidade, conflito que muito faz sofrer e mata, separando a igreja do humano. Aí, Francisco deu passo-e-meio em frente, um ao lado, nada mudou muito. Mas em muitas outras fronteiras, políticas, religiosas, étnicas, económicas, este Papa tem movido e comovido. Para uma irredutível não-crente como eu, a sua visão do mundo é a mais próxima de um ideal humanista compatível com a fé. Dito de outra forma, Francisco traz à fé uma firme determinação em mantê-la humana, o que é relevante para crentes de todas as igrejas e para não-crentes, para qualquer pessoa que se relacione com outra neste planeta à beira do abismo. Por isso foi tão importante o que aconteceu na República Centro-Africana esta semana: inspirador para os muçulmanos e cristãos locais; para centenas de milhões de muçulmanos em todo o mundo acossados pelo saque da sua religião; e para toda a gente que se ache à deriva numa espécie de terceira guerra mundial.
2. O que aconteceu na República Centro-Africana, segunda-feira, foi que o Papa Francisco atravessou um cerco de milícias cristãs armadas para ir ter com os muçulmanos enclausurados lá dentro. A capital do país é Bangui, o cerco acontece num bairro chamado PK5, que se tornou o reduto dos últimos muçulmanos, depois de as milícias cristãs terem forçado mais de 100 mil a fugir, entre vários massacres. A violência dessas milícias é uma resposta à violência da coligação de rebeldes muçulmanos que governou o país durante uns meses de 2013. Foi este ciclo de violência que Francisco procurou quebrar, transpondo o cerco de pé num carro descoberto. E chegando à mesquita central disse “Deus é paz, salam”, “somos irmãos e irmãs”. O PÚBLICO citou o que um velho muçulmano, Idi Bohari, disse à Agência France Press: “Pensávamos que todo o mundo nos tinha abandonado, mas ele não nos abandonou. Ele também nos ama, aos muçulmanos, e eu estou muito feliz.” Isto não é demagogia, relações públicas nem proselitismo. Acredito que esse velho tenha sentido o que vi na cara dos favelados negros do Rio, e quantos deles não seriam católicos. Ir a um enclave miserável e perigoso no meio de África para dizer a muçulmanos que somos irmãos, como ir a Lampedusa abraçar os muitos não-cristãos que sobrevivem ao Mediterrâneo, como nos países mais pobres da América Latina denunciar a violência dos mercados financeiros e o capitalismo como uma escravatura contemporânea, nada disto são passeios de papamóvel.
3. Estive em alguns dos pontos mais religiosamente fanáticos do planeta, de Jerusalém a Kandahar, de Bombaim ao interior dos Estados Unidos. Conheci fundamentalistas católicos, evangélicos, muçulmanos, judeus, hindus. Em todos eles vi violência, de todos o mundo já recebeu violência. Passei boa parte do meu tempo de repórter a escrever sobre pessoas atravessadas por conflitos religiosos, mas também pela vivência de Deus ou dos deuses de uma forma não-conflituosa. Nos lugares mais extremos, mais desfeitos, encontrei padres e freiras, monges e rabinos, imãs e pastores que eram oásis no horror, tal como também encontrei o contrário. Ao fim de todos estes anos, não olho para a religião como mais ou menos responsável pelo horror. É um espelho onde se projecta tudo, tudo se acolhe e tudo pode ser saqueado. A Inquisição saqueou a Bíblia para roubar, matar, exterminar, como o “Estado Islâmico” hoje saqueia o Corão para roubar, matar, exterminar. Todos os bons leitores da Bíblia sabem como é fácil tirar dela um Deus rancoroso, vingador, exterminador, e o contrário disso. Da mesma forma que é fácil um extremista judeu invocar a Torá ou o Talmude, ou o “Estado Islâmico” clamar que honra Maomé. Quanto mais desintegrados e vulneráveis, maior a hipótese de a religião funcionar como arma, represália ou solução. Sabemos tudo isto há muito, ou devíamos saber, mas talvez valha a pena repeti-lo, agora que a tentação será dizer, ah, sim, mas o Corão é violento, maltrata as mulheres, permite a escravatura. Talvez tudo isso se possa ver no Corão, como tudo ou o seu contrário se pode ver na Bíblia. Centenas de milhões no mundo têm fé e nenhum ímpeto de incomodar o vizinho, mas para quem odeia o vizinho, ou o destino, a fé é um bom combustível. Todas as fés têm uma espécie de zona vermelha, para além da qual estamos no domínio da violência sobre os outros. E, convenientemente alimentada, essa zona expande-se geometricamente, serve impérios.
4. É aqui que o Papa Francisco entra, detendo o ponteiro enlouquecido da bússola. Ao ir onde vai, ao dizer o que diz, ao abraçar quem abraça, ele redefine o eixo da fé em 2015, uma fé tão nos antípodas da Inquisição ou das seitas cristãs contemporâneas como a minha família de Gaza está nos antípodas do “Estado Islâmico”. A grande revolução de Francisco será essa, resgatar a fé da zona vermelha do saque, começando pelos saqueadores do Vaticano, porque um cristão humanista estará sempre mais próximo de um muçulmano humanista do que de um cristão fundamentalista, tal como um muçulmano humanista está mais próximo de um cristão humanista do que de um muçulmano fundamentalista. Dois crentes humanistas estarão sempre próximos, independentemente da igreja.
5. Da mesma forma, o que une uma milícia cristã e uma milícia muçulmana é serem milícias. Milícias são milícias, não se tornam melhores por serem cristãs ou muçulmanas, tal como a censura, a escravatura, as prisões políticas, os massacres, não se tornam mais justos por serem de esquerda ou de direita. Não há boas ditaduras e não há boas milícias, tal como não há má democracia. Aprisionar outro povo, por exemplo, não é má democracia, mas a sua ausência.
6. Impossível ler as palavras cerco, milícias cristãs, enclave muçulmano sem pensar no que aconteceu em Beirute em 1982, quando as tropas do general israelita Ariel Sharon cercaram os campos de refugiados palestinianos de Sabra e Shatila para as milícias cristãs libanesas poderem entrar, e chacinar. Foi um auge do horror, mas passados 33 anos, que é a idade de Cristo, os palestinianos continuam a viver em campos de refugiados no Líbano, na Síria, na Jordânia, em Gaza e na Cisjordânia, agora com milhões de refugiados da guerra na Síria e no Iraque, e com cada vez mais colonos israelitas numa terra que já tinha sido desfeita. Enquanto parte do Médio Oriente está em guerra e em ruínas, Israel continua simplesmente a sua guerra fria, construindo colonatos, mantendo centenas de milhares de pessoas reféns, agora que a compaixão internacional não tem mãos a medir com outros dramas. Estou há semanas para escrever sobre a dita reintifada das facas, ainda não é desta. Mas se há algo que eu ainda gostaria de ver o Papa Francisco fazer na terra três vezes santa seria a ousadia de falar, como nem americanos, nem europeus, nem árabes até hoje ousaram, contra esta barbárie de um povo estar prisioneiro há várias gerações.
Nota: Texto e fotos do PÚBLICO