Parece que andamos todos a jogar taco a taco ou desconfiados de quem passa ao nosso lado, como se fosse um inimigo. Todos os dias, polémicas, desmentidos, respostas tortas e crispadas, opiniões a pretender ser moeda única na comunicação. Todos os dias a parecer que as relações sociais e o direito de cidadania e de expressão têm de ser inspirados no prós e contras. Cada vez mais frequentes as manifestações de rua que, anos atrás, eram apenas por razões laborais e hoje, também, para expressar direitos fundamentais à saúde que só este campo dá razões, sem conta, para crispar as pessoas.
É verdade que só o governo fornece matéria de sobra para esta irritação colectiva, que já deixa poucos de fora, pouco mais que a gente que vive longe de Lisboa, que quando sente esmagada ou esquecida, mostra a coragem e a sabedoria da vida que leva consigo. Então não se cala e, como o cego de nascença do Evangelho, que é mandado calar por quem não quer ser incomodado, mas o faz gritar ainda mais. Na persistência teve a cura, porque alguém, por gritava, o ouviu. Mas esse foi Jesus, não o ministro da saúde...
Na vida em sociedade há coisas ambivalentes e difíceis que não se esclarecem só porque sim e não se implementam validamente, só pela força férrea de quem manda.
Há resignação que não é aceitação e a resignação pode sempre levar ao “já basta”.
Quem detém a autoridade, pais, professores, bispos e padres, ministros e subalternos até ao extremo dos agentes de segurança pública, precisa de saber que, se já não é igual quem é chamado a obedecer, também não pode ser igual quem detém a autoridade.
Não se trata de subverter o papel da autoridade, mas sim de a compreender e exercer como serviço, respeito pelos súbditos, sejam eles quem forem, diálogo normal que já ninguém dispensa, nem sequer os miúdos dos jardins-de-infância. Depois, também a consciência de que opiniões não são dogmas e a grandeza de alma para reconhecer que nem sempre o que se mandou estava certo e era o melhor, ou que não foi previamente dialogado e justificado. A teimosia não é força de razão.
A nível nacional os factos multiplicam-se todos os dias: o lugar do aeroporto, o furor da ASAE, a administração BCP, as medidas precipitadas na saúde, a sobrecarga das urgências já tornadas átrios de morte, o eterno problema das escolas, a polémica lei do tabaco, a dança das pensões de reforma, as leis do trabalho, o disparado custo de vida, os impostos, o desemprego sempre a crescer, enfim e acima de tudo o manifesto desfasamento entre o discurso dos governantes e a vida das pessoas…
Parece que o governo, que até tem tomado medidas necessárias, decidiu ouvir pouco ou mesmo nada, com excepção para os grupos de pressão, escondidos atrás de anonimatos e vénias. Para o povo e seus representantes naturais e as diversas instituições que com ele lidam de perto e sabem interpretar os seus sentimentos e seus desejos não há tempo.
Já alguém disse que as diversas autoridades, e disse-o olhando os governantes, são “ventríloquos”. Como a tentação é de todos, pode estender-se a outros com poder de decisão. Quem fala só para dentro ou só fala de si, dá nota de merecer especial atenção. A comunicação normal é feita com os outros, para que possa ter eco, resposta e parceria colaborante nas decisões a tomar.
Muito deste clima encrespado evitava-se e teríamos mais concórdia e colaboração, se todos valessem por si e fossem mais responsabilizados na resposta às necessidades emergentes. O governo, para poder estimular quem serve e apoiar quem age, tem de ter abertura, proximidade normal das pessoas, diálogo construtivo.
Se entramos no “hoje sim, amanhã não”, jamais se saberá a ponta a pegar na conversa. Isto leva à critica fácil, ao arredar dos mais válidos, ao ascender dos mais inúteis, à escolha de criados de serviço, a que se dispensam opiniões e se favorecem aspirações.
António Marcelino