sábado, 3 de julho de 2021

Lídia Jorge: «Pede-se à Igreja que os seus sacerdotes sejam cultos»

Lídia Jorge considera que entre vários padres subsiste uma ignorância em relação a criações elementares da arte e da cultura, que é preciso corrigir para aproximar a Igreja de mais pessoas, e constata que muitas homilias sobre o mesmo texto bíblico se repetem ao longo de décadas, indiferentes às mudanças no mundo.
«Pede-se à Igreja que os seus sacerdotes sejam cultos» e «tenham acesso a obras literárias, instrução do ponto de vista de gosto pela música, pelo teatro, pelas várias expressões da cultura», afirmou a escritora durante o 14.º Encontro Nacional de Referentes da Pastoral da Cultura, que decorreu pela internet nesta quarta-feira.
No encontro organizado pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, Lídia Jorge sublinhou que o desenvolvimento da sensibilidade para a cultura deve ser acompanhada pela «capacidade de dialogar com as pessoas».
«Muitas vezes» fala-se com sacerdotes «que não leram nada, a não ser obras fundamentais da teologia», mas «são incapazes de perceber o que a obra de James Joyce, ou outra, lhes pode dar», referiu.

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Liberdade e dignidade humana

Crónica de Anselmo Borges 
no Diário de Notícias

1 A diferença entre o Homem e os outros animais não é meramente de grau, quantitativa. Ela é a qualitativa, essencial.
A razão dessa diferença está fundamentalmente no facto de o Homem não se encontrar na simples continuidade da vida no sentido biológico. Como escreveu o filósofo Max Scheler, o Homem é "o asceta da vida", pois é capaz de dizer não aos impulsos instintivos. Por exemplo, ao contrário dos animais, o ser humano, mesmo com fome, perante um petisco, é capaz de renunciar, por razões de ascese, de generosidade para com um necessitado ou pura e simplesmente para provar a si mesmo que é senhor de si e das suas acções. Precisamente nesta sua capacidade vê o célebre biólogo Francisco J. Ayala "a base biológica da conduta moral da espécie humana, nota essencialmente específica dela." Porque é capaz de renunciar, abster-se, deliberar, optar, o Homem é um animal livre e moral.
Os outros animais também comunicam, mas o Homem tem linguagem duplamente articulada. Aristóteles viu bem, ao definir o Homem como animal que tem logos (razão e linguagem), e, assim, como "animal político". "Só o Homem, entre os animais, possui fala. A voz é uma indicação da dor e do prazer: por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Surpreendidos por causa de Jesus. E nós?

Reflexão de Georgino Rocha  
para o Domingo XIV do Tempo Comum

“Não se deve renunciar ao sonho de um mundo sem guerras. Que todos os povos da terra possam gozar da alegria da paz”

Papa Francisco 

Jesus deixa Cafarnaum e faz uma visita a Nazaré, terra em que reside durante muitos anos e onde é bem conhecido. Ao sábado, vai ao culto na sinagoga, como bom judeu. Observa as práticas rituais e, quando chega a vez da intervenção dos presentes, toma a palavra e faz um ensinamento que provoca assombro na assembleia. A reacção é imediata, pois o seu estatuto social não condizia com tanta sabedoria. A vida quotidiana da sua família era tão normal que ninguém notava algo de estranho. A inserção na comunidade local e nas práticas cultuais identificava-o como verdadeiro nazareno. Mc 6, 1-6.
A Bíblia Pastoral comenta esta passagem observando: “Os conterrâneos de Jesus escandalizam-se: não querem admitir que alguém como eles possa ter sabedoria superior à dos profissionais e realize acções que indiquem uma presença de Deus. Para eles, o empecilho para a fé é a encarnação: Deus feito homem, situado num contexto social”.

O gafanhão e a areia - 7


 Na foto: O casal Acácio Nunes e Isabel do Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré 

quinta-feira, 1 de julho de 2021

"Vamos arriar com Deus”

O tom religioso presente em muitas das expressões usadas na pesca do bacalhau demonstra a relação entre as devoções populares portuguesas e as vivências de alto mar que marcam o temperamento dos pescadores. No mar o homem apela ao divino e os gestos repetidos diariamente são intercalados por breves ladainhas evocativas das suas devoções. Com apenas algumas horas de descanso os homens eram acordados por um camarada que ao som dos louvados anunciava um novo dia de trabalho. “Seja Louvado e adorado Nosso Senhor Jesus Cristo, olha são 6 horas, olha o almoço!”1 - Assim recorda «Paxita» o despertar de todos os dias. Numa outra versão dos louvados dizia-se: “Louvado e Adorado Santo Nome de Jesus, por causa de vós irmãos Jesus morreu na cruz. Jesus morreu na cruz e morreu para nos Salvar, ó de baixo salta acima que o de cima está acabar... ”2
Depois do almoço, assim apelidavam a primeira refeição do dia, preparavam o trole e os botes. Os louvados não eram a única ladainha que pela manhã se ouvia a bordo dos navios. Com a seguinte ordem do capitão - “Vamos arriar com Deus” - os dóris eram lançados à água, os pescadores içavam as velas e zarpavam para mais um dia de pesca.

1 «Paxita» alcunha de António Pereira da Silva, natural da Figueira da Foz
2 Louvados no filme ‘Terra Nova Mar Velho’ (1983), realização de Francisco Manso

Nota: 
 1. Da agenda  "Viver em Julho" da CMI
 2. Foto da Rede Global 

Bom mês de Julho para todos

Comecei Julho com uma evocação do gafanhão que desbravou areais inóspitos, a que juntei, ainda madrugada, um poema de Fernando Pessoa, que nos brindou com o pensar  de Álvaro de Campos. Se o primeiro texto nos mostra  a saga dos nossos avós radicados na Gafanha, ainda terra de ninguém, o segundo vem para nos abrir a alma às belas recordações da nossa meninice, quando celebrávamos a festa, simples embora, do dia do nosso aniversário, porventura carregado de sonhos.
Julho chegou para nos abrir de par em par as portas da época de férias que se prolongará até fins de Agosto. Depois, voltaremos ao ramerrão da vida que será como nós a quisermos construir. Cá por mim, prometo lutar no dia a dia por ambientes de paz e concórdia, publicando pela positiva o que sinto, vejo e desejo. 
Bom mês de Julho para todos. 

Aniversário de Álvaro de Campos

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Poesias de Álvaro de Campos.
Fernando Pessoa. Lisboa: 
Ática, 1944 

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