Reflexão de Georgino Rocha
para o Domingo XIV do Tempo Comum
“Não se deve renunciar ao sonho de um mundo sem guerras. Que todos os povos da terra possam gozar da alegria da paz”
Papa Francisco
Jesus deixa Cafarnaum e faz uma visita a Nazaré, terra em que reside durante muitos anos e onde é bem conhecido. Ao sábado, vai ao culto na sinagoga, como bom judeu. Observa as práticas rituais e, quando chega a vez da intervenção dos presentes, toma a palavra e faz um ensinamento que provoca assombro na assembleia. A reacção é imediata, pois o seu estatuto social não condizia com tanta sabedoria. A vida quotidiana da sua família era tão normal que ninguém notava algo de estranho. A inserção na comunidade local e nas práticas cultuais identificava-o como verdadeiro nazareno. Mc 6, 1-6.
A Bíblia Pastoral comenta esta passagem observando: “Os conterrâneos de Jesus escandalizam-se: não querem admitir que alguém como eles possa ter sabedoria superior à dos profissionais e realize acções que indiquem uma presença de Deus. Para eles, o empecilho para a fé é a encarnação: Deus feito homem, situado num contexto social”.
E naquele ambiente simples e sóbrio, Jesus vive em comunhão profunda com Deus Pai, em união filial com Maria, sua Mãe, na companhia de José, seu responsável legal, e em relação com os demais familiares e com a vizinhança. Dá-nos a lição do amor à família, ao silêncio e ao trabalho, segundo Paulo VI, na homilia que faz aquando da visita a Nazaré, em 1964.
A sociedade está organizada com base no binómio honra e vergonha. Se alguém crescia em honra, em fama, em nome, em prestígio, outrem era defraudado, rebaixado, menosprezado. Os ouvintes de Jesus vivem esta cultura e, por isso, fazem perguntas de admiração e suspeita tão directas. Não citam o nome, mas recorrem a expressões como este, ele, artesão, filho de Maria, parente de familiares, nossos conhecidos. E estavam desconcertados. Os dados de identificação tradicional não justificam as acções que Jesus faz nem a fama de que goza, a autoridade com que fala nem a sabedoria que manifesta. Mas, negar os factos, era ingenuidade e os “mestres” religiosos não querem passar por essa vergonha. Aceitá-los era sensatez que exigia uma atitude nova: interrogar-se sobre quem lhe daria tais capacidades, reconhecê-lo como profeta, admitir a suspeita de que a esperança messiânica estava a ser realizada. O desconcerto transforma-se em indignação, em aversão, em violência e vontade de o eliminar.
O Papa em texto recente intitulado «Paz na terra. A fraternidade é possível» alarga o alcance do episódio de Nazaré, denuncia a violência no mundo e insiste na necessidade de persistir no ideal de uma terra sem guerras e sem lógicas de ódio... “Não se deve renunciar ao sonho de um mundo sem guerras. Que todos os povos da terra possam gozar da alegria da paz”…“O esquecimento das dores das guerras torna-nos indefesos perante a lógica do ódio, facilita o desenvolvimento do belicismo. O esquecimento sufoca a genuína aspiração à paz e leva a repetir os erros do passado”.
Outrora como agora! A excelência da doutrina, o bem-fazer da prática solidária, a presença de proximidade, a preferência pela libertação dos pobres, a atenção solícita pelas crianças, a sanação inclusiva dos doentes e das mulheres, a nobreza do seu comportamento perante a autoridade… e muitas outras facetas da vida de Jesus provocam espanto e admiração. E fica-se por aí, mantendo-se o circuito fechado da razão humana, o horizonte limitado da aparência, a memória do passado sem abertura ao futuro da promessa. Não surge a interrogação fundamental: Não será a hora da novidade com que Deus nos surpreende? Não é este o Messias, o Filho de Deus bendito? Não espera de mim uma atitude de acolhimento, de resposta, de fé? Como manifesta a minha vocação de profeta?
Jesus recorre a um provérbio popular para lhes dar resposta e desfazer a rede de comentários. “Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa“, versão adaptada de um outro que era mais corrente: “Nenhum profeta é respeitado no seu lugar de origem, nenhum médico faz curas entre os seus conhecidos”. A provocação também não resulta.
Fica admirado com a falta de fé dos seus conterrâneos. Sente-se desacreditado pelas autoridades do judaísmo e vê crescer a indignação de sectores influentes. Apesar disso continua a desenvolver a sua acção, a levar por diante a realização do projecto de salvação, a anunciar a boa nova do reino. As suas opções contrastam com a cultura predominante: faz da recusa um impulso para a missão, da pobreza de meios a riqueza generosa da doação, do serviço humilde a credencial da autenticidade da sua mensagem. Os conterrâneos de Jesus estavam surpreendidos. E nós?
Pe. Georgino Rocha