CAPITÃO
DE BOM PORTO
Caríssimo/a:
Vamos então até à Capitania levados pela mão do Professor Jaime Vilar:
«Pausa. Silêncio profundo com esboço de sorrisos nalguns rostos. O Comandante rompeu a expectativa:
– Quem foi que trouxe para aqui este homem?
– Fui eu, Senhor Comandante, avançou o Cabo autuante e testemunha do delito. Apanhei-o a fisgar e apreendi-lhe a fisga...
Seguiu-se breve diálogo entre o julgador e o réu:
- O senhor não sabe que é proibido fisgar?
Saiba Vossa Excelência que sim. Eu sou pobre. Não tenho família nem nada de meu. Engraxo e remendo calçado de pobres.Sou coxo e muito doente. Às vezes, falta trabalho. Tenho vergonha de pedir e não sei roubar... Preciso de comer. Como moro perto de uma ribeira, em alturas de aperto vou apanhar duas enguias para matar a fome. Depois, vim para aqui a pé por não ter dinheiro para o comboio e estou ainda em jejum. Não posso voltar para casa a pé.... São mais de 13 quilómetros...
- Leve-me este homem, ordenou o Comandante, e dê-lhe de comer e cem escudos para a viagem. Isso tudo do seu bolso...Está encerrada a audiência.
Na sala ficou um rasto de cheiro a farrapo podre e a catinga. Alguns presentes e o próprio Comandante levaram a mão ao nariz, enquanto o Abílio de peito cheio pelo triunfo sobre o Cabo-do-Mar, saíu da sala atrás do zeloso agente da autoridade marítima...
O Cabo Madeira acompanhou-o até uma tasca próxima, rilhando em silêncio os ossos do ofício, porque não podia rilhar os ossos do Abílio... Afinal de contas, o condenado fora ele, cabo-do-mar. O Abílio comeu e bebeu bem e recebeu ainda cem escudos para o regresso...
Na despedida, desenterrou de um esconderijo da véstia uma nota de cem escudos, dobrada em quatro, tomou-a entre o polegar e o indicador da mão direita, deu-a a cheirar ao cabo passando-lha três vezes pelo nariz, e, com um sorriso velhaco e sarcástico de homem vingado, desabafou:
- Estavam aqui, mas não são p'ra ti. Voltam para casa. Querias lã e foste tosqueado. Por causa de umas tristes enguias mostraste que não passas de um grande pato...
Daí em diante, procurava ostensivamente encontrar-se com o Madeira nas regulares rusgas que fazia por aquelas bandas, e, saboreando o gozo, desafiava-o com cínica zombaria: “Vou à fisga. Anda mais eu atrás de mim que eu digo-te p'ra onde vou. Depois leva-me à Capitania e tu pagas-me a viagem e enches-me a barriguinha...”
O Abílio viveu em paz enquanto pôde. Morreu há anos num Asilo das redondezas. Mas as memórias das suas habilidades e proezas perdurará entre a gente marinhoa que o conheceu, e só se apagará quando na Ria acabarem as enguias.»
Aqui está a minha homenagem ao professor Jaime Vilar e a minha gratidão pelo que fez pela Terra Marinhoa e pelas suas Gentes; aí fica a saudação amiga ao novo Capitão do Porto de Aveiro e a todos os seus colaboradores.
Será que o Abílio da Pega ainda anda por aí?
Manuel