O estudante alsaciano
Antigamente, a escola era risonha e franca.
Do velho professor as cans, a barba branca,
Infundiam respeito, impunham sympathia,
Modelando as feições do velho, que sorria
E era como creança em meio das creanças.
Como ao pombal correndo em bando as pombas mansas,
Corriam para a escola; e nem sequer assomo
De aversão ou desgosto, ao ir para ali como
Quem vae para uma festa. Ao começar o estudo,
Elles, sem um pesar, abandonavam tudo,
E submissos, joviaes, nos bancos em fileiras,
Iam todos sentar-se em frente das carteiras,
Attenta, gravemente — uns pequeninos sabios.
Uma phrase a animar aquelle bando imbelle,
Ia ensinando a este, ia emendando áquelle,
De manso, com carinho e paternal amor.
Por fim, tudo mudou. Agora o professor,
Um grave pedagogo, é austero e conciso;
Nunca os labios lhe abriu a sombra d’um sorriso
E aos pequenos mudou em calabouço a escola
Pobres aves, sem dó metidas na gaiola!
Lá dentro, hoje, o francez é lingua morta e muda:
Unicamente o allemão ali se falla e estuda,
São allemães o mestre, os livros e a lição;
A Alsacia é allemã; o povo é alemão.
Como na propria patria é triste ser proscripto!
Frequentava tambem a escola um rapazito
De severo perfil, energico, expressivo,
Pallido, magro, o olhar intelligente e vivo
— Mas de intima tristeza aquelle olhar velado
Modesto no trajar, de lucto carregado...
— Pela patria talvez! — Doze annos só teria.
O mestre, d’uma vez, chamou-o á geographia:
— "Dize-me cá, rapaz... Que é isso? estás de lucto?
Quem te morreu?"
— "Meu pae, no último reduto,
Em defeza da patria!"
— "Ah! sim, bem sei, adeante...
Tu tens assim um ar de ser bom estudante.
Quaes são as principaes nações da Europa? Vá!"
— "As principaes nações são... a França..."
— "Hein? que é lá?...
Com que então, a primeira a França! Bom começo!
De todas as nações, pateta, que eu conheço,
Aquella que mais vale, a que domina o mundo,
Nas grandes concepções e no saber profundo,
Em riqueza e esplendor, nas lettras e nas artes,
Que leva o seu domínio ás mais remotas partes,
A mais nobre na paz, a mais forte na guerra,
D’onde irradia a sciencia a illuminar a terra,
A maior, a mais bella, a que das mais desdenha,
Fica-o sabendo tu, rapaz, é a Allemanha!"
Elle sorriu com ar desprezador e altivo,
A cabeça agitou n’um gesto negativo,
E tornou com voz firme:
— "A França é a primeira!"
O mestre, furioso, ergue-se da cadeira,
Bate o pé, e uma praga energica lhe escapa.
— "Sabes onde está a França? Aponta-m’a no mappa!"
O alumno ergue-se então, os olhos fulgurantes,
O rosto afogueado; e emquanto os estudantes
Olham cheios de assombro aquelle destemido,
Ante o mestre, nervoso, audaz e commovido,
Timido feito heróe, pygmeu tornado athleta,
Desaperta, febril, a sua blusa preta,
E batendo no peito, impavida, a creança
Exclama:
— "É aqui dentro! aqui é que está a França!"
Acácio Antunes
NOTA: Poema recitado pelo meu pai, José de Almeida, mais conhecido por Zé da Rosa, da Gafanha da Encarnação, nos longos serões, à lareira, e que constava do seu livro de leitura da 4ª(?) classe, em 1929.