O que diz alguém, quando diz "eu"? Afirma--se a si mesmo como sujeito, autor das suas acções conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, na abertura e em contraposição a tudo.
Mas há observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?
Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nesta direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da inexistência do eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge budista, deu-me, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o rio Douro. O que é o rio Douro, onde está? Ele não existe como substância, pois não há senão uma corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de pensamentos fugazes, de vivências? O eu não passa de um nome para designar um continuum, como nomeamos um rio.
Mas há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. O que se passa é que, não se tratando de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível.
É e será sempre enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência. É claro que o eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro do corpo - o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu Leibniz e é agora acentuado pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos eléctricos e químicos no cérebro - processos neuronais da ordem da terceira pessoa - para a experiência subjectiva na primeira pessoa?
Apesar de se não afastar por princípio a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão, o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz disse recentemente numa entrevista: "Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu nem como é que o cérebro é capaz de gerar significados."
E sou livre ou não? É claro que, como escreve o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia falar em liberdade - "As nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis."
Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? "Como não é a minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu, quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu, quem pensa", escreve o filósofo Th. Buchheim.
Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um "eu", segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais. Como diz P. Bieri - cito segundo H. Küng, em Der Anfang aller Dinge (O Princípio de Todas as Coisas) -, "é inútil procurar na textura material de um quadro o representado ou a sua beleza; é igualmente inútil procurar na mecânica neurobiológica do cérebro a liberdade ou a sua ausência. Ali, não há nem liberdade nem falta de liberdade. Do ponto de vista lógico, o cérebro não é o lugar adequado para esta ideia. A vontade é livre, se se submete ao nosso juízo sobre o que é adequado querer em cada momento. A vontade carece de liberdade, quando juízo e vontade seguem caminhos divergentes".
Anselmo Borges, no DN