sexta-feira, 27 de julho de 2007

TECENDO A VIDA UMAS COISITAS - 34

O MORTO QUE MATOU O VIVO
Caríssima/o:
Há outro grupo de imigrantes que demandou a Gafanha e que terei de mencionar: o de S. Pedro do Sul; e não só pelo seu número mas ainda mais por um dos seus membros ter passado para a minha Família. Rabuscando a lenda, contudo aconteceu o inesperado e “o morto que matou o vivo” fez-me reapreciar a figura bondosa e cativante de um Amigo que todos os sábados me entrava pelo portão do quintal e me trazia uma estória nova. Foi da sua boca que ouvi pela primeira vez este retrato do nosso povo. E como ria e nos fazia rir o bom do Padre António Nédio! Vamos então partilhá-la e dedicá-la a todos os Antónios que se têm cruzado nos caminhos por mim trilhados. Se quiserem podem não ler as outras duas.
1. «Lá para Covas do Rio, a cinco léguas de S. Pedro do Sul, conta-se a lenda do morto que matou o vivo. Dizem que foi entre a aldeia da Pena, que na altura ainda não tinha cemitério, e a aldeia de Covas, que o tinha. E o trajecto era forçosamente feito a pé, em que havia quatro homens para o transporte da urna. Pois a dada altura, conta o povo, um dos homens de trás, lá escorregou ou coisa assim, e os outros não seguraram tão bem e o caixão caiu-lhe em cima, matando-o! Foi assim que o morto matou o vivo, dizem por lá... 2. Pois bem, neste concelho fica a Serra de S. Macário, cujo cimo sobe a mil metros. Pois conta a lenda que «Macário era caçador e, num dia de caça, acompanhado de seu pai, pensando que arqueava a flecha contra um javali, feriu mortalmente o pai. Em desespero, correu de um lado para o outro o sucedido, mas sem nunca ter coragem de voltar a casa. Daí em diante viveu sempre na Serra, em isolamento, sobrevivendo de esmolas e penitenciando-se pelo seu erro. Um dia pediu a alguém que lhe desse um montinho de brasas para fazer uma fogueira. Obtendo a graça do seu benfeitor, pegou as brasas com as mãos sem se queimar, ficando desde aí com o nome de santo. Morreu e viveu nesta serra junto à capela onde ainda hoje muitas pessoas o veneram. Em seu nome é feita uma festa anual que ocorre no último domingo de Julho.» 3. Desde que foi feita a Ponte do Cunhedo sobre o Vouga, é muito simples a passagem do rio, não importa a estação do ano. Porém, esta lenda passa-se – se é verdade que as lendas se passam fora da cabeça das pessoas - quando ainda não havia tal passagem, embora o convento de S. Cristóvão já lá estivesse. Bem, e estamos numa bela manhã de Junho, acompanhando a jornada do frade superior dessa pequena comunidade religiosa. Na sua bela égua Estrela, o frade acompanha a margem direita do Vouga. Vai devagar, gostava daquele longo passeio que lhe proporcionara uma visita pastoral. Umas roupas aqui, um dinheirito ali, boas palavras além, conhecia bem aqueles descaminhos, mas também se confiava ao instinto do animal. Dera uma boa volta e regressava satisfeito. Mas o tempo é que estava a mudar de aspecto conforme entravam nas negruras da noite. A égua era fina e o cavaleiro dava-lhe rédea solta, para lhe evitar constrangimento, mas ela parara e acenara com a cabeça, como a dizer ao frade que se segurasse bem porque o pior ainda estava para vir. E o pior eram as poldras, que ela soube atravessar com extremo cuidado. E daí a pouco o frade estava no convento, quase sem dar por isso. Nessa noite, ele soube que, apesar de tudo, passara por milagre o Rio Vouga. Não era só a sabedoria da Estrela a salvá-lo, e no dia seguinte voltou ao sítio das poldras e, desmontando, ficou estarrecido, vendo claramente o perigo por que passara. Eram tamanhos os estragos que a tempestade da véspera fizera! De repente, sentiu um frémito percorrer-lhe o corpo, encostou-se ao pescoço da égua e apercebeu-se que o rio já não era o Vouga, mas outro, muito mais longo e profundo. Já apoiado numa árvore, cadáver há já umas horas, aí o foram encontrar outros seus irmãos que o procuravam...» [V. M., pg. 242]
Manuel

Um artigo de António Rego

FÉRIAS EM FILOSOFIA
A vida são dois dias, o Carnaval, três. Diz-se a brincar, como um hábil jogo de palavras e números, como se nada, de facto, se quisesse dizer. Estes três dias acabam por ter algo de religioso. Três dias de festa estridente que precedem a quarentena de cinzas e penitência. Ou a alusão aos três dias de Paixão de Cristo que terminaram na Ressurreição. Ou escondendo ainda um outro conceito: a vida dura pouco, menos que um divertimento de Carnaval e por isso não vale a pena perder tempo com o que não é aprazível. Indo mais fundo parece insinuar-se uma filosofia de vida retintamente epicurista que valoriza antes e acima de tudo o prazer. As viagens ideológicas demoram o seu tempo e as mudanças, por muito velozes que pareçam, operam-se com leis rígidas que não permitem que a história evolua aos saltos. Entremos um pouco mais no concreto. Vivemos uma sociedade de progresso, trabalho, produção, eficácia, rendimento. Mesmo com o apoio da técnica e da tecnologia, nunca o homem pode dizer que o seu tempo de vida é de lazer, como aconteceria a Adão, não fora o pecado original. Mas o facto é que o conceito de Carnaval como divertimento de choque, excitação, entretenimento esgotante, vai-se estendendo a outras áreas. O repouso já não é o que era. E para muitos, o próprio tempo de férias constitui uma multiplicação – um compacto, como ora se diz – de entretenimentos que se escolhem como em carta de vinhos e se consomem até à embriaguês. Umberto Eco fala mesmo da carnavalização da vida face aos espectáculos constantes que as pessoas procuram, nomeadamente através dos media que são os agentes deste divertimento non stop quer de informação quer de ficção. Aparte outros considerandos parece urgente rever a concepção de repouso, divertimento, festa, corte do trabalho quotidiano (quantas vezes o fim de semana é concebido como tempo de orgia!). Com tudo isso, há valores recônditos que não afloram nos tempos comuns de trabalho e rotina. Há pausas, silêncios, escutas, olhares que só se descobrem num certo despojamento de alma. Será por isso bom que as férias se não transformem em repetição programática do mesmo. Se assim for, semana após o recomeço do trabalho estarão praticamente gastas.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Um livro de Hélder Ramos


"AO PÉ DAS PALAVRAS"


No próximo sábado, 28 de Julho, pelas 18.30 horas, na Gafanha da Nazaré, no Navio-Museu Santo André, vai ser apresentado um livro de poesia de Hélder Ramos, com prefácio de João Alberto Roque, ambos gafanhões. “Ao pé das palavras”, assim se chama a obra, vai, por certo, merecer a atenção não apenas dos amantes da poesia, mas, fundamentalmente, de todos os que gostam da arte de bem escrever.
Hélder Ramos começou muito jovem a escrever poesia, sou eu disso testemunha, pois me recordo bem de o ter ajudado a publicar alguns poemas numa revista (Boletim Cultural da Gafanha da Nazaré) de que apenas foram editados três números. A Gafanha da Nazaré, terra de poetas e de outros cultores das artes literárias, mas também de artistas de várias correntes estéticas, bem merecia uma publicação periódica, se, para tanto, houvesse coragem de avançar com ela, para bem do enriquecimento cultural dos gafanhões e dos que assumiram esta terra como sua.
Hélder Ramos, agraciado com vários prémios literários, a par de uma carreira docente e de uma variada intervenção cultural a diversos níveis, merece o carinho da nossa gente e o apoio de quantos, sobretudo instituições vocacionadas para a cultura, acreditam que as artes, tornando o mundo mais belo, são sempre uma mais-valia para a formação integral dos homens e mulheres que apostam numa sociedade mais humana e mais fraterna.
Os meus parabéns ao Hélder, com votos de longa carreira no domínio da poesia, mas não só.

F.M.


APERITIVO: Aqui ficam, como aperitivo,
quatro poemas do livro de Hélder Ramos
::




PARA LÁ DOS TELHADOS

Para lá dos telhados
Somem-se fumos de montanha
A acariciar
O céu sem limite
De onde vem
A tua música
Que ouço
E prende
Ao mundo
A alma
Que enleva
Na distância
Os sentidos

OPÇÃO

É à noite que segredas
Existirem sombras
Na essência dos vultos
Onde, suspensos,
Os jardins de águas tristes
Se aquietam
Como fábricas de esperanças
Programadas...
Depois, no rumor
Luminoso de um novo dia
Inocente,
Abre as asas em glória
E não digas mais nada;
- Faz como quem aprende
A abrir sendas de vitória
Ou sê a sombra na estrada.

EVOCAÇÃO I


Não foi o vento
Que pediu que partisse
Sem destino
Nem o mar
Me prendeu
Com os seus brilhos
Foi a saudade
Dos teus olhos
Pronta
Em acenos
De ânimo
E mistérios
Sem conta

O VÍCIO DO MAR


Tens nos teus olhos
O vício do mar
Que me chama
Em cada onda
A rolar
Inquieta;
Desejosa
Do fulgor
De cada imagem:
Palavra
Ansiosa
Por saber
E sei que és
Essa força
Solene
A renascer
Que habita
Um poema
Por conhecer

Museu Marítimo de Ílhavo

Monumento ao Homem do Mar. À esquerda está o Museu de Ílhavo

EXPOSIÇÃO: A DIÁSPORA DOS ÍLHAVOS

No próximo dia 8 de Agosto, o Museu Marítimo de Ílhavo comemora 70 anos de vida. Para recordar e celebrar essa efeméride vai haver festa, com um programa que durará 70 horas.
Os ílhavos vão poder apreciar exposições, música, teatro, poesia, cinema, visitas guiadas e dança contemporânea. Mas ainda poderão saborear a rica gastronomia da região.
Diz o Diário de Aveiro que Álvaro Garrido, director do Museu, “destaca a exposição «A Diáspora dos Ílhavos», uma narrativa ancorada numa investigação inédita que versa um dos principais imaginários da história local, mitos e realidades. Desde a segunda metade do século XVIII, os ilhavenses fizeram um movimento migratório ao longo da costa continental portuguesa motivado por factores, como a sazonalidade da pesca, o assoreamento da Ria de Aveiro e a escassez de outros recursos económicos.
Esta exposição compõe-se de discursos vários, de onde ressalta uma peça proveniente do British Museum e que se crê ser do «barco de mar» característico das artes da costa de Aveiro e muito usado pelos ílhavos nos seus movimentos migratórios do litoral português.
«A diáspora dos Ílhavos» vai estar patente ao público na Sala de Exposições Temporárias”.

FIGUEIRA DA FOZ: História na cidade



TEATRO PRÍNCIPE D. CARLOS

Passear por qualquer povoação, desde a mais humilde aldeia até à mais sonante e cosmopolita cidade, exige de nós uma atenção especial, para descortinarmos sinais ou vestígios da história local e até nacional.
Há dias vi, na Figueira da Foz, um símbolo do que digo: Uma lápida, perto da Câmara Municipal, recordava um edifício e acontecimentos a ele ligados. Diz assim:



Memória

Neste local esteve edificado o
TEATRO PRÍNCIPE D. CARLOS

Inaugurado em 8 de Agosto de 1874, sede do Ginásio Clube Figueirense desde 1896 até 25 de Fevereiro de 1914, data em que foi destruído por um incêndio.

Erigido pelo Ginásio Clube Figueirense
em 28 de Fevereiro de 2000

Aprender até morrer

Texto de D. António Marcelino

Li, com interesse e sem especiais preconceitos, a entrevista de José Saramago ao DN (5.7.2007). Deixo a outros, que já começaram a fazer os seus comentários e vão continuar por certo, os aspectos opináveis de ordem nacional e política, para me fixar apenas nos religiosos, a que dogmaticamente o escritor se referiu.
As suas palavras e opiniões não constituem novidade, uma vez que José Saramago, pelo menos em determinados assuntos, nunca reviu nem actualizou a tradicional cassete, esquecendo, não sei se de propósito, por inércia ou por acinte, que também neste campo, sem mudar o essencial da fé cristã, muitas coisas mudaram.
Actualizar conceitos, aprofundar conhecimentos, rever critérios de discernimento crítico é próprio de pessoas intelectualmente honestas, que, enquanto vivas, não dão por completado, em nenhum aspecto, o seu saber. Um Prémio Nobel, qualquer que seja o campo em que foi galardoado, não é, por esse motivo, um poço sem fundo nem de ciência e, muito menos, de sabedoria, em todos os ramos da cultura. Nesse logro correu há séculos um “sábio”, Pico de Mirandola, quando se afirmou detentor de todo o saber humano de então.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Um poema de Antero de Quental





À VIRGEM SANTÍSSIMA

Num sonho todo feito de incerteza
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza…

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade,
Era outra luz, era outra suavidade
Que até nem sei se as há na natureza…

Um místico sofrer… uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira…

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa…
E deixa-me sonhar a vida inteira!


In SONETOS,
da colecção Clássicos da Língua Portuguesa,
nº 1, da editora Ulmeiro.

NOTA: A Leitura, em férias, de “Antero ou a Noite Intacta”, de Eduardo Lourenço, livro editado em Maio deste ano, suscitou-me a releitura dos Sonetos de Antero de Quental, obra maior da nossa literatura. A edição é de 1985 e tem prefácio de Nuno Júdice, de grande actualidade, mas ainda é oferecido ao leitor um outro prefácio de Oliveira Martins, grande amigo do poeta e do pensador, em cuja casa estava sempre pronta a cama e a mesa para o receber.
Diz Oliveira Martins: “Estou certo, absolutamente certo, de que este livro, embora sem eco no espírito vulgar que faz reputação e dá popularidade, há-de encontrar um acolhimento amoroso em todas as almas de eleição, e durar enquanto houver corações aflitos, e enquanto se falar a língua portuguesa.”
Penso que ainda dura esse acolhimento por parte de muitos portugueses com sensibilidade para as artes. Eu próprio me encontro nesse rol. Em férias, sobretudo, gosto de reler os clássicos e quantos me tocam mais intimamente. Por isso, aqui fica esta minha sugestão para os que podem gozar férias neste ano de 2007.
Só mais uma achega: O poema que relembro aos meus leitores, dedicado à Virgem Santíssima, não significa que Antero tenha professado o catolicismo ou até o cristianismo, embora tenha sido influenciado pelos seus valores, que bem conhecia. Aliás, isso acontece com muito boa gente dos nossos quotidianos.

F.M.

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