quinta-feira, 26 de julho de 2007

Aprender até morrer

Texto de D. António Marcelino

Li, com interesse e sem especiais preconceitos, a entrevista de José Saramago ao DN (5.7.2007). Deixo a outros, que já começaram a fazer os seus comentários e vão continuar por certo, os aspectos opináveis de ordem nacional e política, para me fixar apenas nos religiosos, a que dogmaticamente o escritor se referiu.
As suas palavras e opiniões não constituem novidade, uma vez que José Saramago, pelo menos em determinados assuntos, nunca reviu nem actualizou a tradicional cassete, esquecendo, não sei se de propósito, por inércia ou por acinte, que também neste campo, sem mudar o essencial da fé cristã, muitas coisas mudaram.
Actualizar conceitos, aprofundar conhecimentos, rever critérios de discernimento crítico é próprio de pessoas intelectualmente honestas, que, enquanto vivas, não dão por completado, em nenhum aspecto, o seu saber. Um Prémio Nobel, qualquer que seja o campo em que foi galardoado, não é, por esse motivo, um poço sem fundo nem de ciência e, muito menos, de sabedoria, em todos os ramos da cultura. Nesse logro correu há séculos um “sábio”, Pico de Mirandola, quando se afirmou detentor de todo o saber humano de então.
Hoje cita-se e recorda-se como se de um louco se tratasse. De pé continua a velha sentença do sábio helénico, própria dos verdadeiros sábios, sempre humildes perante o universo inesgotável do saber humano: “Só sei que nada sei”. José Saramago, nada consciente das suas limitações, desfralda, mais uma vez, a velha bandeira, eivada de preconceitos, de uma Igreja retrógrada e intolerante, prisioneira do concílio de Trento, agora obcecada com o corpo das pessoas e a pretender controlá-lo. E sentencia, sem apelo, que se alguma coisa ela tem a dizer o “faça no plano da salvação das almas e deixe o corpo em paz”.
Tal sentença para um qualquer romancista, que, pela sua profissão, se espera seja sempre um humanista, é, no mínimo, preocupante pela pobreza antropológica que denuncia e pelo vazio cultural que comporta. Já nem falo da mensagem da Igreja, que ele certamente desconhece. De há muito que ela ensina que a alma, durante a vida terrena da pessoa, não é uma entidade separada do corpo. Diz noutro lugar Saramago que “a Europa não deve ser um clube religioso centrado no cristianismo ou nas diversas religiões que estão representadas no continente e que têm seu peso”.
Não deve ser, nem se pretende que seja. Apenas se preocupa a Igreja e as diversas religiões credíveis, para bem dos europeus, em avivar a memória histórica, que alguns rasgaram, por ignorância ou má fé. A Europa não se explica a si própria por via dos limites geográficos ou dos arranjos políticos, sempre circunstanciais, mas pelo património cultural que a animou, lhe deu corpo e rosto, lhe configurou a história e deu rumo ao seu desígnio e projectos. E tudo isto tem a ver com o cristianismo e não só com ele. 
Tudo isto hoje parece secundário para os intelectuais de pacotilha, que preferem desconhecer as raízes culturais e destruir o que vem de trás, mormente se tem sinais de religioso ou sobretudo de cristão, em vez de procurarem, numa linha de fidelidade científica, o modo de melhor servir as pessoas e o bem comum que as ajuda a ser e a manterem-se dignas e sem complexos.
Sem respeito pela memória, nunca haverá futuro consistente. O projecto europeu não começou com o sonho de Lenine, nem acabou com a queda do muro de Berlim. Não sobrevive à custa de Bruxelas, nem vive ansioso por novos tratados que o justifiquem, onde quer que eles sejam datados. A Europa precisa de pessoas com dimensão humana e histórica e com valores morais, capacitadas para assumir e integrar êxitos e fracassos de ontem e de hoje.
O cristianismo, bem como outras confissões religiosas, porque deram alma à Europa, para além das suas falhas e desvios, tributo pago ao tempo, estão aí, como sempre estiveram, a lutar pela Europa das pessoas, com poucos parceiros com igual preocupação. As pessoas são a sua indispensável riqueza, o seu verdadeiro património.

António Marcelino
  

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