domingo, 23 de julho de 2006

Um artigo de Anselmo Borges, no DN

'Têm havido'
muitos erros
Aborrece-me sumamente ter de ouvir ministros, professores dos vários graus de ensino, jornalistas, estudantes - eles e elas - a dizer: "Houveram encontros", "Poderiam haver mais possibilidades", "Haviam tantas mulheres que os homens tiveram medo", "Podem haver outros mundos."
Seria preciso perguntar-lhes qual é o sujeito do verbo. Não há paciência!Apareceram agora os resultados dos exames e, mais uma vez, foi o desastre: a Matemática teve uma ligeira melhoria em relação ao ano transacto, mas, mesmo assim, 64% das notas foram negativas, a média geral das notas de Química foi de 6,9 valores e a de Física, 7,7.
Mas, para mim, o mais impressionante foram os resultados dos exames de Português: nota negativa para metade dos alunos, o dobro em relação ao ano passado. A palavra é mesmo essa: um desastre!
E a mim impressionam-me particularmente os resultados dos exames de Português, porque há muito tenho a ideia de que o problema essencial da Matemática, da Física e da Química é mesmo o português, a língua portuguesa. Porque uma língua é um mundo com uma determinada estrutura. O mundo em português e em alemão, por exemplo, não é exactamente o mesmo - Heidegger chamava a atenção para o facto de, em última análise, a sua filosofia só ter sido possível a partir da língua alemã. George Steiner não se cansa de repeti-lo: "Como Freud nos ensina, é preciso virar os grandes mitos ao contrário, eles dizem o contrário do que parecem dizer. Babel, longe de ser uma punição, é talvez uma bênção misteriosa e imensa. As janelas que uma língua abre dão para uma paisagem única. Aprender novas línguas é entrar em novos mundos."
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Quadros da Ria de Aveiro

Zé Penicheiro,
Aveiro, Gente da Ria,
acrílico sobre cartão, 27x21,
Colecção Particular ::
Se passar por Aveiro, não deixe de deambular por aqui e por ali, na esperança, quase certeza, de encontrar quadros como este. Como este e como muitos outros que o artista Zé Penicheiro nos vai oferecendo, com a sua rica sensibilidade, que faz dele, decerto, um dos melhores artistas da nossa Ria.

Representações do sagrado e conflito de liberdades - 3

Representações
do sagrado e liberdade
O sagrado enquanto tal não tem representação. Todas as formas ou fórmulas que procuram atestar o sagrado são da ordem das mediações, da linguagem. O sagrado apresenta-se à consciência humana como um processo dialogal, comunicacional, onde se instaura uma relação entre a experiência humana e a percepção de uma dimensão da realidade transcendente, não domável e não apropriável. A objectivação dessa realidade sempre foi constitutiva da ordenação da vida das comunidades e dos indivíduos, na medida em que permite o estabelecimento de fronteiras e de perímetros existenciais. Em muitos universos culturais e religiosos, o sagrado tende a circunscrever uma exterioridade só acessível a alguns, determinando simultaneamente a territorialidade do profano, próprio ao comum do humano. Nesta perspectiva, esta forma de ordenar a realidade fornece à hierarquização estabelecida uma legitimidade decorrente do sagrado, conduzindo à identificação dessa ordem com a representação do sagrado entre os humanos e nas sociedades. A ilustração desta ordem, por mais variada e diversificada que seja, corresponde a representações e imagens que transportam determinados códigos que permitem a cada homem e a cada comunidade um processo de identificação e de crença. Essa objectivação que vai de expressões miméticas do viver humano até a expressões de maior abstracção, como seja a lei, passando pela definição de espaços e de tempos carregados de sentido e de laços de pertença. Por isto mesmo, essas representações suscitam um envolvimento afectivo e, elas próprias, ilustram as mundividências que cada um possui, individualmente e em grupo. Todavia, por diversas vias, existe também uma outra percepção, fundamental para a condição humana, que tem a ver com o facto de se considerar que a representação por excelência do sagrado se encontra na conjugação com o profano que acontece na individualidade de cada um como pessoa. Contudo, para muitos, este modo de colocar as questões acarreta como que uma dessacralização. Mas tal nem é exacto, nem correcto. Não se trata da divinização do humano ou da redução do divino ao humano, bem pelo contrário. Trata-se do reconhecimento de que é no interior do humano que se inscreve uma realidade de transcendência onde se joga a abertura e a relação de cada um aos outros: a razão profunda da existência. Este modo de entender a representação do sagrado, se encontra certamente na antropologia cristã um dos seus principais fundamentos, manifesta-se em muitas outras tradições que colocam o homem não como centro de tudo, mas como sujeito relacional consigo, com os outros e com a natureza. Neste contexto, a experiência de liberdade é crucial neste processo de afirmação do sagrado. A liberdade não é ausência de laços e, consequentemente, de capacidade de escutar (obediência) e de responder (responsabilidade). A liberdade rompe com a escravidão e a dominação, na medida em que são estas as mais profundas e radicais atitudes de dessacralização. Não é o exercício da liberdade que rejeita o sagrado, bem pelo contrário, mas são os comportamentos ou as mediações de servitude que negam ao homem e à mulher a sua realização, retirando-lhes o protagonismo e a participação no caminhar e no crescimento de uma consciência pessoal onde a alteridade - a contemplação e a complementaridade do outro - não fenece em qualquer narcisismo, mais ou menos ferido, mas onde essa alteridade corresponde à complementaridade parceira de um percurso solidário. Sim, é a vida do outro enquanto pessoa, reconhecida e querida, que é a representação do sagrado. As representações do sagrado na sua conjugação com a liberdade não podem fechar o essencial que é a comunicação entre pessoas e comunidades diferentes e distintas. O sagrado em qualquer uma das suas representações não pode esmagar, mas instaurar a capacidade de comunicação assente no que o outro quer dizer, mesmo quando se exprime de forma radicalmente contraditória e antagónica. O sagrado não é incompatível com a liberdade, nem vice-versa, mas que para tal aconteça o que está em jogo é a alteração do desejo de subjugação e de domínio sempre presente como idolatria e como opressão nas pessoas e nos grupos. António Matos Ferreira Historiador, UCP
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In "Observarório da cultura"

Uma opção corajosa

Alberto Ramos
tem 72 anos,
uma filha
e tornou-se padre
aos 67 anos
A conversa veio interromper-lhe o estudo da Bíblia Sagrada. Alberto Ramos guarda os apontamentos, enfia a caneta Montblanc no bolso da camisa, recosta-se na cadeira e pede perguntas. Daí a pouco há-de realizar um funeral. Por agora, apressa-se a desfiar o longo novelo da sua vida. Tem quase 73 anos, é vigário paroquial de Belas e S. Brás, concelho de Sintra, mas já foi casado e tem uma filha.
O padre Alberto Ramos nasceu em Nogueira, Vouzela. Cumpriu o serviço militar na Marinha e, terminado o liceu, ingressou na PSP (Polícia de Segurança Pública), nos serviços administrativos. Foi funcionário civil da polícia. Primeiro em Aveiro, depois em Viseu. Quis melhorar a vida e estudou. "Licenciei-me em Ciências Sociais e Política Ultramarina. E o Ministério da Justiça ofereceu-me um lugar de administrador em Moçambique. Não hesitei." Por essa altura já era casado com Maria de Fátima Matos. Juntos, tiveram uma filha, Filomena. Em Moçambique, não quis parar de aprender e tirou o bacharelato em Jornalismo.
Depois do 25 de Abril, veio para Portugal, esteve preso 22 meses por ter sido um representante do Governo em Moçambique, a seguir trabalhou na Cruz Vermelha e no Instituto Nacional de Estatística.
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Um artigo de Sónia Morais Santos. Leia mais no DN

sexta-feira, 21 de julho de 2006

Um artigo de D. António Marcelino

Destruição criminosa e falta de senso comum
Refiro-me à destruição da família. Feita de modo pro-gramada por uns, por inércia por outros, por pouco saber e fraco discernimento da realidade hu-mana e social por parte de políticos e outros responsáveis, pelos seus próprios membros, quando não se chegou a saborear a riqueza da experiência familiar ou depressa se perdeu esse sabor único, pelo ambiente desfavorável, cultural, ideológico e legislativo, que despreza os seus valores ou os passa a segundo plano. A família está, de facto, submetida a uma crise sem precedentes na história. Um dado evidente com fautores conhecidos.
A defesa da família é hoje a tarefa mais difícil e ingrata, mas também a mais urgente. Se ninguém pode viver sem amor, o espaço normal do amor e da felicidade é a família equilibrada e séria que, contra ventos e marés, se sente apoiada e não desiste de ser família. Por esta tem de lutar quem trabalha pelo bem comum e tem bom senso.
Quem vai construindo a sua vida, com determinação e sentido, tem por detrás uma família que apoio e é referência. Verificação diária, feita por todos quantos amam, estimam e defendem a sua própria família, qualquer que ela seja. Por outro lado, vidas socialmente destruídas, andam com frequência ligadas à ausência da família, porque se rejeitou ou porque se foi rejeitado por ela.
O Papa disse em Valência que ia ali “propor o papel que, para a Igreja e para a sociedade, tem a família fundada no matrimónio”. Esta proposta incomodou. Mas não pode a Igreja, em democracia, dar livremente razão da sua esperança e convicções? Ou terão mais auditório os que andam pelo país, naturalmente com subsídios do Estado, a dizer, em forma de comédia para rir, que “o matrimónio é como o submarino que pode flutuar, mas é feito para afundar”? Quem é que destes luta mais pelo bem da sociedade?
A família normal é a maior riqueza humana e social de um povo, a fonte e o suporte que permitem vencer problemas e desafios, curar feridas e recobrar energias. É espaço de encontro enriquecedor das diversas gerações, em cujas veias corre o mesmo sangue. Cada geração aprende da que a precede os valores que perduram, e encontra na que a prolonga, estímulos para a viver. Só uma escola, como a família normal, é capaz de transmitir e ensinar o que é indispensável à vida e que faz parte da bagagem de cada um.
Por tudo isto, não se pode considerar família uma qualquer ligação instável e a prazo. Muito menos, se já nasce sem consistência para enfrentar a vida como os seus espinhos e os contratempos do dia a dia. Família a sério é inseparável do projecto de perenidade, gera nós que não se desatam mais, os seus membros nunca são peças de vestir e despir.
Se a família não pode sozinha enfrentar as tarefas que tem de realizar, há que colaborar com ela e ajudá-la a abrir-se à colaboração de outros que a completam, sem que perca o seu protagonismo, nem se subalternizem os seus direitos e deveres.A Igreja acredita na família e nos seus valores, sem fechar os olhos aos problemas e às dificuldades, sem passar ao lado das crises. Sempre a defenderá, afirmando, convictamente, que só nela há energias inatas que lhe permitem, como a nenhuma outra instituição da sociedade, vencer as batalhas que enfrenta e recuperar, pela positiva, os estragos das derrotas, que também fazem parte da sua história.
O Estado não faz favores à família. Mas não tem outro modo de servir a comunidade com futuro, senão respeitar a família, defendê-la, protegê-la e apoiá-la, como valor primeiro. A ligação natural dos seus membros, a solidez das relações humanas e humanizantes que cria e garante, o ser a fonte geradora da vida e a garantia do amor que molda a sociedade, a escola normal do respeito pelo outro, pela mútua aceitação, o espaço dos valores naturais e universais, tudo justifica o dever dos que governam.
Menosprezar a família é falta de senso comum e crime maior contra a nação e os cidadãos. Os sintomas deste menosprezo estão à vista, mas a família vencerá.

Boa pergunta da VISÃO

Um artigo de Tiago Mendes, no Diário Económico

A incerteza de julgar
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O facto de observarmos um erro não implica que a decisão tomada não tenha sido acertada – ou, se quisermos, a melhor possível no contexto relevante
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Disparar, ou não, sobre um potencial bombista suicida? Condenar ou absolver um réu? Rejeitar, ou não, uma hipótese científica? Na actuação policial, como nos tribunais e na investigação académica, são inúmeras as situações em que a possibilidade de escolha é dual e onde existe incerteza relativamente à decisão acertada a tomar. Essa incerteza leva, inevitavelmente, à possibilidade de erro.
Pegando no exemplo judicial, erra-se quando se condena um inocente e quando se absolve um culpado. O primeiro erro, tido consensualmente como o mais grave, fundamenta a “presunção de inocência”. Não obstante ser altamente indesejável, ele ocorrerá – a menos que não se condene qualquer réu sempre que haja um mínimo de dúvida, algo de incomportável na nossa sociedade –, com probabilidade positiva. Portanto, numa população suficientemente numerosa existirão alguns inocentes condenados.
O facto de observarmos um erro não implica que a decisão tomada não tenha sido acertada – ou, se quisermos, a melhor possível no contexto relevante. Confundir isto é não perceber que a avaliação da justeza de uma decisão só pode ter em conta a informação conhecida no momento em que ela se dá. Uma pessoa pode ser presa preventivamente e mais tarde ver essa resolução alterada sem que haja qualquer incoerência. Basta que tenham surgido dados novos que, racionalmente, recomendem a sua revisão.
Um outro caso merece atenção. Há cerca de um ano, um cidadão suspeito de ser bombista suicida foi baleado pela polícia inglesa, dias depois dos atentados de 7 de Julho em Londres. À esquerda, tivemos o previsível: responsáveis políticos destacaram, na análise do que se passou, características como a nacionalidade, a profissão e o estatuto do cidadão morto (brasileiro, electricista, emigrante ilegal). Tudo, como é bom de ver, irrelevante para a deliberação de disparar ou não. Até porque – não devia isto ser óbvio? – nenhuma dessas características era “observável” no momento em que os disparos foram realizados. Mas a coisa não espanta: afinal, adeptos da “vitimização” não faltam por aí.
A posteriori, o que aconteceu foi um erro lamentável. Contudo, a decisão foi provavelmente a mais correcta, dadas as circunstâncias em que se deu. Bento Jesus Caraça dizia não recear o erro, por estar sempre disposto a corrigi-lo. A reparação de erros cometidos – irreversíveis ou não – é, inquestionavelmente, uma questão a que temos de responder. Sem, porém, esquecer duas coisas: primeiro, que uma decisão tomada em ambiente de incerteza acarreta sempre a possibilidade de erro; e, segundo, que ela só pode ser criticada com base na informação então disponível. Não entender isto implica desonestidade intelectual ou falta de lucidez – ou ambas as coisas. Em qualquer dos casos, o erro será mais que certo.

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