Representações
do sagrado e liberdade
O sagrado enquanto tal não tem representação. Todas as formas ou fórmulas que procuram atestar o sagrado são da ordem das mediações, da linguagem. O sagrado apresenta-se à consciência humana como um processo dialogal, comunicacional, onde se instaura uma relação entre a experiência humana e a percepção de uma dimensão da realidade transcendente, não domável e não apropriável. A objectivação dessa realidade sempre foi constitutiva da ordenação da vida das comunidades e dos indivíduos, na medida em que permite o estabelecimento de fronteiras e de perímetros existenciais.
Em muitos universos culturais e religiosos, o sagrado tende a circunscrever uma exterioridade só acessível a alguns, determinando simultaneamente a territorialidade do profano, próprio ao comum do humano. Nesta perspectiva, esta forma de ordenar a realidade fornece à hierarquização estabelecida uma legitimidade decorrente do sagrado, conduzindo à identificação dessa ordem com a representação do sagrado entre os humanos e nas sociedades. A ilustração desta ordem, por mais variada e diversificada que seja, corresponde a representações e imagens que transportam determinados códigos que permitem a cada homem e a cada comunidade um processo de identificação e de crença. Essa objectivação que vai de expressões miméticas do viver humano até a expressões de maior abstracção, como seja a lei, passando pela definição de espaços e de tempos carregados de sentido e de laços de pertença. Por isto mesmo, essas representações suscitam um envolvimento afectivo e, elas próprias, ilustram as mundividências que cada um possui, individualmente e em grupo.
Todavia, por diversas vias, existe também uma outra percepção, fundamental para a condição humana, que tem a ver com o facto de se considerar que a representação por excelência do sagrado se encontra na conjugação com o profano que acontece na individualidade de cada um como pessoa. Contudo, para muitos, este modo de colocar as questões acarreta como que uma dessacralização. Mas tal nem é exacto, nem correcto. Não se trata da divinização do humano ou da redução do divino ao humano, bem pelo contrário. Trata-se do reconhecimento de que é no interior do humano que se inscreve uma realidade de transcendência onde se joga a abertura e a relação de cada um aos outros: a razão profunda da existência. Este modo de entender a representação do sagrado, se encontra certamente na antropologia cristã um dos seus principais fundamentos, manifesta-se em muitas outras tradições que colocam o homem não como centro de tudo, mas como sujeito relacional consigo, com os outros e com a natureza.
Neste contexto, a experiência de liberdade é crucial neste processo de afirmação do sagrado. A liberdade não é ausência de laços e, consequentemente, de capacidade de escutar (obediência) e de responder (responsabilidade). A liberdade rompe com a escravidão e a dominação, na medida em que são estas as mais profundas e radicais atitudes de dessacralização. Não é o exercício da liberdade que rejeita o sagrado, bem pelo contrário, mas são os comportamentos ou as mediações de servitude que negam ao homem e à mulher a sua realização, retirando-lhes o protagonismo e a participação no caminhar e no crescimento de uma consciência pessoal onde a alteridade - a contemplação e a complementaridade do outro - não fenece em qualquer narcisismo, mais ou menos ferido, mas onde essa alteridade corresponde à complementaridade parceira de um percurso solidário. Sim, é a vida do outro enquanto pessoa, reconhecida e querida, que é a representação do sagrado. As representações do sagrado na sua conjugação com a liberdade não podem fechar o essencial que é a comunicação entre pessoas e comunidades diferentes e distintas. O sagrado em qualquer uma das suas representações não pode esmagar, mas instaurar a capacidade de comunicação assente no que o outro quer dizer, mesmo quando se exprime de forma radicalmente contraditória e antagónica. O sagrado não é incompatível com a liberdade, nem vice-versa, mas que para tal aconteça o que está em jogo é a alteração do desejo de subjugação e de domínio sempre presente como idolatria e como opressão nas pessoas e nos grupos.
António Matos Ferreira
Historiador, UCP
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In "Observarório da cultura"