(Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré)
A primeira impressão que o gafanhão oferece a quem o contempla no dia-a-dia de um labor constante capaz de arrasar montanhas, e de domar dunas formadas e deformadas por ventos que também gretam peles tostadas pelo sol salgado, é a de que se trata de um homem com uma capacidade de adaptação fora de comum. Se nos debruçarmos sobre ele, sobre a sua vida de trabalho árduo, sobre a sua denodada resistência e capacidade de sofrimento, não podemos deixar de o admirar. Ele fez, com todas estas qualidades, aliadas a outras não menos importantes, ao longo de mais de três séculos, a Gafanha de que hoje se orgulha.
Oriundo de regiões essencialmente agrícolas, nomeadamente dos concelhos limítrofes, de Vagos e Mira, o gafanhão para aqui carreou, nos finais do último quartel do século XVII, hábitos de trabalho e de vida social que o ajudaram a cimentar usos e a projectar costumes que ainda perduram nos nossos dias. Quem esquece, por exemplo, a paixão pela terra e o respeito pela tradição de “fazer casa quem casa”, paixão e respeito estes em que se alicerçam uma certa estabilidade familiar e a construção de um património que vai passando de pais para filhos? E o espírito de poupança tão característico do gafanhão que casa de forma tão expressiva com o gosto pelo trabalho? E a religiosidade que o tem levado a tantas manifestações de fé através de gestos de solidariedade fraterna e de caridade cristã?
Vale a pena debruçarmo-nos sobre tudo isto, mesmo de fugida, numa tentativa de descobrirmos as razões que contribuíram para a formação do homem que se fixou neste areal varrido por ventos marítimos carregados de salmoira.
À partida, ele não pode ser, nem é, muito diferente do homem que ainda hoje ocupa a terra-mãe. Filho dessas areias, habituado a domá‑las e a delas extrair o sustento do dia-a-dia, para aqui veio com a mesma tenacidade. Procurou, afinal, algo que lhe era familiar e fê‑lo por necessidade e sem receio. Sempre era preferível a ter de buscar trabalho longe dos horizontes que os seus olhos sempre dominaram. Não era pessoa de tentar de imediato a riqueza do mar ou mesmo da ria. Isso ficaria para mais tarde, quando a pouco e pouco fosse sentindo essa necessidade, simultaneamente com a descoberta de que as águas que o circundavam eram amigas de verdade. A princípio, delas foi colhendo o que lhe ofereciam (o arrolado, moliço que as marés deixavam nas margens) em jeito de desafio para que se aventurasse e deixasse, sem medo, a terra firme. E foi isso mesmo que aconteceu. Pé ante pé, ei-lo à conquista das águas mansas da nossa ria, na apanha do moliço e na pesca artesanal. Estava aberto o caminho do progresso.
Homem de trabalho, habituado à luta diária a que as areias pouco produtivas o obrigavam para delas conseguir o magro sustento, geralmente para família de muitos filhos, aqui veio continuar a dar exemplo de tenacidade. Ele continuou igual a si próprio e como a terra que sempre lhe deu o pão foi tornada produtiva pelo seu esforço e à custa de sacrifícios sem conta, facilmente se compreende o amor que ainda lhe devota. Não é egoísmo o que o leva a estar, ainda hoje, tão agarrado aos “bocadinhos”, que herdou e que ele mesmo tantas vezes ajudou a fertilizar com moliço e suor salgados. Não é puro egoísmo essa relutância em vender ou ceder, quantas vezes por bom dinheiro, o quintal que desde pequenino revirou com enxada gasta de tanto cavar. Esse comportamento é, antes, fruto amadurecido pelo amor construído por algumas gerações que lhe moldaram a maneira de ser e de pensar.
Os primeiros gafanhões para aqui vieram em busca de terra igual à que sempre cavaram. As famílias de origem não tinham, normalmente, terra que produzisse para tantas bocas. Daí o sentirem-se obrigados a procurá-la não muito longe do regaço materno e da sabedoria paterna, nessas épocas tão respeitados. E casa para habitar com cómodos de gente era luxo que o gafanhão tinha de encontrar à custa do seu próprio querer. Construí‑la com a ajuda de familiares e amigos era tarefa urgente. E assim foram aparecendo as primeiras choupanas onde o fumo pintava paredes mal acabadas e ajudava a calafetar frinchas que a pouca experiência produzia. Gestos de solidariedade, neste como noutros campos, deixaram marcas desse tempo que a custo vão sobrevivendo na sociedade consumista que nos envolve e por vezes nos domina. Ainda há, apesar de tudo, embora em pequeníssimo número, casas construídas ao jeito antigo do auxílio fraterno ou da troca de serviços. Por isso, desse esforço de construir a sua casa, o amor que o gafanhão lhe vota e o gosto por manter a tradição deixada pelos seus antepassados de “fazer casa quem casa”.
A vida duríssima que procurou e aceitou, ou não soube evitar, despertou nele um respeito muito grande pelo dinheiro, símbolo, ontem como hoje, do trabalho. E como, para o conseguir, do corpo lhe saía, facilmente se compreende o espírito de poupança, que não de avareza, seguido e continuado até aos nossos dias, com frutos projectados em empresas que fizeram a Gafanha comercial, industrial e agrícola.
Saliente-se que, a par do trabalho na indústria e mesmo no comércio, o gafanhão alimentou sempre o trabalho na horta como tarefa complementar e de ajuda à mulher, a primeira responsável pela azáfama agrícola, sobretudo no século XX.
O contacto permanente com a natureza, a dependência das condições climatéricas e o sentido do divino bebido no seio da família fizeram do gafanhão um ser religioso por excelência, embora com um outro resquício do supersticioso, alimentado, este, aliás, por alguma ignorância que as poucas letras ajudavam a criar. O sentimento de caridade e o gosto pela solidariedade, contudo, fizeram desde sempre desta terra um manancial de iniciativas próprias e vizinhas. Aliás, ainda há poucos anos perduravam os róis de gado, quais seguros que garantiam uma certa estabilidade económica do proprietário rural, quando ameaçada por morte ou incapacidade do animal.
Mas o gafanhão não ficou só agarrado à terra e à ria. Conquistadas estas, ei-lo à procura de mais. Mistura-se com o cagaréu na safra do sal e cedo passou a dominá-la, aprende com os Ílhavo os segredos da pesca e com os Mónicas a arte de manejar o enxó e de fazer veleiros que o fizeram sonhar com o mar alto. Antes descobrira a aventura do mar na arte da Xávega, primeiro com os pés bem assentes na terra e depois agarrado ao remo com unhas e dentes, não fosse alguma onda mais traiçoeira arrastá-lo. Vencido o temor inicial, aí vai ele na frota a caminho dos bancos da Terra Nova e da Gronelândia, em missão nunca sonhada pelos seus avós. Depois, a emigração, o comércio e a indústria, numa ânsia de fazer render talentos porventura adormecidos. O gafanhão das sete partidas e dos sete ofícios marca sempre a sua presença, onde quer que se encontre, viva ou trabalhe, pela dignidade, pelas amizades que sabe cultivar, pela simplicidade e humildade, pelo amor entranhado à terra que o viu nascer. Como outros povos, certamente. Mas com muito orgulho pela noção exacta de que é, realmente, ele próprio, um bocado da Gafanha.
Fernando Martins