homem universal
1. Diz-se que vivemos tempos de parcialidade, o provisório é quase o definitivo. De repente, do “ouviu-se dizer” passa-se a “aconteceu”. Até do problemático caso tipo do “arrastão da praia de Carcavelos”, quando alguém disse que “eram p’raí uns 500”, então passaram a ser mesmo esses. Uma certa desagregação social como atitude de espírito, que cria permiabilidade para as meias abordagens, faz tantas vezes do sensacionalismo a real notícia. As próprias narrativas históricas, da história do Ocidente à história de Portugal vão-se esbatendo, perdendo-se a memória do colectivo que unificava. Afinal, o que não é conversado é esquecido! Não se dá por isso, e isto mesmo faz parte do fenómeno, mas a cultura, na sua essência, está a fugir, a transferir-se para um novo paradigma de referências (com ou sem elas) em que a tecnologia está-se a substituir à dimensão relacional, estamos “entre” (qualquer coisa). Um “entre” de anos a fio com horizonte agravado, “ivado”, queimado no Portugal que temos de amar. Os pais e os filhos, os educadores e educandos, para todos o tempo que foge vai, também, limitando uma experiência humana conversada, saboreada, que saiba caminhar para uma verdadeira síntese dos valores universais assimilados. As grandes mensagens não passam, ou passam pouco. Tal como a amizade se alimenta com gestos e palavras, assim este crescimento global da pessoa exigirá caminho, processo, para além do intelectual; é importante navegar nas águas da própria existência onde a procura do sentido para a vida e de uma experiência humana saudável preencha de luz toda a pessoa.
Por outro lado, também uma super-ocupação e necessária especialização dos nossos dias faz das pessoas especialistas interessantes de certas matérias mas torna-as incapazes de comunicar para além da sua área. Dinâmicas como o “espírito crítico construtivo” e a “cultura geral” serão certamente dos elos fundantes de unidade social. Se com tanto conhecimento não somos capazes de, todavia, conseguir plataformas comuns de pensar e viver em sociedade acaba por ser infecundo e inconsequente o projecto da proclamada sociedade de informação e comunicação. A cultura faz a síntese entre o conhecer, as máquinas e o viver, e a este respeito, de cultura, estamos bem aquém do ideal. Habitar a nossa época da modernidade deverá fazer de todos não espectadores mas interlocutores e actores cívicos que buscam ideias universais. Estas são o caminho óbvio da identidade dos grandes líderes sociais (que escasseiam), daqueles que (ainda que muitas vezes solitários) arriscam mudar o rumo da história.
Ousou criar pontes ente a Fé e as Ciências
2. É neste contexto que se eleva, entre tantos outros, uma personalidade ímpar que destacamos. Não muito amada pelos seus contemporâneos, nomeadamente pelo meio eclesiástico. Pierre Teilhard de Chardin, em conferência (projecto “derivas”) do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro mereceu justa homenagem. De origem francesa, nasceu a 1 de Maio de 1881. Percorreu caminho de cientista paleontólogo, filósofo, teólogo e padre Jesuíta. Foi também geólogo e, de certa forma, antropólogo social. Procurou, em tempos de reacção antimoderna da Igreja, e em contextos de existencialismo asfixiante, explicar, desenvolver inovadora linha de pensamento especulativo sobre toda a realidade criada. Como esferas da evolução do homem e do mundo, na sua magnífica obra “Fenómeno Humano”, apresenta: hilosfera (matéria); biosfera (vida); noosfera (inteligência) e logosfera (razão). Apresentando esta evolução partindo da matéria, refere que estamos na noosfera. Todavia não poderá o ser humano parar aí: diz ele que “um dia o homem vai transcender a noosfera” (fase da inteligência), e chegar à logosfera (razão absoluta).
Teilhard oferece-nos uma chave de leitura de tudo. Procurando escapar a acusações de panteísta (moldar Deus demais a ponto de O “usar”, diminuir nas “coisas”…), como que nos coloca na escada do Absoluto, possibilitando uma ponte tão urgente quanto necessária entre a Fé e a Ciência. Nesta procura sempre convergente de toda a realidade, no seu dizer, o ponto de atracção supremo é o próprio Logos, Jesus Cristo. No seu discurso de uma cosmovisão integrada propõe a elevação de tudo até ao que ele chama de Cristo Cósmico; ou seja, nada anda ao acaso, o tempo, a história, os astros, a terra, as coisas, tudo tem um sentido, significado, uma meta…tudo vai convergindo para a razão absoluta, que atinge a sua perfeição na Pessoa Divina, por isso há uma dinâmica imparável de Cristificação do Universo.
Bom, desçamos à terra! Independentemente da sua reflexão de fronteira, considerada por alguns de herética, mas citada pelos papas de Paulo VI ao actual, o certo é que foi uma profecia de reflexão que vai proporcionando, um pouco por todo o mundo, momentos de Jornadas, Conferências no contexto do cinquentenário da sua morte (10 de Abril de 1955). O mesmo já decorrera em 1991, no centenário do nascimento do teólogo que ousou criar pontes explícitas entre a Fé e as Ciências.
Para que não se perca o comboio do pensamento contemporâneo haverá uma nova estrada teológica a abrir. Theilard é oportunidade de repensar a ciência que precisa da luz transcendente e a fé que carece de uma inclusão do conhecimento actual (ciências humanas e hoje as neurociências) no processo da revelação divina. Claro, desta fusão, não anuladora de identidades, virá certamente uma nova linguagem sobre a fé mas também a conjuntura para revisão de alguns dogmas (?). Que coragem e profetas sofredores capazes de tamanha obra?
Theilard, silenciado, não pode publicar suas obras… O certo é que para o mundo global da ciência um dia podem ser mil anos, e as instâncias éticas que estão no terreno ou nas pontes explícitas com o mundo científico, enquanto é tempo, propõem urgente actualização das linguagens da fé, a fim de não se perder a significatividade do próprio discurso. É que hoje, e ainda bem, não chega trazer, sensibilizar as pessoas para o discurso antigo… É preciso ir ao encontro e sondar a percepção e os sentidos dos nossos dias, e aí propor a verdade de sempre.