Nau Portugal |
«Já estou velhinho, já sinto o frio da cova nos pés. É natural que nos meus longos anos, expostos de mais a mais às ondas, nem sempre calmas, do destino que Deus me marcou ao nascer, eu tenha sentido pancadas terríveis no peito, capazes de o quebrarem, de o fazerem em pó, se não se tornasse em bronze indestrutível a mísera carne que o Senhor predestinou para o mais agitado dos apostolados, o apostolado das almas. Às vezes até parece que a vaga passa por uma tal forma por cima da cabeça que nos prega para sempre no fundo de tenebrosos abismos, e não mais voltamos à tona d’água a rivedere le stelle, como dizia o Dante ao fim do Inferno.
Tudo pareceu porém ontem diluir-se, e como que perder-se nas recordações longínquas a ponta mais aguda e mortífera dos seus espinhos, a gota mais amarga do meu veneno, ao golpe imprevisto, mil vezes trágico, que me esmigalhou a alma na Gafanha da Nazaré.
Parecia uma noiva, a nau Portugal, pronta a entrar na Igreja, com a coroa da glória na fronte e o manto de virgem a arrastar na história. Eu passei-lhe a mão pela quilha, ávida de cortar para a frente as águas, de fazer espuma ao passar, como quem faz uma festa na face de um filho, como quem beijaria, a transbordar de ternura, os olhos da sua mãe. E, senti, nessa carícia, bater lá dentro o coração da Pátria; eu ouvi, assim encostado o ouvido à proa altiva do barco, a voz de oito séculos que se não calava. Eu dei-lhe a bênção do meu ritual, mas dei-lhe ainda mais talvez – quem sabe se não me fez irreverente o delírio! – a bênção do meu amor. Estava-me a parecer que, se eu fosse embrulhado para a terra numa dobra daquela bandeira, nenhum verme me tocaria, até o peito morto teria vibrações misteriosas no túmulo.