"Ai de mim que sou um homem desgraçado,
pois faço o mal que não quero
e deixo de fazer o bem que quero!"
S. Paulo
O Homem tem uma constituição paradoxal. Por vezes, constatamos que fizemos aquilo de que nos espantamos negativamente, erguendo, perplexos, a pergunta: como foi possível eu ter feito isso? - aí, não era eu. Há, pois, o "isso" em nós sem nós, de tal modo que fazemos a experiência do infra ou extra-pessoal em nós. Talvez fosse a isso que São Paulo se referia quando escreveu: "Ai de mim que sou um homem desgraçado, pois faço o mal que não quero e deixo de fazer o bem que quero!"
Por outro lado, damos connosco como sendo mais do que o que somos: ainda não somos o que queremos e havemos de ser. Ainda não sou o que serei. Uma das raízes da pergunta pelo Homem deriva precisamente desta experiência: eu sou eu, portanto, idêntico a mim, mas não completamente idêntico, porque ainda não sou totalmente eu. Então, o que sou?, o que somos?, o que é o Homem?
O Homem não se contenta com o dado. Quer mais, ser mais, numa abertura sem fim. Exprimindo esta abertura ilimitada, há uma série de expressões famosas: citius, altius, fortius (mais rápido, mais alto, mais forte), que é o lema olímpico; o Homem é bestia cupidissima rerum novarum (animal ansiosíssimo por coisas novas), dizia Santo Agostinho; Max Scheler definiu-o como "o eterno Fausto", e Nietzsche, como "o único animal que pode prometer"; Unamuno escreveu: "Mais, mais e cada vez mais; quero ser eu e, sem deixar de sê-lo, ser também os outros." Mesmo na morte, o Homem não está acabado, pois é o animal do transcendimento e sempre inconcluído. Precisamente a inconclusão mostra que a sua temporalidade e o seu ser têm uma estrutura essencialmente aberta.
O Homem não pode não transcender. Mas, como escreveu Leonardo Boff, há o bom e o mau transcender. Exemplos do mau transcender e má transcendência são a droga, o álcool em excesso, a religião enquanto superstição alienante.
A vida é exaltante, mas também é terrível - traz, por vezes, dificuldades e opções que exigem algo de heróico. E há quem não aguenta. E foge-se, alienado, para a droga, por exemplo, e "viaja-se". Mas, quando se regressa da "viagem", os problemas estão lá todos, com uma agravante: há menos força para enfrentá-los e superá-los, na alegria de crescer e transcender. No bom transcender - no amor, na produção, na investigação, na obra de arte, na contemplação da beleza, na generosidade frente à vida, na religião criadora --, o horizonte alarga-se, há mais vida partilhada, humanidade livre, justa e feliz, criação do novo, esperança que toca o Além.
Qual é o termo da força do transcendimento humano? Por outra palavras: qual é o sentido último da existência?
Há quem pense que a vida não tem sentido. O Homem transcende sem Transcendência. É conhecida a imagem apresentada por Sartre: o burro esfomeado que puxa uma carroça com uma cenoura à frente -- desfaz-se numa corrida sem termo e sem sentido, porque nunca a alcança.
Alguns - os agnósticos - dirão que os seres humanos não têm razões suficientes para poderem decidir-se.
Para outros, o Homem e a realidade transcendem, em última análise, para um Transcendente neutro e impessoal: uma sociedade finalmente justa, livre, sem exploração, em plena transparência - pense-se no ideal da sociedade comunista - ou a Natureza, não enquanto naturada, mas naturante, aquela Força originária e criadora que superará todas as contradições. Mas, nesta resposta, fala-se de espiritualidade e transcendência anónima, que não permite a salvação do Homem concreto e pessoal. Os seres humanos acabam por ser reduzidos a momentos da Totalidade impessoal.
Nem os crentes podem demonstrar que Deus existe nem os não crentes que não existe. Deus transcende a razão científica objectivante. Como diz Jean d'Ormesson, os crentes não estão em condições de "garantir que Deus existe, a única possibilidade é esperar que isso aconteça." Mas, precisamente na entrega confiada ao Deus criador, transcendente e pessoal, mostra-se a razoabilidade do acto de crer, porque então tudo alcança mais luz e sentido final.
Anselmo Borges