AS VIRTUDES DA PRINCESA JOANA
PRECISAM DE SER MAIS CONHECIDAS
Tudo quanto se fizer para tornar mais conhecidas as virtudes da Princesa Joana será uma mais-valia para a sociedade. As gentes aveirenses, marcadas pela ria e pela maresia, desde há muito se revêem na Princesa que um dia trocou a pompa de Lisboa pela pacata vila de Aveiro, onde procurou encontrar-se mais com Deus e com pessoas que do seu apoio tanto precisavam. E esse encontro foi de tal monta que o Papa Inocêncio XII a beatificou em 1693, elevando-a o Papa Paulo VI à dignidade de Padroeira da Cidade e Diocese de Aveiro em 1965.
Porque para ser mais amada e seguida é fundamental ser mais conhecida, muitos se têm empenhado na divulgação das virtudes da Princesa que o povo de Aveiro adoptou como filha predilecta, canonizando-a logo após a sua partida para o seio de Deus, a 12 de Maio de 1490. Segundo rezam as crónicas, folhas e pétalas das árvores caíram à passagem do féretro para a sepultura, no Mosteiro de Jesus, como sinal indelével da santidade da filha de D. Afonso V.
Numa perspectiva pastoral de largos horizontes, D. Manuel de Almeida Trindade, então Bispo de Aveiro e actualmente nosso Bispo Emérito, publicou, em 12 Maio de 1979, uma “Carta da Princesa Santa Joana aos Jovens”. Usando um estilo literário muito original, D. Manuel pôs Santa Joana a dirigir-se aos jovens do nosso tempo, aconselhando-os com oportunas recomendações baseadas na sua caminhada vocacional e de fé, recomendações essas que são, também, ainda hoje, para todos nós.
É essa carta que a Comissão Diocesana da Cultura, bem apoiada pela Irmandade de Santa Joana Princesa, oferece nas Festas da Padroeira da Cidade e Diocese de Aveiro aos jovens aveirenses, no intuito de tornar mais conhecidas as virtudes da Santa Princesa.
Fernando Martins
Um texto de D. Manuel de Almeida Trindade
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CARTA DE SANTA JOANA
AOS JOVENS
Queridos moços e moças:
Sou filha de Reis. Nem por isso fui mais feliz do que a maior parte de vós. Minha mãe morreu quando eu não tinha ainda quatro anos. Sei o que é a dor e a saudade de não ter mãe.
Antes de morrer, minha mãe deu-me um irmãozinho. Chamava-se João. Éramos muito amigos, - é certo – mas de temperamento muito semelhante. Minha preceptora, D. Brites de Menezes, dizia que éramos os dois muito teimosos. Quando é que a teimosia deixa de ser teimosia para ser apenas constância e firmeza de carácter?
Já não conheci D. Pedro, meu avô materno. Morreu em Alfarrobeira. Aquele reencontro – que devia ter sido um encontro – entre meu pai e meu avô, amargurou para sempre a vida de meu pai, que era seu sobrinho. Dizem que a partir de então se tornou diferente. Eu vivi no rescaldo dessa contenda. Vi aquilo de que os homens são capazes quando, em vez de se amarem, se odeiam. Passei a conhecer melhor os homens e as mulheres, as coisas grandes e belas, mas também as coisas mesquinhas de que são capazes. Isso me ajudou a amadurecer mais depressa. Não há nada como o sofrimento e a responsabilidade para fazer amadurecer as pessoas.
Nem todos aqueles que me rodeavam no paço da Rainha, onde vivia confiada à vigilância e ao carinho da fidalga virtuosa D. Brites, eram modelos de vida santa e honesta. As damas da corte de uma princesa não são todas como os anjos da corte celestial. Há as que passam a vida a ver-se ao espelho, a espreitar por detrás das cortinas o namorado que não chega ou tarda em chegar, as que tecem intrigas umas com as outras, exactamente como as meninas que vós próprias conheceis.
Fez-me Deus a mercê de, muito cedo, me dar conta de que a vida tem um sentido. Quando li no sagrado Evangelho a palavra de Jesus: “o Reino dos céus é semelhante a uma pérola de elevado preço que um homem encontrou; depois de a ter encontrado, foi, vendeu tudo quanto tinha e comprou aquela pérola”, - quando li estas palavras, pensei que elas eram ditas para mim. Pouco a pouco uma certeza se foi confirmando em meu coração: eu quero alcançar essa pérola.
Só o tempo me foi revelando o que estava escondido por detrás desta parábola.
Havia no paço um oratório. Um oratório que era meu, onde eu podia recolher-me sem a presença de aias ou de outras testemunhas. Aí, nesse recolhimento, eu passava horas a pensar. Pensava no amor que Deus nos tem. Amor tão grande, que mandou o Seu Filho único ao mundo para nos salvar. Comecei então a ler os sagrados Evangelhos do princípio ao fim. Dizem eles, que, além dos Apóstolos, havia também mulheres que seguiam Jesus de perto. Entrou em mim o desejo de ser do grupo dessa mulheres.
A ter de decidir-me por esta imitação de Cristo, eu desejava que fosse de uma maneira radical. Teimosa como era, não estava no meu feitio deter-me a meio caminho.
Ficai sabendo que as filhas dos reis têm menos liberdade do que as filhas dos aldeões. Para ir do Paço ao Rossio, era preciso movimentar meio mundo. Impensável sair sozinha. Como eu, às vezes, tenho inveja de vós! Apetecia-me descer à Ribeira, passar a tarde com uma velhinha, arrumar-lhe a casa, penteá-la, ler-lhe uma passagem da Bíblia. Mas coisas dessas não me eram permitidas. É terrível ser-se filha de rei. Acreditai-me: é uma espécie de escravatura doirada.
Quem me dera ser livre, não para passar as noites numa boite ou tomar parte nesses concursos snob – snob, sim, pois não têm nobreza alguma – de “misses” que vocês (ou alguém por vocês, pobres raparigas!) agora inventaram, mas para realizar um belo ideal de dedicação pelos outros, como fizeram parentes minhas (D. Isabel de Portugal, por exemplo) ou tantas outras que passaram a vida a fazer o bem e só no coração de Deus deixaram escrito o seu nome!
Um dia decidi-me. Não esqueçais que sou mulher: tenho a astúcia das filhas de Eva. Meu pai regressava de Arzila, da guerra contra os mouros. Regressava vitorioso. Vesti o meu vestido de veludo verde. O verde é a cor da esperança. Adornei-me com as minhas jóias. Dizem que ia bonita. Quando meu pai desceu em terra, dirigi-me a ele para o saudar. Era a mim que competia fazê-lo, dada a minha condição. Pus em jogo todos os recursos literários que os meus mestres me haviam ensinado.
Recordo-me que o discurso terminava assim: Quando os antigos imperadores regressavam vitoriosos de alguma campanha bélica, para mostrar a sua gratidão aos deuses, ofereciam-lhes o melhor que tinham, dando para o seu serviço a filha mais prendada. Vossa Majestade – que é cristão – não será menos generoso para com o Deus verdadeiro do que os pagãos o eram para com os seus ídolos. Peço-lhe que me permita fazer profissão de vida religiosa onde Deus for servido chamar-me.
Senti que uma nuvem de tristeza perpassou pelo semblante de meu pai. Meu irmão e os outros nobres que o acompanhavam não esconderam a sua reprovação, olhando uns para os outros e vozeando. Fiz de conta que não percebi. O que interessava era que meu pai dissesse que sim. E meu pai disse que sim.
Não sabeis, queridos moços e moças, quantas barreiras foi preciso vencer para seguir a minha estrela. Até os representantes do povo fizeram sua a questão: que eu não tinha direito de dispor de mim mesma, que havia razões de Estado que se sobrepunham à minha própria vontade...
Consegui sair (sempre debaixo de escolta!), para o convento cisterciense de Odivelas, nos arrabaldes de Lisboa. Pois mesmo ali vieram, acompanhados de testemunhas e notários, os procuradores do povo, tentando impedir, primeiro com promessas e depois com ameaças, que eu seguisse o meu caminho.
Mas estava decidido. Havia uma força interior que me impelia. Não era o mundo que eu detestava. Longe disso. Era o amor de Jesus Cristo que me chamava, e me chamava para segui-l’o, onde mais de perto O pudesse imitar e servir.
De Odivelas consegui chegar a Coimbra. Não imaginais o que foi essa viagem no pino do verão de 1472. A minha comitiva, da qual fazia parte o meu próprio pai, insistia em que eu ficasse em Coimbra, no mesmo mosteiro onde tinha vivido a Rainha Santa, D. Isabel de Portugal. Era um grande convento – diziam – à beira de uma bela cidade. Não me faltariam ali visitas, conforto e amizades. Mas eu não tinha saído de casa para isso.
O meu desejo e a minha meta era o mosteiro de Jesus de Aveiro – não o mosteiro engrandecido que vós agora conheceis, mas a casa pobre e humilde fundada por D. Brites Leitão, longe do bulício do mundo. Eu estava informada que em Aveiro, a minha pequena Lisboa, podia encontrar a humildade e a pobreza.
Houve relutância à minha volta. Senti-me a combater sozinha. Foi preciso impor-me. Mas vale a pena ser teimosa, quero dizer ser constante e ter firmeza. Só quando a firmeza se alia com a verdade é que a teimosia é virtude. Foi em Aveiro que realizei o meu sonho...
Aveiro, 12 de Maio de 1979
Foto: D. Manuel - Desenho de Gaspar Albino