domingo, 6 de maio de 2007

Um artigo de Anselmo Borges, no DN


DIZER DEUS
NO DIA DA MÃE


Ernst Bloch, com a espantosa capacidade de deslumbramento frente às grandes experiências, na raiz do filosofar, escreveu: "Se a noite de amor não é clara, o seu fruto é-o ainda menos. Facto bizarro: a criança no ventre da mãe, o mundo indizível no qual dorme o embrião, as mulheres grávidas levam-no para a rua, para as compras, para os bailes. O começo de um mundo e mesmo do mundo em geral encontra-se em letargia e abrasa-se aqui numa mulher acordada; o ponto zero da Pré-História viaja eventualmente entre duas estações do eléctrico, num dia frio e banal de 1928, e os ginecologistas não sabem classificar os mistérios do começo."
Entretanto, as ciências biológicas avançaram. Mas o fascínio do mistério do começo de um ser humano enquanto pré-história de um mundo e do mundo continua igual.
Contamos a nossa idade a partir do dia do nascimento, o dia da chegada à luz. Na realidade, já cá andávamos, mas lá no escuro do ventre materno. Depois da vinda à luz, começamos o processo de fazer-nos. O animal chega ao mundo feito. O Homem nasce prematuro, por fazer, tendo de aprender quase tudo: a andar, a falar, a comportar-se segundo regras. O Homem é por natureza um ser histórico-cultural.
Para qualquer ser humano reflexivo continua misterioso o aparecimento da autoconsciência, tanto a nível filogenético como ontogenético. Quem foram os primeiros seres humanos? Como é que se passou da oclusão da noite do inconsciente à luz da consciência? Alguém se lembra do dia e do local em que, pela primeira vez, disse a si mesmo de modo consciente, iluminado por dentro: eu sou eu?
A escola jungiana também reflectiu sobre este enigma, indo à procura, nos arquétipos, desse processo. E lá está, nas várias culturas, o estádio primeiro, inconsciente, figurado pelo uroboros, a figura mítica em círculo, que exprime a situação inicial, sem começo nem fim, e que pode ver-se representado no andrógino, na serpente circular, no dragão que morde a cauda. Depois, o mito da Grande Mãe é símbolo do afecto, da ternura, mas, representada como devoradora, exprime ao mesmo tempo a luta que se trava no processo de autonomização. É assim que aparece a figura do herói, que é cada ser humano à conquista de si mesmo. Nessa conquista, surgem obstáculos constantes, figurados, por exemplo, no dragão mítico, que é preciso vencer. Despertando para si, o ser humano descobre o tesouro escondido: ele mesmo, adulto, em relação viva consigo, com os outros e com o mundo. Chegar a ser si mesmo é a única verdadeira tarefa, sempre inacabada, de cada Homem.
A imagem do pai e da mãe são decisivas também para a imagem de Deus. Normalmente, os crentes figuram Deus como Pai: Deus é Pai. Mas isso é apenas uma metáfora. João Paulo I - o que foi Papa só 33 dias - disse que Deus é Mãe, provocando a crítica até de cardeais. Mas realmente não há razão para a ira cardinalícia, pois, se se trata de metáforas, porque é que não hão-de os crentes referir-se a Deus como Pai e como Mãe? A Bíblia põe na boca de Deus estas palavras: "Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, eu nunca te esqueceria. Juro pela minha vida."
Segundo E. Fromm, o psicanalista heterodoxo, é na mãe que encontramos o modelo ideal do amor. De facto, o que é que procuramos senão o amor incondicional? Ora, a mãe ama o filho/filha não porque ele ou ela têm estas ou aquelas qualidades, não pelo que são, mas pura e simplesmente porque são.
Também deste modo encontramos uma boa imagem para Deus. O espantoso na mãe é que ela continua ela, mas, grávida, há nela, sem deixar de ser ela, lugar para o outro dela - o filho ou a filha -, e, ao longo da vida, ao mesmo tempo que eles podem sempre contar com ela o que ela quer é que eles sejam eles. São Paulo foi a Atenas dizer que "é em Deus que vivemos, nos movemos e existimos". É em Deus que somos, tudo é em Deus, mas, como a mãe, Deus quer ao mesmo tempo a autonomia das criaturas, dos homens e das mulheres.

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