Crónica de Frei Bento Domingues no
DN
1. Nos finais dos anos 60 do século passado, num curso de cristologia, dediquei algumas aulas a investigar, com os alunos, o contraste entre a atitude de Jesus em relação às mulheres e a sua permanente ausência nas grandes decisões de orientação da Igreja. As mulheres não tinham podido votar os documentos do concílio ecuménico Vaticano II, como também nunca tinham tido voz activa em nenhum outro Concílio. Um estudante, no debate, argumentou que, por isso, era um abuso falar de concílios ecuménicos, porque lhes faltou sempre a voz e o voto das mulheres cristãs. Esse facto era mais grave do que a ausência das Igrejas ortodoxas e protestantes no Vaticano II.
Mesmo sem entrar agora nessa discussão, é preciso ir à raiz de toda a problemática actual na Igreja, sobre o acesso das mulheres aos ministérios ordenados, sobretudo depois da decisão de João Paulo II destinada a abolir, e para sempre, qualquer debate a esse respeito. Invocou para o efeito a sua missão e decidiu que a Igreja não tem qualquer poder para conceder a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta posição deve ser mantida por todos os fiéis da Igreja, definitivamente.
A 18 de Novembro de 1995, a Congregação para a Doutrina da Fé declarou que esta Carta Apostólica não é uma definição ex-cathedra [1]. A vontade de suprimir para sempre qualquer debate sobre esta matéria é o desejo do impossível. Há-de haver sempre quem não sinta essa obrigação e teime em discutir, como seu direito.
De facto, esse documento vem na linha da progressiva sacerdotalização dos ministérios ordenados na Igreja com resultados pouco cristãos. Levou a esquecer o principal: a marca sacerdotal do baptismo. Isto sim, que é grave. O principal passou para secundário e o secundário para principal. É uma inversão que atinge a própria raiz do cristianismo.
Por outro lado, não existem dois baptismos, um para homens e outro para mulheres. A identidade cristã é sacerdotal sem distinção de género. No entanto, quando se fala de sacerdotes pensa-se logo nos padres e nos bispos, algo vedado às mulheres.
É por esta deformação que os ministérios ordenados adquiriram uma posição tão relevante e absoluta em relação aos outros ministérios eclesiais, mas sobretudo desvalorizando a dignidade baptismal, comum a todos os cristãos. Esta é anterior e determinante para o exercício de outro qualquer ministério na Igreja. Aquilo que é um serviço expressou-se como um poder que impõe e domina, desfigurando a imagem cristã da Igreja: uns ensinam, mandam e celebram e os outros e as outras escutam, obedecem e assistem.
2. A qualificação do Baptismo, no Espírito Santo, é ontológica. Existe para celebrar um nascimento novo para a fraternidade na Igreja de irmãs e irmãos. Quando Tomás de Aquino pergunta o que há de mais importante, de mais poderoso na lei nova do Evangelho, responde: a graça do Espírito Santo, tudo o resto é para a secundar. Os ministérios pertencem ao âmbito funcional, são da ordem do fazer. A graça do Baptismo é da ordem do ser.
O chamado sacerdócio comum dos baptizados não se identifica com os ministérios ordenados a que se costuma chamar sacerdócio ministerial ou hierárquico. Ao fazer isto, esquece-se que a diferença entre ambos é em benefício do Baptismo e não ao contrário. A verdadeira dignidade de todos os cristãos, masculinos e femininos, provém da graça baptismal.
A desgraça está mesmo neste ponto. Quando se fala do sacerdócio comum, dado pelo Baptismo, fica-se com a ideia, essa sim muito comum, de que este está muito abaixo do sacerdócio ministerial, quando a verdade é completamente inversa. Os chamados ministérios ordenados têm uma história muito complexa que importa conhecer para não se cair em contra-sensos [2], como documentou o teólogo J. Tillard.
Se a celebração do Baptismo é um sacramento da transformação pascal da vida, todos os baptizados, sejam masculinos ou femininos, tornam-se sacerdotes, participantes do sacerdócio de Cristo. Esta participação é o fundamento de tudo o que acontece na Igreja.
Quando se nega a possibilidade de as mulheres baptizadas acederem aos ministérios ordenados, são exibidas muitas razões. A particularidade de todas elas é a de terem perdido a razão. É frequente invocar a Última Ceia para falar da instituição da Eucaristia. Por não constarem, nessa narrativa, nomes de mulheres, diz-se que não receberam o sacramento da ordem, o fazei isto em memória de Mim! O uso do argumento da ausência de mulheres nessa Ceia, para não poderem presidir à Eucaristia, deveria ser radicalizado, para se ver o seu absurdo. Se isso fosse verdade, as mulheres ficariam definitivamente impedidas de participar na Eucaristia. Em termos “pastorais”, as mulheres deveriam ser impedidas de irem à missa!
3. O teólogo valdense italiano, Paolo Ricca [3], depois de analisar a situação da mulher na comunidade cristã nascente, procurou mostrar como “progressivamente foi afastada, de quase todas as funções, até se tornar o proletariado do cristianismo. Tal como na sociedade industrial do século XIX, o proletariado levava as coisas para a frente, as mulheres levam a Igreja para a frente, mas justamente como proletárias, isto é, sem poder”.
Parece-me um retrato sugestivo, mas esse caminho pode desvirtuar o que, hoje, está em causa: as mulheres, como no tempo de Jesus, não pretendem, como os discípulos, um poder de dominação, mas o poder de servir.
A regra de Santo Agostinho está certa: “Convosco sou cristão, para vós sou bispo.” A complementaridade das mulheres nos ministérios ordenados manifestará a originalidade das capacidades femininas de servir as comunidades cristãs, que tradições obsoletas impedem.
O Papa Francisco foi à Suécia para celebrar os 500 anos da Reforma Luterana. Encontrou mulheres e homens ordenados no serviço de uma Igreja cada vez mais democrática nas suas decisões. Não se poderá aprender nada com essa tradição?
As mulheres ordenadas, caminho ou obstáculo ao ecumenismo cristão?
[1] La Documentation Catholique, 19.06.1994, n.º 2096, pp 551-552; Ib. 553; Ib 03.07.1994 n.º 2097, pp 611-615
[2] Cf. J. M. R, Tillard, O.P., La “qualité sacerdotale” du ministère chrétien, NRTH, 5, 1973, pp 481-514
[3] Cf. Revista da Associação Oreundici, n.º 3, de Junho de 2013