Reflexão de Georgino Rocha
O entusiasmo das multidões em seguir Jesus contrasta radicalmente com a hostilidade dos fariseus. Aquelas, desde o início, seguem-no encantadas com os seus ensinamentos; estes chocados com o seu proceder, desconfiam cada vez mais da novidade que anuncia e das pretensões que revela. A situação daquelas desperta em Jesus sentimentos de compaixão benevolente; e a reacção destes provoca em Jesus uma atitude de atenção vigilante. Ninguém fica indiferente. Cada um, a seu modo, vai tomando partido. E hoje? A realidade dá-nos sinais contrastantes que muito nos interpelam.
O movimento espontâneo da Galileia surge a partir da acção missionária de Jesus que percorre cidades e aldeias e ensina nas sinagogas, anuncia a boa nova do Reino de Deus e cura toda a espécie de doenças. Mateus, o autor que narra os factos, faz-nos advertir num modo original de proceder: Ver a realidade, sentir compaixão, agir no presente, prevendo e acautelando o futuro. O cansaço e o abatimento das multidões estavam relacionados com a falta de pastores, de serem como rebanho abandonado e esquecido. O amor compassivo torna-se criativo e nasce o projecto de prover a que haja quem cuide do povo de Deus e tenha em conta o exemplo de Jesus, o Bom Pastor, como ele mesmo afirmará mais tarde. Cuide e sirva.
A poetisa chilena, Gabriela Mistral, 1889-1957, (aaldeia.net) dá rosto literário «à imensa alegria de servir» em versos cheios de realismo e de verdade. Transcrevem-se alguns:
Há a alegria de ser sincero e de ser justo; há, porém, mais do que isso, a imensa alegria de servir. Como seria triste o mundo se tudo já estivesse feito, se não houvesse uma roseira para plantar, uma iniciativa para lutar! Não te seduzam as obras fáceis. É belo fazer tudo o que os outros se recusam a executar. Não cometas, porém, o erro de pensar que só tem merecimento executar as grandes obras; há pequenos préstimos que são bons serviços: enfeitar uma mesa, arrumar uns livros, pentear uma criança… Deus, que nos dá fruto e luz, serve. Poderia chamar-se: o Servidor. E tem os seus olhos fixos nas nossas mãos e pergunta-nos todos os dias: Serviste hoje?
O primeiro passo do projecto de Jesus, que se manterá para sempre, consiste em pedir ao dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara. É feito em linguagem rural e agrícola, mas que se alarga a todas as culturas, Mateus apresenta duas verdades sublimes: a seara/o povo é de Deus; a primeira atitude do discípulo/cristão é a oração humilde e confiante. Verdades que servem de referência constante à acção apostólica de todos os tempos. Em sintonia afectiva com o único Senhor da missão, aferida no diálogo de oração insistente, encontra o trabalhador da messe a verdade do seu pensar e a norma do seu agir.
A esta recomendação primeira, segue-se o chamamento daqueles que já tinham alguma familiaridade com Jesus. Mateus dá-lhes o nome de apóstolos e indicam que são doze. Esta precisão é significativa: Não há gente anónima, cada pessoa tem nome próprio e, às vezes, apelido; o número doze dos escolhidos simboliza todo o povo de Deus, como outrora as doze tribos de Israel. A familiaridade será crescente e amadurecerá no dia-a-dia com surpresas agradáveis e com fracasso rotundos. Alguns, como Pedro, Tiago e João, terão momentos especiais de proximidade e de confidência. Em toda a caminhada por vilas e aldeias, os apóstolos sentem o apelo a centrarem as suas atenções na novidade de Jesus: o Reino que anuncia e está em realização. Apelo que é de sempre. Especialmente numa época, como a nossa, marcada pela cultura do egoísmo e da acomodação, da indiferença e do “descarte”. O cultivo do ego acentua a avareza dos sentimentos e da relação.
“Tem-se muitas vezes a tentação de negar ao próximo não tanto o dinheiro (um gesto de caridade por vezes não custa muito e põe a consciência em paz) mas sobretudo o próprio tempo na escuta, na proximidade, na ternura, afirma o Cardeal Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura. Paradoxalmente esta avareza é muito mais séria porque recusa não tanto um bem material, ainda que importante, mas uma realidade íntima e profunda que não pode ser adquirida. Todos, creio, devemos confessar termos dito não a quem queria apenas ouvir-nos ao telefone para ter uma palavra boa, ter evitado quem desejava ser escutado, ter recusado a companhia a uma pessoa só e doente. Também esta é uma avareza mesquinha”.
Centrados no anúncio do Reino ( cujos valores fundamentais são em Jesus Cristo a verdade para a inteligência, a liberdade para pensar e agir, a mansidão e humildade para se expressar, a justiça e a paz para edificar a sociedade e revelar a dignidade humana), os apóstolos são enviados em missão. E partem pelos caminhos do Império romano, procurando chegar onde as pessoas se encontram; pelas vias da cultura, ajudando-a a assumir e valorizar a riqueza das suas múltiplas expressões; pelas sendas do espírito, estimulando a libertação de preconceitos inibidores e favorecendo a abertura ao Transcendente e à comunhão com Deus em Jesus Cristo.
Ide! Os caminhos são novos, a missão é de sempre. Há novos rostos, novas linguagens, novas proximidades de lonjuras quase esquecidas, o amor de misericórdia está em todos e perpasse pelos gestos de cada um.