domingo, 18 de junho de 2017

O ECUMENISMO DAS MULHERES

Crónica de Frei Bento Domingues no DN


1. Nos finais dos anos 60 do século passado, num curso de cristologia, dediquei algumas aulas a investigar, com os alunos, o contraste entre a atitude de Jesus em relação às mulheres e a sua permanente ausência nas grandes decisões de orientação da Igreja. As mulheres não tinham podido votar os documentos do concílio ecuménico Vaticano II, como também nunca tinham tido voz activa em nenhum outro Concílio. Um estudante, no debate, argumentou que, por isso, era um abuso falar de concílios ecuménicos, porque lhes faltou sempre a voz e o voto das mulheres cristãs. Esse facto era mais grave do que a ausência das Igrejas ortodoxas e protestantes no Vaticano II.
Mesmo sem entrar agora nessa discussão, é preciso ir à raiz de toda a problemática actual na Igreja, sobre o acesso das mulheres aos ministérios ordenados, sobretudo depois da decisão de João Paulo II destinada a abolir, e para sempre, qualquer debate a esse respeito. Invocou para o efeito a sua missão e decidiu que a Igreja não tem qualquer poder para conceder a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta posição deve ser mantida por todos os fiéis da Igreja, definitivamente.
A 18 de Novembro de 1995, a Congregação para a Doutrina da Fé declarou que esta Carta Apostólica não é uma definição ex-cathedra [1]. A vontade de suprimir para sempre qualquer debate sobre esta matéria é o desejo do impossível. Há-de haver sempre quem não sinta essa obrigação e teime em discutir, como seu direito.
De facto, esse documento vem na linha da progressiva sacerdotalização dos ministérios ordenados na Igreja com resultados pouco cristãos. Levou a esquecer o principal: a marca sacerdotal do baptismo. Isto sim, que é grave. O principal passou para secundário e o secundário para principal. É uma inversão que atinge a própria raiz do cristianismo.
Por outro lado, não existem dois baptismos, um para homens e outro para mulheres. A identidade cristã é sacerdotal sem distinção de género. No entanto, quando se fala de sacerdotes pensa-se logo nos padres e nos bispos, algo vedado às mulheres.
É por esta deformação que os ministérios ordenados adquiriram uma posição tão relevante e absoluta em relação aos outros ministérios eclesiais, mas sobretudo desvalorizando a dignidade baptismal, comum a todos os cristãos. Esta é anterior e determinante para o exercício de outro qualquer ministério na Igreja. Aquilo que é um serviço expressou-se como um poder que impõe e domina, desfigurando a imagem cristã da Igreja: uns ensinam, mandam e celebram e os outros e as outras escutam, obedecem e assistem.

2. A qualificação do Baptismo, no Espírito Santo, é ontológica. Existe para celebrar um nascimento novo para a fraternidade na Igreja de irmãs e irmãos. Quando Tomás de Aquino pergunta o que há de mais importante, de mais poderoso na lei nova do Evangelho, responde: a graça do Espírito Santo, tudo o resto é para a secundar. Os ministérios pertencem ao âmbito funcional, são da ordem do fazer. A graça do Baptismo é da ordem do ser.
O chamado sacerdócio comum dos baptizados não se identifica com os ministérios ordenados a que se costuma chamar sacerdócio ministerial ou hierárquico. Ao fazer isto, esquece-se que a diferença entre ambos é em benefício do Baptismo e não ao contrário. A verdadeira dignidade de todos os cristãos, masculinos e femininos, provém da graça baptismal.
A desgraça está mesmo neste ponto. Quando se fala do sacerdócio comum, dado pelo Baptismo, fica-se com a ideia, essa sim muito comum, de que este está muito abaixo do sacerdócio ministerial, quando a verdade é completamente inversa. Os chamados ministérios ordenados têm uma história muito complexa que importa conhecer para não se cair em contra-sensos [2], como documentou o teólogo J. Tillard.
Se a celebração do Baptismo é um sacramento da transformação pascal da vida, todos os baptizados, sejam masculinos ou femininos, tornam-se sacerdotes, participantes do sacerdócio de Cristo. Esta participação é o fundamento de tudo o que acontece na Igreja.
Quando se nega a possibilidade de as mulheres baptizadas acederem aos ministérios ordenados, são exibidas muitas razões. A particularidade de todas elas é a de terem perdido a razão. É frequente invocar a Última Ceia para falar da instituição da Eucaristia. Por não constarem, nessa narrativa, nomes de mulheres, diz-se que não receberam o sacramento da ordem, o fazei isto em memória de Mim! O uso do argumento da ausência de mulheres nessa Ceia, para não poderem presidir à Eucaristia, deveria ser radicalizado, para se ver o seu absurdo. Se isso fosse verdade, as mulheres ficariam definitivamente impedidas de participar na Eucaristia. Em termos “pastorais”, as mulheres deveriam ser impedidas de irem à missa!

3. O teólogo valdense italiano, Paolo Ricca [3], depois de analisar a situação da mulher na comunidade cristã nascente, procurou mostrar como “progressivamente foi afastada, de quase todas as funções, até se tornar o proletariado do cristianismo. Tal como na sociedade industrial do século XIX, o proletariado levava as coisas para a frente, as mulheres levam a Igreja para a frente, mas justamente como proletárias, isto é, sem poder”.
Parece-me um retrato sugestivo, mas esse caminho pode desvirtuar o que, hoje, está em causa: as mulheres, como no tempo de Jesus, não pretendem, como os discípulos, um poder de dominação, mas o poder de servir.
A regra de Santo Agostinho está certa: “Convosco sou cristão, para vós sou bispo.” A complementaridade das mulheres nos ministérios ordenados manifestará a originalidade das capacidades femininas de servir as comunidades cristãs, que tradições obsoletas impedem.
O Papa Francisco foi à Suécia para celebrar os 500 anos da Reforma Luterana. Encontrou mulheres e homens ordenados no serviço de uma Igreja cada vez mais democrática nas suas decisões. Não se poderá aprender nada com essa tradição?
As mulheres ordenadas, caminho ou obstáculo ao ecumenismo cristão?

[1] La Documentation Catholique, 19.06.1994, n.º 2096, pp 551-552; Ib. 553; Ib 03.07.1994 n.º 2097, pp 611-615
[2] Cf. J. M. R, Tillard, O.P., La “qualité sacerdotale” du ministère chrétien, NRTH, 5, 1973, pp 481-514
[3] Cf. Revista da Associação Oreundici, n.º 3, de Junho de 2013

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue