Sobre o sentido humano das férias
“Depois de haver aplicado a um trabalho o seu tempo e as suas forças, de uma maneira conscienciosa, todos devem gozar de um tempo de repouso e de descanso suficiente para se dedicarem à vida familiar, cultural, social e religiosa” (Gaudium et Spes, 67).
À excepção daqueles – que os há – para quem ter um período de férias nada diz ou representa, na medida em que se tornaram escravos do trabalho e do tempo e já não sabem viver, no seu dia-a-dia, sem este comportamento, não há ninguém que diga que é mau ter férias e é com expectativa que aguardam por elas, tal como uma criança espera por um presente que pediu e muito deseja, não vendo a hora de ele chegar. É bom e necessário ter férias, sobretudo quando passamos, cada vez mais, a vida a correr contra o tempo e as contrariedades que estão sempre à nossa espreita. Por outro lado, lamentamo-nos, frequentemente e com razão, que não temos tempo para tudo e o cansaço torna-se numa presença constante, retirando, quantas vezes, qualidade de vida e prazer em usufrui-la da melhor forma, por cada um de nós.
Deste modo, falar de férias é ir muito mais além de um determinado período de repouso ou de mudança de hábitos ou da simples interrupção das idas diárias para o trabalho, em que o relógio é dono e o senhor implacável do nosso ritmo de vida.
As férias têm, pois, um profundo sentido humano e humanizante que não só radica na justiça em as ter, mas que se entrelaça, directa e profundamente, com tudo aquilo que as envolve, antes e depois destas serem gozadas, ou seja, nem as férias devem ser vistas como um escape às justas responsabilidades individuais de cada um nem o trabalho como um castigo para quem o tem. Parece-me, no entanto, que este sentido humano e humanizante das férias nem sempre é tido em conta, a começar pelo esquecimento a que são sujeitos a larga maioria dos portugueses, que não podem, injustamente, usufruir de um merecido tempo de repouso e descanso laboral, o que acaba por aumentar as desigualdades e a insensibilidade social ao sofrimento e à injustiça dos outros.
A tudo isto, há que recordar os doentes, os idosos, os presos, os que são vítimas de situações de exploração no trabalho ou os abandonados.
Às famílias com mais posses financeiras pede-se, quando for caso disso, que integrem os seus membros mais carenciados nos seus projectos de férias.
Às autarquias, entidades estatais e eclesiais, exige-se que tenham presente este sentido humano que as férias contêm em si mesmo e tudo façam para dar um pouco de dignidade a tantos que se contentam com tão pouco.
É fácil, para quem o pode fazer, marcar rotas, destinos e projectos e partir em busca de novas paragens e experiências. O difícil é saber valorizar, muitas das vezes, o próprio tempo e, por via de razão, o tempo dos outros.
Por último, recordo algumas palavras de João Paulo II sobre as férias: “Quantas vezes se sofre devido ao cerrado ritmo de trabalho (…) Quantas vezes é difícil encontrar o clima sereno e a atmosfera tranquila para viver a intimidade, dialogar e fazer emergir as exigências e os projectos de cada um! Então, eis que as férias são propícias, antes de mais, para colmatar estas lacunas, por assim dizer, de “humanidade”, de paz e convivência. Daqui a exigência de as férias serem efectivamente um período de renovação humana em que, longe do habitual ambiente de vida, é possível encontrar-se a si mesmo e aos outros, numa dimensão mais equilibrada e serena.”
Comecei este texto com uma citação da Constituição Gaudium et Spes e é com uma outra citação deste Documento da Igreja que vou terminar: “Por fim, o trabalho deve ser remunerado de tal modo que permita ao homem e à família levar uma vida digna, tanto material ou social, como cultural ou espiritual, tendo em conta as funções e a produtividade de cada um, e o bem comum” (GS, 67).
Contudo, a crueldade, a ganância e o egoísmo do homem vão-se encarregando de separar (desumanizar) e, até, fazer esquecer estas duas dimensões da vida humana. Procurar uni-las é um desafio permanente, para os que acreditam que o valor e o significado das férias está para além do legítimo passear ou descansar, para se situar na relação de cada um consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Para todos os leitores, se for caso disso, umas excelentes férias e, sobretudo, que tenham uma vida feliz e de realizações partilhadas. Com férias ou sem elas!
Vítor Amorim