Repensar Deus e O Ateísmo de Deus foram os títulos que dois jornalistas deram a declarações minhas na quadra natalícia. E, claro, não faltou quem se escandalizasse.
Não é Deus sempre o mesmo? Então, porquê e como repensá-lo? Cá está! Realmente, Deus não muda, é sempre o mesmo. Mas quem o pensa somos nós e sempre a partir de um lugar e de um tempo. Como escreveu Mestre Eckhart, "o facto de Deus ser imutável faz com que todas as coisas se movam". Deus transforma-se na sua história com os homens e as mulheres, como as mulheres e os homens se transformam na sua história com Deus ou sem Deus - o ateísmo também faz parte da história religiosa da Humanidade.
Depois, a afirmação do "ateísmo de Deus" é menos provocatória do que se julga. Deus não põe a questão de Deus, precisamente porque é Deus e não há Deus acima de Deus.
Mas, para lá da provocação, a afirmação é mais exigente e pode ter consequências inesperadas. Deus é plenitude e excesso, não precisando do culto dos homens. Assim, pelo menos na perspectiva cristã, Deus revelou-se não por causa dele mesmo, mas por causa dos homens e das mulheres. Deus não criou os seres humanos por causa da sua glória, mas exclusivamente por causa da felicidade deles, seres humanos. O único interesse de Deus na criação é a realização plena dos homens e das mulheres. Santo Ireneu disse-o de modo pregnante: "A glória de Deus é o Homem vivo."
Ao contrário do Enuma Elish, poema épico da Babilónia sobre o mito da criação, no qual os homens aparecem para servirem os deuses, no livro do Génesis, os homens não são servos de Deus - a criação é por causa dos homens e não por causa de Deus. Mais tarde, Jesus explicitará, dizendo aos discípulos que os não chama servos, mas amigos, pois revelou-lhes quem é e o que é Deus para os homens: Deus é amor. Aí está a razão por que, nos casamentos, por exemplo, se não deveria referir os noivos como servos: eles, de facto, não são servos, mas amigos de Deus.
Esta é com certeza a revolução mais extraordinária da história religiosa da Humanidade, sendo preciso tirar daí as devidas consequências. A maior talvez seja a autonomia nos diferentes domínios: político, científico, económico, filosófico, moral... As realidades terrestres devem ser pensadas e conduzidas segundo a sua racionalidade própria.
O ponto mais sensível será a ética. As religiões não ditam como específicos os conteúdos morais universalmente exigíveis. Crentes e não crentes, a partir dos avanços que a História foi alcançando no domínio das diferentes gerações de direitos humanos - certamente também por acolhimento de muita inspiração religiosa -, deverão chegar, com argumentação racional-prática, àquele consenso de um mínimo ético decente sem o qual os seres humanos ficariam abaixo da possibilidade de realizarem a sua humanidade. Trata-se daquilo que alguns, como Adela Cortina, chamam uma "ética de mínimos", referente à justiça e àquele nível básico de condições que permitirá, depois, que, em sociedades pluralistas, convivam diferentes "éticas de máximos", isto é, grupos com distintas propostas de sentido, felicidade e vida plena.
Então, Deus é inútil? Deus não se encontra na lógica da necessidade, mas do excesso e da graça. Assim, também no campo ético, pode ser inspirador de uma atitude nova e de uma nova esperança. E os crentes, no quadro de uma sociedade pluralista - o Estado deve ser laico; as sociedades não são laicas, mas plurais -, podem e devem participar no debate público, sem terem de pôr de lado a sua inspiração religiosa. Como escreveu o filósofo agnóstico Jürgen Habermas, "a garantia de liberdades éticas iguais exige a secularização do poder do Estado, mas proíbe a universalização política da concepção secularista do mundo. Os cidadãos secularizados, na assunção do seu papel de cidadãos, não devem negar liminarmente um potencial de verdade às concepções religiosas nem pôr em causa o direito de os concidadãos crentes oferecerem contributos, em linguagem religiosa, para as discussões públicas".
Anselmo Borges
In Diário de Notícias