Foi publicamente denunciada a proposta de regulamentação da lei da assistência religiosa nos hospitais do Estado, apresentada pelo Governo. Segundo consta o capelão só poderá aproximar-se dos doentes que, por escrito e com a devida assinatura, solicitem a sua presença. Isto é inacreditável, por maior que seja a razão de tal proposta e o medo de que não sejam respeitados nas suas convicções aqueles quem sofrem.
Fui durante dez anos capelão de um sanatório do Estado. Mais de cem homens internados, todos eles oriundos dos distritos alentejanos, muitos já com os pulmões desfeitos pela grave silicose produzida pela poeira das minas onde trabalharam até lhes ser possível. Não sei se neste tempo algum descobriu o rosto de Deus e começou uma prática religiosa que nunca tinham tido. Sei, porém, que muitos experimentaram uma reconhecida força espiritual pelo calor da amizade que sempre lhes dediquei, quando me procuravam ou eu me aproximava para animar, dar conforto, ser uma presença amiga e familiar, muitos que a família que não podia visitar, pela distância e falta de recursos. Quantas cartas lidas e escritas, quantas confidências libertadoras, quantos apelos para solucionar problemas, prevenir situações, provocar reconciliações… Só quem está vazio de sentimentos fraternos, de afectos de humanidade e de solidariedade, só quem desconhece a realidade de quem sofre sem horizontes de cura, pode desvalorizar a força de uma palavra amiga, de uma visita gratuita por parte de quem, não era família de sangue, nem rosto conhecido. Só quem nunca sentiu a comunicação silenciosa de um gesto respeitoso quando o silêncio diz mais que as palavras, pode pensar que basta que o capelão do hospital seja como um bombeiro de serviço, à espera do pedido por escrito e assinado, para se poder aproximar da cama do doente. Para os laicistas associados até isto é de mais, porque para eles o lugar do capelão é a rua.
É a velha miopia moral de quem só enxerga até onde os olhos chegam. É o preconceito de quem vê na religião, qualquer que ela seja, um elemento deletério, que terá que terá de se aguentar, devido ao atraso de um povo inculto. É a pobreza de ideias e sentimentos de quem vê nos direitos humanos um favor generoso de quem governa.
Sabia que entre nós estão empobrecendo os sentimentos e as expressões de humanidade, mas não sabia que este empobrecimento era desejado e programado. Os doentes, assim se pretende, devem ser respeitados, mas segundo o crivo da lei interpretada a rigor. Agora os serviços públicos determinam o envio acelerado de equipas de psicólogos para apoiar famílias vítimas de calamidades, quando afectadas e fazem algumas vezes o mesmo para apoiar doentes graves dos hospitais Porque o Estado é laico, padres longe e psicólogos perto. Prefere-se o raro ao permanente, o espalhafatoso ao discreto, a lei à pessoa.
Ao longo da vida encontrei chefes militares a pedir que não tirem os capelães às forças armadas, directores de hospitais e de prisões a agradecer o trabalho extraordinário do capelão, responsáveis de escolas a lamentar que a aula de moral esteja a ser desvalorizada pelo governo e direcções regionais, com prejuízo para os alunos e para comunidade educativa. Isto não significará nada para quem faz as leis e as regulamenta?
É preciso ouvir o povo não apenas nas inaugurações com vivas, foguetes, presentes e placas com os dizeres que o ministro determina. Há que sentir o pulsar da vida, compreender as preocupações das pessoas, provocar a sua participação no que lhes diz respeito. Foram acaso ouvidos os doentes, as famílias, a gente dos hospitais? Quem serve não se pode dispensar desta tarefa. É fácil corrigir abusos, mas não tanto suprir as consequências de omissões, quando a própria lei as favorece.
António Marcelino
Fui durante dez anos capelão de um sanatório do Estado. Mais de cem homens internados, todos eles oriundos dos distritos alentejanos, muitos já com os pulmões desfeitos pela grave silicose produzida pela poeira das minas onde trabalharam até lhes ser possível. Não sei se neste tempo algum descobriu o rosto de Deus e começou uma prática religiosa que nunca tinham tido. Sei, porém, que muitos experimentaram uma reconhecida força espiritual pelo calor da amizade que sempre lhes dediquei, quando me procuravam ou eu me aproximava para animar, dar conforto, ser uma presença amiga e familiar, muitos que a família que não podia visitar, pela distância e falta de recursos. Quantas cartas lidas e escritas, quantas confidências libertadoras, quantos apelos para solucionar problemas, prevenir situações, provocar reconciliações… Só quem está vazio de sentimentos fraternos, de afectos de humanidade e de solidariedade, só quem desconhece a realidade de quem sofre sem horizontes de cura, pode desvalorizar a força de uma palavra amiga, de uma visita gratuita por parte de quem, não era família de sangue, nem rosto conhecido. Só quem nunca sentiu a comunicação silenciosa de um gesto respeitoso quando o silêncio diz mais que as palavras, pode pensar que basta que o capelão do hospital seja como um bombeiro de serviço, à espera do pedido por escrito e assinado, para se poder aproximar da cama do doente. Para os laicistas associados até isto é de mais, porque para eles o lugar do capelão é a rua.
É a velha miopia moral de quem só enxerga até onde os olhos chegam. É o preconceito de quem vê na religião, qualquer que ela seja, um elemento deletério, que terá que terá de se aguentar, devido ao atraso de um povo inculto. É a pobreza de ideias e sentimentos de quem vê nos direitos humanos um favor generoso de quem governa.
Sabia que entre nós estão empobrecendo os sentimentos e as expressões de humanidade, mas não sabia que este empobrecimento era desejado e programado. Os doentes, assim se pretende, devem ser respeitados, mas segundo o crivo da lei interpretada a rigor. Agora os serviços públicos determinam o envio acelerado de equipas de psicólogos para apoiar famílias vítimas de calamidades, quando afectadas e fazem algumas vezes o mesmo para apoiar doentes graves dos hospitais Porque o Estado é laico, padres longe e psicólogos perto. Prefere-se o raro ao permanente, o espalhafatoso ao discreto, a lei à pessoa.
Ao longo da vida encontrei chefes militares a pedir que não tirem os capelães às forças armadas, directores de hospitais e de prisões a agradecer o trabalho extraordinário do capelão, responsáveis de escolas a lamentar que a aula de moral esteja a ser desvalorizada pelo governo e direcções regionais, com prejuízo para os alunos e para comunidade educativa. Isto não significará nada para quem faz as leis e as regulamenta?
É preciso ouvir o povo não apenas nas inaugurações com vivas, foguetes, presentes e placas com os dizeres que o ministro determina. Há que sentir o pulsar da vida, compreender as preocupações das pessoas, provocar a sua participação no que lhes diz respeito. Foram acaso ouvidos os doentes, as famílias, a gente dos hospitais? Quem serve não se pode dispensar desta tarefa. É fácil corrigir abusos, mas não tanto suprir as consequências de omissões, quando a própria lei as favorece.
António Marcelino