OS OSSÁRIOS
DA FAMÍLIA DE JESUS
N o passado domingo, 15, em horário nobre, a televisão passou um longo documentário sobre uma descoberta de 1980, em Jerusalém. A partir de um túmulo com nomes fundamentais do Novo Testamento - Jesus, filho de José; Maria; José; Mariamne (Maria Madalena?); Judas, filho de Jesus; Mateus - pretendia-se que se poderia estar em presença dos ossários da família de Jesus.
O documentário era sedutor. Foi-se inclusivamente à análise do ADN. Mas quem estivesse atento não deixaria de constatar alçapões. A partir da análise do ADN, por exemplo, não podia concluir-se que Jesus e Maria Madalena tivessem sido marido e mulher. E não se percebe como é que uma família pobre, da Galileia, no norte, tinha um túmulo em Jerusalém, no sul.
É possível que alguns cristãos ficassem na perplexidade. Sobretudo por causa de pensarem que, se encontrassem os restos mortais de Jesus, ele não tinha ressuscitado nem subido aos céus. Então, o cristianismo afundava-se, sem salvação.Foi Kant que preveniu contra a menoridade religiosa culpada como a mais nefasta. A religião é do domínio do transracional, mas não pode ser irracional nem infantil.
Uma das questões do documentário tem a ver com as relações entre Jesus e Maria Madalena. É natural que as pessoas queiram saber, e a Igreja não pode ignorar o problema nem torná-lo tabu. Nada prova que tenha havido relações de marido e mulher. Mas não há dúvida de que Maria Madalena amava Jesus e de que Jesus a amava. Sobre o tema, o abbé Pierre, insuspeito, escreveu, pouco antes de morrer, que quer Jesus tenha satisfeito quer não o desejo sexual num amor partilhado, "isso nada muda ao essencial da fé cristã". O que se não pode é afirmar que Jesus é verdadeiramente homem e retirar-lhe a sexualidade.Quanto à outra questão, decisiva: é evidente que a ressurreição não consiste na reanimação do cadáver. Caso contrário, Jesus voltaria a morrer. Com a fé na ressurreição, o crente está a confessar que, na morte, Jesus não se afundou no nada, mas entrou na plenitude do mistério insondável de Deus. Como foi e é? Ninguém sabe.
À distância de 2000 anos, não imaginamos o que foi de abalo e desilusão para os discípulos a condenação de Jesus à morte, concretamente à morte de cruz, uma morte própria de escravos, não sendo de excluir que o cadáver tenha ido para uma vala comum. Foi lentamente que eles, reflectindo sobre tudo o que tinham vivido com Jesus, meditando sobre a sua mensagem - o seu núcleo é a experiência de que Deus é Amor -, sobre as Escrituras, sobre o modo como viveu e morreu, fizeram a experiência de fé de que o Deus que ele experienciara como Amor e Pai não podia tê-lo abandonado na morte. E foi tal a sua convicção que estiveram dispostos a dar a vida por essa fé.Anunciaram que o tinham "visto". Mas, quando se lê os Evangelhos, vê-se claramente que não se trata da reanimação do cadáver.
Nunca se diz, por exemplo, como foi a ressurreição nem se descreve, pois ela não é um facto da história empírica, que os historiadores examinam.
Maria Madalena, que nunca aceitou que Deus o deixasse cair no nada, porque o amor é mais forte do que a morte, quando o "viu", pensou que era o jardineiro; só quando foi chamada pelo nome é que o reconheceu - uma história de amor. Tomé diz que não acredita, se não vir a marca das feridas nas mãos e no lado; Jesus diz-lhe para meter a mão, mas não se diz que ele o tenha feito. Se se tratasse da reanimação do cadáver, quando Jesus caminhou com os discípulos de Emaús durante 12 quilómetros, todos deveriam tê-lo visto no caminho; mas só eles o reconheceram ao partir do pão.
O Principezinho diz que o mais importante é invisível aos olhos. É preciso ver com o coração. Na religião, não se pode utilizar a linguagem coisista. No domínio religioso, apela-se para o símbolo, para a poesia, para o amor. Aí, percebe-se que, mesmo que encontrassem os restos mortais de Jesus, a fé cristã não ficaria abalada. Pelo menos, a fé do crente reflexivo. Ninguém conhece as possibilidades presentes na matéria e em Deus.