1. Por causa de Lutero, pus-me a caminho de Worms, era eu ainda estudante na Alemanha. Foi uma senhora que amavelmente me disse: ali adiante, no jardim, junto à catedral, vai encontrar uma placa no chão alusiva à presença de Lutero. E lá encontrei a placa: "Hier Stand Vor Kaiser Und Reich Martin Luther, 1521" (aqui compareceu perante o império e o imperador Martinho Lutero, 1521). Foi ali, na Dieta de Worms, que Lutero fez o discurso que marcaria a ruptura com a Igreja de Roma, o discurso que termina com as famosas palavras sempre lembradas quando se trata de defender a objecção de consciência: "Se me não refutardes através do testemunho das Escrituras ou mediante argumentos evidentes - uma vez que não creio nem nos papas nem nos concílios, pois é evidente que já muitas vezes se equivocaram e se contradisseram -, estou encadeado aos textos da Escritura e a minha consciência cativa da Palavra de Deus. Não posso retractar-me nem me retractarei de nada, porque não é justo nem honesto agir contra a consciência. Que Deus me ajude! Amém."
Lutero já estava excomungado e podia ser preso. Por isso, Frederico III conseguira do imperador Carlos V um salvo-conduto para ele poder ir a Worms e regressar, sem ser detido. Depois da sua declaração, ficava proscrito, podendo o seu fim ser a fogueira, como acontecera a Jan Hus, que também queria a reforma da Igreja. Assim, o príncipe Frederico, astutamente, sequestrou-o, para protegê-lo no seu castelo de Wartburg, onde se dedicou à tradução do Novo Testamento, contribuindo decisivamente para a constituição do alemão moderno. Abandonou o hábito de frade em 1524 e casou-se com Catarina de Bora em 1525, tendo sido um bom marido e pai.
2. Lutero nasceu em Eisleben em 1483. Estudou Filosofia e Direito. A sua vida sofreu uma reviravolta quando no dia 2 de Julho de 1505, no meio de uma grande tempestade, um raio lhe caiu perto e, aterrado, prometeu: "Santa Ana, ajuda-me, far-me-ei monge." No dia 17 de Julho seguinte, contra a vontade do pai, cumpriu e deu entrada no Convento dos Agostinhos em Erfurt, em cuja universidade estudava. Foi ordenado em 1507, doutorando-se em Teologia em 1512, e exerceu como professor de Teologia Bíblica. Antes, enviado pelo superior, J. von Staupitz, passou por Roma, onde, constatando o fausto e a vida escandalosa do Papa e da Cúria, mais aprofundou a urgência da reforma da Igreja.
Foi um frade piedoso e cumpridor, na oração, no jejum, na penitência, confessava-se frequentemente. Sedento de Deus e de salvação, vivia em crise interior permanente, angustiado com os escrúpulos, torturado com o pecado e a ira de Deus e a sua justiça como castigo. Obcecava-o a pergunta: "Que devo fazer para obter a misericórdia de Deus?" Em 1545, recorda no prólogo à edição das suas Obras Completas em latim: "Embora a minha vida de frade fosse irrepreensível, sentia-me pecador diante de Deus, com a consciência perturbada. Indignava-me contra este Deus, alimentando em segredo, senão a blasfémia, pelo menos uma violenta murmuração... Sei de um homem que sofreu estas penas muitas vezes... com violência tão dura e infernal que nem a língua pode exprimir nem a pena escrever..."
Foi em 1514 que se deu a viragem total na sua vida, ao descobrir, através da Carta aos Romanos, de São Paulo, o Deus da misericórdia, cuja justiça não é de castigo mas de amor. "Pela fé recebemos um coração diferente, novo e puro. Deus quer ter-nos totalmente justificados por causa de Cristo, nosso mediador." Em terminologia simples, a questão que já São Paulo tinha é esta: o que vale a minha vida? Que valor tem ela e para quem? Quem me reconhece? Valho o quê para quem? E São Paulo e Lutero descobrem que valemos infinitamente para Deus. A fé é a entrega confiada a esse mistério do Deus misericordioso que, através de Cristo, reconhece o nosso valor para ele. Nisso consiste a salvação.
3. Resolvido este problema pessoal, no quadro da urgência da reforma da Igreja, no contexto da necessidade de uma piedade mais interior e pessoal, quando os príncipes exigiam autonomia face ao imperador Carlos V e a Roma e estavam em marcha transformações culturais, económicas e políticas, destronando o paradigma medieval, Lutero acabou por desencadear, nem sempre consciente disso e até contra a sua vontade, uma ruptura religiosa e um cataclismo civilizacional. Como escreveu Jaume Botey, "as consequências desse cataclismo puseram em evidência a existência na Europa de duas culturas, dois modelos de relações sociais, duas formas de entender a política e o poder, inclusive, dois modelos económicos que, de facto, ainda hoje continuam entre a Europa do Norte e a Europa mediterrânica".
A causa imediata foi a venda de indulgências. No dia 31 de Outubro de 1517, Lutero afixou nas portas da igreja do castelo de Wittemberg as célebres 95 teses, apenas com o propósito de um debate teológico académico. Algumas dessas teses: "Deve-se ensinar aos cristãos que age melhor quem dá esmola ao pobre do que quem compra indulgências." "Se o Papa soubesse dos métodos de extorsão usados pelos pregadores de indulgências, preferiria ver a Basílica de São Pedro a afundar-se em cinzas a edificá-la à custa da pele, da carne e dos ossos das suas ovelhas." "Deve ensinar-se aos cristãos que o Papa, como é seu dever, estaria, se fosse necessário, disposto a vender a Basílica de São Pedro para dar do seu próprio dinheiro a muitos a quem alguns pregadores o tiram."
4. Qual o cristão que não estará de acordo com a crítica da venda das indulgências?
Recentemente, o Papa Francisco, com a audácia que o Evangelho dá, "denunciou e condenou o "mercadejar" no que ao inferno, ao céu e ao purgatório se refere, como frequentemente se faz nas cúrias eclesiásticas e seus arredores". E convidou a todos a deixar-se "misericordiar" por Deus.
Anselmo Borges no DN
Anselmo Borges no DN
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico