sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Anselmo Borges — Lutero: a fé e as indulgências




1. Por causa de Lutero, pus-me a caminho de Worms, era eu ainda estudante na Alemanha. Foi uma senhora que amavelmente me disse: ali adiante, no jardim, junto à catedral, vai encontrar uma placa no chão alusiva à presença de Lutero. E lá encontrei a placa: "Hier Stand Vor Kaiser Und Reich Martin Luther, 1521" (aqui compareceu perante o império e o imperador Martinho Lutero, 1521). Foi ali, na Dieta de Worms, que Lutero fez o discurso que marcaria a ruptura com a Igreja de Roma, o discurso que termina com as famosas palavras sempre lembradas quando se trata de defender a objecção de consciência: "Se me não refutardes através do testemunho das Escrituras ou mediante argumentos evidentes - uma vez que não creio nem nos papas nem nos concílios, pois é evidente que já muitas vezes se equivocaram e se contradisseram -, estou encadeado aos textos da Escritura e a minha consciência cativa da Palavra de Deus. Não posso retractar-me nem me retractarei de nada, porque não é justo nem honesto agir contra a consciência. Que Deus me ajude! Amém."

Lutero já estava excomungado e podia ser preso. Por isso, Frederico III conseguira do imperador Carlos V um salvo-conduto para ele poder ir a Worms e regressar, sem ser detido. Depois da sua declaração, ficava proscrito, podendo o seu fim ser a fogueira, como acontecera a Jan Hus, que também queria a reforma da Igreja. Assim, o príncipe Frederico, astutamente, sequestrou-o, para protegê-lo no seu castelo de Wartburg, onde se dedicou à tradução do Novo Testamento, contribuindo decisivamente para a constituição do alemão moderno. Abandonou o hábito de frade em 1524 e casou-se com Catarina de Bora em 1525, tendo sido um bom marido e pai.

2. Lutero nasceu em Eisleben em 1483. Estudou Filosofia e Direito. A sua vida sofreu uma reviravolta quando no dia 2 de Julho de 1505, no meio de uma grande tempestade, um raio lhe caiu perto e, aterrado, prometeu: "Santa Ana, ajuda-me, far-me-ei monge." No dia 17 de Julho seguinte, contra a vontade do pai, cumpriu e deu entrada no Convento dos Agostinhos em Erfurt, em cuja universidade estudava. Foi ordenado em 1507, doutorando-se em Teologia em 1512, e exerceu como professor de Teologia Bíblica. Antes, enviado pelo superior, J. von Staupitz, passou por Roma, onde, constatando o fausto e a vida escandalosa do Papa e da Cúria, mais aprofundou a urgência da reforma da Igreja.
Foi um frade piedoso e cumpridor, na oração, no jejum, na penitência, confessava-se frequentemente. Sedento de Deus e de salvação, vivia em crise interior permanente, angustiado com os escrúpulos, torturado com o pecado e a ira de Deus e a sua justiça como castigo. Obcecava-o a pergunta: "Que devo fazer para obter a misericórdia de Deus?" Em 1545, recorda no prólogo à edição das suas Obras Completas em latim: "Embora a minha vida de frade fosse irrepreensível, sentia-me pecador diante de Deus, com a consciência perturbada. Indignava-me contra este Deus, alimentando em segredo, senão a blasfémia, pelo menos uma violenta murmuração... Sei de um homem que sofreu estas penas muitas vezes... com violência tão dura e infernal que nem a língua pode exprimir nem a pena escrever..."
Foi em 1514 que se deu a viragem total na sua vida, ao descobrir, através da Carta aos Romanos, de São Paulo, o Deus da misericórdia, cuja justiça não é de castigo mas de amor. "Pela fé recebemos um coração diferente, novo e puro. Deus quer ter-nos totalmente justificados por causa de Cristo, nosso mediador." Em terminologia simples, a questão que já São Paulo tinha é esta: o que vale a minha vida? Que valor tem ela e para quem? Quem me reconhece? Valho o quê para quem? E São Paulo e Lutero descobrem que valemos infinitamente para Deus. A fé é a entrega confiada a esse mistério do Deus misericordioso que, através de Cristo, reconhece o nosso valor para ele. Nisso consiste a salvação.

3. Resolvido este problema pessoal, no quadro da urgência da reforma da Igreja, no contexto da necessidade de uma piedade mais interior e pessoal, quando os príncipes exigiam autonomia face ao imperador Carlos V e a Roma e estavam em marcha transformações culturais, económicas e políticas, destronando o paradigma medieval, Lutero acabou por desencadear, nem sempre consciente disso e até contra a sua vontade, uma ruptura religiosa e um cataclismo civilizacional. Como escreveu Jaume Botey, "as consequências desse cataclismo puseram em evidência a existência na Europa de duas culturas, dois modelos de relações sociais, duas formas de entender a política e o poder, inclusive, dois modelos económicos que, de facto, ainda hoje continuam entre a Europa do Norte e a Europa mediterrânica".
A causa imediata foi a venda de indulgências. No dia 31 de Outubro de 1517, Lutero afixou nas portas da igreja do castelo de Wittemberg as célebres 95 teses, apenas com o propósito de um debate teológico académico. Algumas dessas teses: "Deve-se ensinar aos cristãos que age melhor quem dá esmola ao pobre do que quem compra indulgências." "Se o Papa soubesse dos métodos de extorsão usados pelos pregadores de indulgências, preferiria ver a Basílica de São Pedro a afundar-se em cinzas a edificá-la à custa da pele, da carne e dos ossos das suas ovelhas." "Deve ensinar-se aos cristãos que o Papa, como é seu dever, estaria, se fosse necessário, disposto a vender a Basílica de São Pedro para dar do seu próprio dinheiro a muitos a quem alguns pregadores o tiram."

4. Qual o cristão que não estará de acordo com a crítica da venda das indulgências?
Recentemente, o Papa Francisco, com a audácia que o Evangelho dá, "denunciou e condenou o "mercadejar" no que ao inferno, ao céu e ao purgatório se refere, como frequentemente se faz nas cúrias eclesiásticas e seus arredores". E convidou a todos a deixar-se "misericordiar" por Deus.

Anselmo Borges no DN

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Georgino Rocha — Valorizar os dons que Deus te confia



Jesus quer deixar claro quem é Deus. Está na parte final dos seus ensinamentos. Tem consigo os discípulos e, neles, todos os que virão a acreditar na sua palavra. Como nós, hoje. E recorre a três parábolas muito concretas: A da festa nupcial, narrada no domingo passado, a da avaliação final ou do juízo da humanidade e do universo, no próximo domingo que a Igreja celebra como a Festa de Cristo Rei, a de hoje dedicada aos talentos confiados aos servos por um homem rico que vai fazer uma viagem. Por indicação do Papa Francisco este domingo é consagrado especialmente aos Pobres, o que indica uma chave de leitura para o texto evangélico
Mateus elabora uma excelente catequese para os judeus convertidos, destinatários preferenciais do seu evangelho. E faz uma narração em que praticamente todos os elementos têm um especial significado. Vale a pena acompanhar o seu precioso relato.
Um homem parte de viagem. (Mt 25, 14-30). Certamente teria razões sérias: Gosto pela aventura, cansaço das rotinas da vida, tentativas de alcançar novos benefícios, ou o desejo de mostrar uma faceta do seu coração: a confiança nos empregados e no seu agir responsável? Tudo aponta para esta última hipótese. Os dons entregues gratuitamente têm apenas em conta as capacidades dos servos, nem sequer as necessidades ou outras circunstâncias. São à medida de cada um. Sem exigir nada que a ultrapasse. Não pretende sobrecarregar ninguém, nem provocar cansaços estéreis. Nada de “burnout”. Mas uma excelente oportunidade para que as capacidades possam desenvolver-se, afirmar-se, atingir a maturidade. Que propósito sublime e beleza confiante!
A viagem demora o tempo suficiente para que os servos possam realizar o trabalho encomendado. Certamente que, entretanto, vários sentimentos o assaltam, antes de vir encontrar-se com eles. Mas a confiança na sua atitude responsável prevalecia. E que grande alegria se apoderou do seu coração quando ouvia o relato do que havia acontecido aos dois primeiros. Tinham conseguido o pleno: Os cinco multiplicaram-se por outros cinco; o mesmo acontecendo aos dois que alcançaram outros dois. O dono tem uma reacção curiosa, cheia de mensagem: Não reclama nada, mas tudo entrega de novo: as mais-valias e os talentos confiados. Com provas tão positivas, os servos podem desempenhar serviços maiores e saborear a alegria exuberante do seu senhor. Que momento tão consolador! Que desfecho tão surpreendente! Que apreço pela confiança serena e activa!
O mesmo não acontece com o que havia recebido o talento proporcional às suas capacidades e actua de acordo com as regras que conhece: Sabia que és severo; tive medo e salvaguardei o teu talento; aqui o tens. Mateus ao destacar as razões invocadas deixa a claro a força paralisante do medo, a asfixia das capacidades que provoca, a esterilidade da vida respaldada na segurança e na acomodação. Razões que podem iluminar muitas atitudes e comportamentos actuais, e, à maneira de “chicotada psicológica”, abanar consciências adormecidas. E o dono complacente aceita a medida indicada pelo servo medroso. As razões que acompanham a sua declaração visualizam as trevas do seu coração, a solidão em que se colocou, o choro da lamentação consentida. “Tudo isto revela o que impediu o servo de entrar numa relação de confiança”, que é um dos objectivos da parábola. (Vers Dimanche, nº 469).
Deus oferece-nos a possibilidade de viver já a sua alegria. Espera que correspondamos à confiança que tem em nós e cuidemos dos seus dons que enriquecem a nossa humanidade: Os da criação e das criaturas, os da saúde integral e da educação libertadora, os da solidariedade operativa e da caridade a toda a prova, os da celebração dos sacramentos e da participação na missa dominical, os da graça divina como presença revigorante das nossas forças peregrinas.
O Papa Francisco envia-nos uma mensagem especial para o “Dia Mundial dos Pobres” que celebramos, hoje. Dela retiramos este parágrafo persuasivo: “Benditas as mãos que se abrem para acolher os pobres e socorrê-los: são mãos que levam esperança. Benditas as mãos que superam toda a barreira de cultura, religião e nacionalidade, derramando óleo de consolação nas chagas da humanidade. Benditas as mãos que se abrem sem pedir nada em troca, sem «se» nem «mas», nem «talvez»: são mãos que fazem descer sobre os irmãos a bênção de Deus. (da mensagem do Papa Francisco para o dia Mundial dos Pobres, nº 5). Os dons de Deus estão nas nossas mãos!
Georgino Rocha
 

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

S. Jacinto: Cais dos pescadores



"O Executivo Municipal de Aveiro deliberou aprovar a abertura do concurso público para a empreitada do novo Cais dos Pescadores de São Jacinto, pelo preço base de 345.000€ (acrescidos de IVA) e um prazo de execução de 180 dias."

Li aqui
Foto da Comunidade Portuária do Porto de Aveiro


Nota: Permitam-me que realce a importância desta obra para benefício de quantos há muito tempo por ela esperavam. Todos sabemos da mais-valia que representa um cais bem localizado e equipado, proporcionando melhores condições para os que exercem uma profissão dura e de risco. 

Georgino Rocha - Discernir o que é melhor



Opção de divorciados recasados 

A experiência menos feliz do primeiro casamento exige certamente a quem opta por um segundo uma séria ponderação e uma grande maleabilidade para suavizar surpresas e ter garantias de acertar. Exigência prévia no início, mas também em toda a caminhada conjugal. Exigência mobilizadora de energias e capacidades que serão compensadas pela felicidade alcançada no futuro. Exigência que pode levar o novo casal a procurar ajuda junto de quem vive a mesma experiência ou de quem mantém com alegria serena e confiante a primeira opção matrimonial.
Tenho vindo a ler relatos vários e a acompanhar iniciativas diversas, a ler artigos de revista e livros que procuram abrir horizontes a este vasto campo onde o sonho se confronta com os limites da realidade e o desejo de acertar com as hipóteses de insucesso. E o casal em segundas núpcias sente-se inseguro, pressionado pela força da nova opção, “assaltado” pela memória do fracasso ocorrido, vigiado por um olhar estranho e acusatório, sobretudo de certos cristãos.
Partilho esta urgência pastoral numa reunião de preparação do encontro de casais do movimento das Equipas de Nossa Senhora. E surgem opiniões que alargam o horizonte da conversa. O amor conjugal está exposto a provocações frequentes e graves – diz um. E concretiza: A facilidade de contactos na rede virtual, a onda erotizada da opinião publicitada, o assédio em ambientes de trabalho, a fragilidade de convicções em relação ao amor e de certezas sobre a sua durabilidade. Adianta outro: A família tende a desestruturar-se, casais são impelidos a viver separados por longos períodos por afazeres profissionais, filhos são estimulados por surpreendentes solicitações e entregues à voracidade das paixões sem esteios de referência ética. E em jeito de quem prevê caminho a seguir, afirma: Temos de assumir começar por casa e procurar que o nosso testemunho seja irradiante e a nossa palavra respeitosa e convincente.
Faço minhas as observações apresentadas e sublinho a importância do testemunho e da palavra. Oxalá irradiem de tal modo que despertem nos jovens e nos divorciados recasados a estima pelo matrimónio sacramental e a vontade positiva de dar passos na escolha do que é melhor como exortava S. Paulo os cristãos de Filipos, exortação surgida num contexto determinado, mas agora muito actual e prática para iluminar as fases da ajuda pastoral a divorciados recasados. (Fl 1, 3-11).
“A Alegria do Amor”, do Papa Francisco, está ainda “em fase de assimilação” em Portugal, mas motiva já uma nova dinâmica pastoral perante os desafios das famílias, afirma D. Joaquim Mendes, presidente da Comissão Episcopal para o Laicado e a Família, no encontro dedicado à “Família e transformação social”; encontro realizado em Fátima a 21 de Setembro de 2017. Faz assim uma avaliação da atenção que os cristãos e seus responsáveis, tanto em dioceses como em paróquias e movimentos, têm dado a tão importante exortação apostólica.
Escolher o que é melhor é propósito de quem assume com honradez e valentia a vida e seus desafios; aspira sempre ao ideal e valoriza o passo possível; confiado nas razões fundadas na natureza e no esforço pessoal e, neste caso, conjugal, na possível ajuda dos familiares e amigos, na graça de Deus que não falha. Valorizar o passo possível desinstala, faz apreciar o bem alcançado, desejar prosseguir (as margens do possível frequentemente podem alargar-se) e fazer a experiência de que Deus está na caminhada em busca do melhor para a situação concreta, celebrar esta presença que abençoa e impulsiona a avançar. Escolher o melhor é sabedoria que o discernimento quer proporcionar. Como é urgente treinar esta arte quer a nível pessoal e familiar, quer a nível institucional e comunitário.
D. Manuel Clemente, no final da Assembleia do Episcopado a 16 de Novembro, propôs uma atitude fundamental a desenvolver: a de “acolhimento”, de “acompanhamento” e “discernimento” dos divorciados recasados, assinalando que “em grandíssimo número de casos” o matrimónio foi nulo. E sublinha que a possibilidade de readmissão destes católicos aos sacramentos, implica um itinerário "muito longo" e não é uma decisão “rápida, imediata, simples”. Trata-se de uma coisa séria”.
Os desafios da família constituem uma excelente oportunidade para relançar uma nova dinâmica pastoral. Demos as mãos. Há tanta iniciativa solta. Sejamos realistas. Há tanta reflexão genérica, fria e distante. Ousemos mais e melhor. Há capacidades adormecidas que esperam ser despertas.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

É urgente mudar a nossa relação com outros seres do Universo





TIMOTHY MORTON em entrevista ao PÚBLICO


Continuamos a destruir a Terra



«Ricardo Trigo, climatólogo da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, também é signatário do artigo e refere como alarmantes a diminuição da abundância espécies de vertebrados, o crescimento da população mundial, assim como o aumento dos gases com efeito de estufa e da temperatura global. “Agora não temos qualquer dúvida de que o aumento da temperatura nos últimos 30 ou 40 anos é em grande medida impulsionado pelos gases de efeito de estufa”, assinala. “Há cinco anos, nenhum climatólogo lhe dizia que as ondas de calor tinham uma componente das alterações climáticas. Agora posso dizer-lhe que as últimas grandes secas como a que temos agora e as de 2012 e a 2005 tiveram uma componente significativa das alterações climáticas. A probabilidade de ocorrerem já foi ampliada pelos gases com efeito de estufa e isso tem evoluído muito nos últimos anos.”»

Efeméride de 1908 – Dez quilómetros à hora!


14 de novembro 

«A folha oficial publicou uma portaria governamental que fixava em dez quilómetros à hora, dentro das povoações, e em trinta, fora das povoações, o máximo da velocidade para os automóveis. Por uma interessante estatística, vê-se que em Portugal existiam 840 automóveis, cabendo 21 ao Distrito de Aveiro (Litoral, 15-11-1938) – J.»

In "Calendário Histórico de Aveiro" 
de António Christo e João Gonçalves Gaspar

Nota: Eu sei que os tempos eram outros, que os automóveis não estavam tecnologicamente preparados para maiores velocidades, que as nossas estradas seriam muito más, com buracos e com curvas e contracurvas, etc., etc. Mesmo assim, só dez quilómetros à hora! Fica a curiosidade.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Andanças por Aveiro - 2


Aveiro é uma cidade bonita vista dos mais diversos lugares. De cada ângulo, por mais insólito que seja, é possível apreciar panoramas singulares e dificilmente imaginados  por quem vive ou visita a cidade dos canais. Estes amantes de paisagens amplas e diferentes escolheram, realmente, um telhado central. Rodando, veem a cidade e arredores na sua plenitude. Eu se pudesse fazia o mesmo.





O canal central de Aveiro tem presentemente um movimento como nunca vi. Os moliceiros ou aparentados não param com viagens que se multiplicam, porque não faltam turistas interessados em conhecer outros canais, outros recantos,  cada um com as suas curiosidades. 





As flores ficam sempre bem em qualquer sítio. A  Lita chamou a minha atenção para os "vasos" que as apresentam a quem passa. Nada mais nada menos que alcatruzes dos poços de rega que já desapareceram das nossas paisagens agrárias. O  inútil tornou-se útil. Ainda bem.


Os moliceiros já oferecem cicerones nas viagens pelos canais. Parto do princípio que estão preparados para isso. Se não é verdade, está mal. É que podem vender gato por lebre. E  turista enganado pode ser turista perdido.



Cortaram a cabeça a este cisne. Gostam? Eu não gosto nada.






domingo, 12 de novembro de 2017

Bento Domingues — Teologia da libertação ou libertação da teologia (1)



1. O séc. XX, quando se observam as persistentes lutas da teologia católica que o percorreram, mostrou que não conseguiu conviver com a herança autoritária do séc. XIX, traçada por Pio IX, pelo Vaticano I e pela enigmática infalibilidade pontifícia. Não vingou a ideia dos que julgavam que, a partir daquele momento, as expressões da fé ficavam adequadamente formuladas para enfrentar os tempos modernos. Os concílios eclesiásticos deixavam de ter razão de ser e os teólogos podiam ir para férias.
Não foi o que aconteceu. Essa ilusão esquecia que a verdadeira energia da fé cristã não paralisa as actividades cognitivas e afectivas do ser humano. Não é um calmante e muito menos uma anestesia. É um impulso vital e uma nova lucidez no coração do quotidiano. É do encontro da sua chama com os acontecimentos inéditos que nasce a co-agitação teológica e a luz para as suas práticas de libertação espiritual, cultural, económica, social e política. Ao respeitar e alimentar a originalidade de cada uma dessas dimensões da realidade, sempre multifacetada, o cristianismo manifesta a sua fidelidade ao céu e à terra.
Não se deve esquecer que a primeira metade do séc. XX foi constituída por um dos tempos mais inovadores sob o ponto de vista teológico. Essa inovação foi o fruto das novas formas de exegese bíblica, de redescobertas dos Padres da Igreja, da análise da história dos concílios ecuménicos, das formas desconhecidas da liturgia, em suma, do encontro com os testemunhos das fontes mais genuínas e muito ignoradas dos diversos percursos da fé cristã. Não eram visitas guiadas a um museu de antiguidades mortas. A descoberta da pluralidade viva e turbulenta do passado abria o caminho a novas experiências e movimentos.
As experiências ecuménicas, missionárias, pastorais e as do encontro com um mundo no qual as Igrejas já não mandavam, obrigaram a inteligência da fé a tornar-se mais interrogativa, mais inquieta, mais agitada pelas convulsões de duas grandes guerras mundiais. A teologia tinha de abandonar o mundo das abstracções e descer ao concreto, às realidades terrestres, humanas. As terras de missão já não ficavam longe. Mas a cegueira ideológica dos grandes senhores das instituições da Igreja, salvo fantásticas excepções, preferia condenar a dialogar.

2. Depois de tantas condenações romanas que atingiram os movimentos, as experiências inovadoras e os teólogos mais criativos e, quando muitos católicos pensavam que já não havia esperança na renovação da Igreja, foi eleito Papa, a 28 de Outubro de 1959, um homem nascido em 1881. Chamava-se Angello Roncalli. Depois da surpresa geral, julgou-se que era uma saída de emergência até se encontrar um guia seguro para tempos difíceis e complexos.
De facto, João XXIII conhecia muitos mundos, as peripécias internas da Igreja dos séculos XIX e XX e as suas dificuldades de relacionamento com o mundo contemporâneo. Não se apresentou com nenhum programa salvador. Ao fazer a barba, lembrou-se de convocar um concílio ecuménico, como gostava de dizer para ocultar a sua divina clarividência.
Não escreveu nenhuma linha da teologia da libertação, mas começou, nesse momento, a libertação da Igreja e a libertação da teologia no mundo actual. Lembro isto porque estamos confrontados com vários movimentos organizados para que a orientação da Igreja católica regresse aos tempos anteriores ao prodigioso Vaticano II. Também são activos em Portugal e, nomeadamente, em Fátima. Não toleram que o Papa Francisco, depois de um longo inverno, retome a primavera de João XXIII.

3. Estão a ser celebrados os 50 anos da Universidade Católica e da sua Faculdade de Teologia. Os meus parabéns!
Uma qualificada representação deslocou-se à Sé de Pedro. O Papa respondeu à saudação do Grão-Chanceler, cardeal Manuel Clemente, com uma incisiva interpelação e um apelo que nascem de uma interrogação que deve obrigar, professores e alunos, a um exame sério acerca da orientação que estão a seguir. Que procuram? Uma carreira ou uma maior capacidade de servir os mais pobres? [1]
"É justo que nos interroguemos: Como ajudamos os nossos alunos a não olhar um grau universitário como sinónimo de maior posição, sinónimo de mais dinheiro ou maior prestígio social? Não são sinónimos. Ajudamos a ver esta preparação como sinal de maior responsabilidade perante os problemas de hoje, perante o cuidado do mais pobre, perante o cuidado do meio ambiente? Não basta realizar análises, descrições da realidade; é necessário gerar espaços de verdadeira pesquisa, debates que gerem alternativas para os problemas de hoje. Como é necessário descer ao concreto!"
O Papa, na sua intervenção, parece que tem a obsessão de voltar sempre ao concreto: "Queria aqui lembrar o princípio da encarnação na pele do nosso povo. As suas perguntas ajudam-nos a questionar-nos; as suas batalhas, sonhos e preocupações possuem um valor hermenêutico que não podemos ignorar, se quisermos deveras levar a cabo o princípio da encarnação. O nosso Deus escolheu este caminho: encarnou-Se neste mundo, atravessado por conflitos, injustiças e violências, atravessado por esperanças e sonhos. Por conseguinte não temos outro lugar onde O procurar a não ser no nosso mundo concreto, no vosso Portugal concreto, nas vossas cidades e aldeias, no vosso povo". É aí que Ele está a salvar.
Bergoglio não se esqueceu de uma interrogação ainda mais global: para que existe a Universidade Católica? Que interesses serve?
"Por natureza e missão, sois universidade, isto é, abraçais o universo do saber no seu significado humano e divino, para garantir aquele olhar de universalidade sem o qual a razão, resignada com modelos parciais, renuncia à sua aspiração mais alta: a de buscar a verdade. À vista da grandeza do seu saber e do seu poder, a razão cede perante a pressão dos interesses e a atracção da utilidade, acabando por a reconhecer como seu último critério.
Mas, quando o ser humano se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, então a sua liberdade adoece. 'Neste sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum lúcido domínio de si [2]'”.
A teologia académica, em Portugal, não teve os problemas que enunciei no começo desta crónica. Esteve em jejum desde 1911 até 1968. Mas não é tudo. Voltarei a esta questão

Frei Bento Domingues no PÚIBLICO


[1] Discurso do Papa Francisco à comunidade da Universidade Católica Portuguesa por ocasião do 50º aniversário da sua instituição.
[2] Francisco, Laudato si’, 105

sábado, 11 de novembro de 2017

Notas do meu Diário - Dia de São Martinho com castanhas e vinho






Hoje celebra-se a festa litúrgica de São Martinho com o povo a saborear, se possível, castanhas e vinho. O santo benfeitor não ficará zangado por isso e eu, se puder, também hei de provar. Contudo, é bom conhecer, no mínimo, quem foi este santo, mais lembrado nesta época. Recordo, com muita saudade, as castanhas assadas, bem ou mal, nas escolas, no meio do recreio. Um bom molho de bicas, castanhas em cima, fogo ateado e espera ansiosa que a repartição entre todos se iniciasse, que ninguém podia ficar de fora. Os mais afoitos arriscavam-se a apanhar umas tantas castanhas que estouravam com o calor, quantas vezes por falta do tradicional golpe que era dado em cada uma.
Embora tardiamente, que não tive tempo para escrever esta nota antes, aqui ficam os meus votos de bom dia de São Martinho. Eu vou comer umas tantas...

Camões — Amor é fogo que arde sem se ver





Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente; 
é um contentamento descontente, 
é dor que desatina sem doer. 

É um não querer mais que bem querer; 
é um andar solitário entre a gente; 
é nunca contentar-se de contente; 
é um cuidar que se ganha em se perder. 

É querer estar preso por vontade; 
é servir a quem vence, o vencedor; 
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor 
nos corações humanos amizade, 
se tão contrário a si é o mesmo Amor? 

Luís de Camões

NOTA: A coleção de livros de bolso que o EXPRESSO está a oferecer dá-me a oportunidade de regressar a alguns clássicos, que não esqueço mas nem sempre releio, porque outras obras mais recentes me desafiam. Hoje é a vez de voltar a Camões com a satisfação de sempre. Na Contracapa há  um texto de Manuel Alegre retirado da apresentação desta obra, que tem por título "O livro mais actual da poesia portuguesa". 
Boas leituras.

Ares de Outono — Quando, Lídia, Vier o Nosso Outono


Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes.

Ricardo Reis, 
in "Odes"
(Heterónimo de Fernando Pessoa)

Dia Nacional do Mar — 16 de novembro



O Dia Nacional do Mar comemora-se no dia 16 de novembro - data à qual o Museu Marítimo de Ílhavo não poderia ficar indiferente, assinalando-a com várias iniciativas tanto para as famílias como para o público em geral, ao longo do dia 18, sábado. Esta é também a iniciativa que marca o encerramento das comemorações do 80.º aniversário do Museu Marítimo de Ílhavo. A tarde de sábado será pontuada por vários momentos chave, como a apresentação do livro "Traços de Construção Naval em Madeira", de António Marques da Silva, a entrega dos Prémios do 4.º Concurso de Modelismo Náutico do Museu Marítimo de Ílhavo, encerrando com uma visita especial à exposição “Invisível”, de Hermano Noronha, Alexandre Sampaio, Ricardo Raminhos, João Malaquias.

Ver programa aqui

Nota: Texto do MMI

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Anselmo Borges — A sida espiritual



Quarenta e três anos de democracia para que serviram? É uma pergunta que frequentemente me colocam. E eu tento responder.

1. Do ponto de vista formal, houve um bom caminho que se fez e a democracia está consolidada. Mesmo do ponto de vista da justiça social, há conquistas significativas. Mas nem tudo está bem. As pessoas deixaram-se estontear pelo "deus" dinheiro e temos a corrupção que se sabe. Há desconfiança em relação aos políticos, fundamentalmente por causa da corrupção e da cumplicidade entre política e negócios. Depois, porque se governa para as eleições, portanto, para o curto prazo, vão faltando as reformas estruturais, necessárias para não termos de viver em constante sobressalto, mesmo do ponto de vista económico-financeiro. Temo, quando ouço hoje muita gente dizer sobre os políticos: "São todos iguais, querem ir para o poder não porque se interessem por nós, mas por causa dos interesses deles." Aliás, a percentagem de abstenção nas eleições é já muito elevada. Terá de haver transparência na governação - veja-se o que se passa com a banca, Tancos, os incêndios...

2. Considero a actividade política uma actividade nobre, das mais nobres. Mas receio quando vejo, na época das eleições, um número quase sem fim de cidadãos a concorrer como candidatos. Desconfio de tanta competência e sobretudo continuo a não acreditar que a maior parte o faça por amor à causa pública, ao serviço do bem comum. Como já aqui escrevi: "Que interesses, que vantagens, que compadrios, que cumplicidades, que privilégios, que benesses, que vaidades os movem?" Se os políticos quisessem realmente saber o que os outros cidadãos pensam deles, haveria um teste poderoso, embora saiba ser perigoso e talvez não aplicável: nas eleições, os votos em branco traduzir-se-iam, segundo a lei da proporção, em cadeiras vazias no Parlamento. Seria o "partido da cadeira vazia". Poupava-se dinheiro e retórica de sofistas, inútil e manhosa. Votar seria obrigatório, mas, em vez de sanções para os cidadãos que não votassem, os cidadãos tinham a possibilidade do voto em branco, com esta consequência.
De qualquer forma, é necessário reformar o Estado e a política, a começar por cima. Corte-se nos privilégios de tantos, reduza-se o excesso de mordomias, siga-se, sobretudo, a famosa "navalha de Ockam": "Não multiplicar os entes sem necessidade", por exemplo, não se aumente o número de funcionários só para dar a impressão de que diminui a taxa do desemprego.

3. Concretizemos mais.

Apesar dos bons resultados quanto aos últimos orçamentos, aproveitando aliás, mesmo que se não queira admitir, das políticas que vinham de trás, não se pode caminhar agora para orçamentos eleitoralistas, esquecendo a dívida. Há sempre aquela pergunta fatal: o que leva tantos a procurar o poder? Respondeu quem sabe, Henry Kissinger: "O poder é o maior afrodisíaco." Mas não se venha iludir os cidadãos, pois eles sabem, por exemplo, do atraso do Ministério das Finanças em desbloquear verba para mais cirurgias no IPO de Lisboa. Para lá disso, também sabem das cativações e que em 2016 morreram 2605 portugueses à espera de uma cirurgia - "uma coisa que é assustadora e que, em circunstâncias normais, devia ter causado um terramoto (mas os fogos tiraram toda a normalidade aos nossos dias)", escreveu Pedro Ivo Carvalho. Não é bom pretender que os cidadãos acreditem que a austeridade acabou, pois eles sabem das "engenharias financeiras" e dos impostos e de como os impostos indirectos são os mais injustos, porque são cegos e atingem a todos.
O que se passou e passa com Tancos é inqualificável.
Sobre as desgraças continuadas quanto à banca, só se pode exigir que se ponha cobro à situação e que se faça justiça. Haja transparência! Há uma palavra do Evangelho, sempre viva e actual: "A verdade libertar-vos-á."
Que mal é que há em reconhecer que o Estado falhou clamorosamente nos incêndios, sobretudo quando se pensa no aviso que vinha de Pedrógão? Os prejuízos podem alcançar os três mil milhões de euros. Evidentemente, os 110 mortos não têm preço e a angústia mortal de tantos e tantas que ficaram sem os seus entes queridos e com a vida toda tolhida e destroçada serão um eterno peso na nossa consciência. A atitude do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, foi e continua a ser exemplar.

4. Diz-se frequentemente: "Já não há valores." Não penso isso. O que se passa é que se inverteu a pirâmide dos valores e corre-se o risco de o valor dinheiro se tornar o valor e a medida de todos os valores. Onde está a honra, a dignidade, o valor da palavra dada, a solidariedade, a família como esteio que segura os valores, a escola que forma pessoas íntegras e, assim, bons profissionais, alguns princípios orientadores de humanidade e para a humanidade?
No que mais temo está também que, depois de terem caído "princípios" inaceitáveis na sua rigidez, reste apenas a imediatidade, a auto-satisfação de cada um a seu bel-prazer, e, consequentemente, a desorientação, no sem-sentido da intranscendência. O que infecta esta nossa sociedade é o que chamo a sida espiritual, que derruba a capacidade de defesa face à mentira, à desonra, à indignidade, à corrupção, à falta de valores na sua hierarquia autêntica. E não vejo que sejamos mais felizes. Os próprios jovens, a quem tudo é dado materialmente, educados na anomia facilitista e no "dedar" constante e caótico do smartphone e não para o estudo sério e a capacidade e a alegria de superar obstáculos, nas batalhas pelo bem e na conquista do melhor, que é ser si mesmo na autenticidade e na superação de si, acabam mergulhados na dor da derrota e da desorientação.


Anselmo Borges no DN 

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

Georgino Rocha — O futuro definitivo será uma festa. Prepara-a


Jesus quer abrir os horizontes do futuro definitivo e mostrar a sua relação com a vida presente. Tem consigo os discípulos e está na parte final dos seus ensinamentos. Deixa o Templo e retira-se para o Monte das Oliveiras. Daí contempla a cidade e, em visão antecipada, vê o que lhe vai acontecer: Não ficará pedra sobre pedra. Dos escombros, surgirá uma situação nova.
Recorre, como bom mestre, a exemplos da vida concreta, acessíveis à compreensão de todos. Hoje, serve-se da realização das bodas de casamento, muito apreciadas pelos judeus, sobretudo pelos noivos e seus amigos. E descreve-a em forma de parábola, tendo como horizonte a história da salvação ou seja a relação que Deus estabelece com a humanidade em ordem a que esta possa experienciar o amor com que é amada. Gratuitamente. E não por méritos alcançados, créditos acumulados.
Proporciona assim aos fariseus, seus adversários intransigentes, um conjunto de elementos que os confrontam com a presunção de estarem salvos por serem quem são, observarem certos costumes e fazerem certas práticas religiosas. Eles, como as jovens da narrativa, são convidados, a iniciativa vem de quem promove a festa e quer vê-los a participar com a luz da alegria.
Mateus, (Mt 25, 1-13), o narrador que escreve a parábola uns bons anos mais tarde, dá-lhe outra acentuação. Face ao que estava a acontecer – a demora em o Senhor chegar -, insiste na paciente espera, na vigilante atenção, no esforçado cuidado em ordem a que os cristãos estejam preparados para o acolhimento indispensável, para percorrerem os caminhos da vida na sua companhia, para passarem a porta de entrada na sala do festim e participarem na boda do amor nupcial.
Jesus quer dizer-nos claramente que o nosso futuro será uma festa e não uma tortura; uma comunhão e não uma solidão; uma celebração da vida plena e não um lamento de desolação e ruína. Deus estará connosco e em nós. E também com os outros e nos outros. Seremos a sua família. Com Jesus, o primogénito, o Senhor. Com Maria, a mulher do sim pleno e da entrega coerente. Com uma multidão de amigos que serão a nossa surpresa agradável pois partilham da nossa feliz herança.
O futuro é como a árvore que está contida na semente. Será o desabrochar do presente transformado pelo amor sincero. A transformação é obra de Deus. A semente e o seu desabrochar, as raízes e o seu alimento são connosco. Constituem a grande aventura da vida, a nossa maior responsabilidade. É agora. Depois, fechada a porta pela morte, já não haverá mais possibilidades. É no tempo presente. Depois, aberta a porta pela morte, será a visão dos frutos da semente cuidada com desvelo e abençoada por Deus Pai, o encanto do coração humano recompensado nos esforços despendidos, a alegria de saborear a surpresa preparada.
Jesus visualiza a sua mensagem nas dez raparigas convidadas para a festa nupcial. Enquanto esperam que o noivo chegue, entretém-se divertidamente. Cansam-se e começam a sentir sono. Adormecem. Com estes pormenores, a parábola faz um retrato da vida de muitos humanos. Distraídos como andam, não advertem no que vai acontecendo. Indiferentes, isolam-se nas ocupações mais rotineiras e banais. Absorvidos pelo que dá gosto, desconsideram tudo o que exige sobriedade e abnegação por um bem maior. E como as jovens estão convidados para a festa da vida integral, plena. Mas esquecem-se.
O noivo faz-se esperar. Quer proporcionar um tempo de paciência confiante e de cuidado vigilante. Ou seja, um tempo de provação da verdade do amor. A chegada é surpreendente. A alegria contida, agora torna-se exuberante. Todas se afadigam para a recepção. É o momento da grande verificação. Os recursos são avaliados. Para umas, o cálculo havia sido errado. E falta o azeite para a candeia iluminar o desfilar do cortejo que se fazia durante noite. E o azeite constitui o sinal visível da relação pessoal com o noivo. Não pode ser pedido, emprestado ou alienado. Seria a perda da identidade própria, a despersonalização da relação reduzida ao anonimato.
A prevenção do azeite da nossa candeia faz-se a partir da mais tenra idade: gestos educados e respostas civilizadas, cultivo de sentimentos positivos e transmissão de valores, atenção lúcida à realidade envolvente e mais distante, escuta diligente da voz da consciência e esforço por lhe dar seguimento, discernindo o que é justo e humaniza, o que edifica os outros e ajuda a construir o bem comum. A luz da nossa candeia brilha com nova intensidade quando acolhe o dom de Deus, simbolizada no Círio Pascal, Jesus ressuscitado que franqueou as portas da morte e abriu os horizontes da vida ressuscitada.
Ao serviço desta abertura de horizontes da vida e da história, está a instituição dos Seminários que realiza, de 12 a 19 de Novembro, a habitual semana de oração e de pedido de colaboração aos fieis. É seu objectivo principal promover “a formação dos futuros pastores da Igreja”. A Comissão Episcopal das Vocações e Ministérios fez-nos chegar uma Nota Pastoral de que destacamos alguns parágrafos.
“O Seminário é tempo de estar com Jesus e de aprender com Ele a viver no meio das realidades do mundo; é tempo para exercitar a escuta e aprofundar o discernimento acerca da vontade de Deus; é tempo de cultivar um coração dócil, livre e generoso para o serviço de Deus e dos irmãos; é tempo para descobrir o estilo mariano da evangelização que valoriza a proximidade, a ternura e o afeto”. E vem o apelo: Ajudemos os nossos Seminários.
Está ao nosso alcance, fazer da vida uma festa, iluminada pela fé cristã e pelo convívio dos irmãos. Acredita. Prepara o futuro definitivo com opções razoáveis no presente.

Georgino Rocha

Efeméride — Stella Mariz inaugura edifício


 1985 – 10 de novembro 

Na freguesia da Gafanha da Nazaré, a Obra do Apostolado do Mar inaugurou a primeira fase do edifício do Clube «Stella Maris», para acolhimento dos marítimos que demandam o porto de Aveiro ou nele se ocupam em quaisquer profissões (Correio do Vouga, 8 e 15-11-1985) – J.

Calendário Histórico de Aveiro 
de António Christo 
e João Gonçalves Gaspar

NOTA: O Clube Stella Maris, da Obra do Apostolado do Mar, não resistiu à evolução dos tempos e já há muito fechou portas, enquanto instituição vocacionada para o apoio espiritual e social aos homens do mar e suas famílias. As circunstâncias, em especial a instalação dos Portos Comercial e de Pesca Costeira junto ao Jardim Oudinot, ditaram a sentença. Outros tempos, porventura com novas exigências sociais e pastorais, pedirão novas respostas.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Tolentino Mendonça abre as páginas de um livro singular


Sinopse

Há um momento em que percebemos que são as perguntas (e não as respostas) que nos deixam mais perto do sentido. Sabemos que as respostas são úteis, sim, e que precisamos delas para continuar a viver - mas a vida transforma as próprias respostas em perguntas ainda maiores.
A espiritualidade tem de ser uma oportunidade para o reencontro com interrogações fundamentais, mesmo se desacreditadas num quotidiano que nos dispersa de forma cada vez mais absorvente: «Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? A quem pertenço? Por quem ou por que coisa posso ser salvo?»
Talvez tenhamos arrumado demasiado depressa a religião no lado das respostas - e esquecido as grandes perguntas que ela nunca deixou de nos dirigir.
Guiados por um dos mais importantes ensaístas portugueses de hoje - um pensador com grande experiência de escuta dos outros -, em O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas entramos, mais do que numa viagem de regresso, num itinerário de reinvenção de nós mesmos.
Na senda daquilo a que já nos habituou em obras anteriores, tanto de reflexão teológica e filosófica como de poesia, José Tolentino Mendonça abre aqui as páginas de um livro singular e corajoso: o das perguntas sobre a nossa vida.

Nota: Texto da Quetzal 

NOTA: Ainda não li o mais recente livro de José Tolentino Mendonça, um autor que muito aprecio, desde há muito tempo. Depois de ler "Baldios", a primeira obra que me chegou às mãos deste padre, poeta, cronista  e ensaísta, entre outras vertentes da cultura, passei a senti-lo como escritor com algo para transmitir de bastante original. "O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas" deverá ser a próxima aquisição. 

“Magusto à Moda Antiga” para celebrar o São Martinho


Como manda a tradição, a Câmara Municipal de Ílhavo vai realizar, no próximo dia 13 de novembro, segunda-feira,  pelas 14h30, no Fórum Municipal da Maior Idade, o tradicional magusto com todos os Clubes Seniores do Município de Ílhavo.
Os utentes do Espaço Sénior da Santa Casa da Misericórdia de Ílhavo, do Espaço Convívio da Junta de Freguesia da Gafanha da Nazaré, do Espaço Convívio da Obra da Providência e dos Espaços Maior Idade da Câmara Municipal de Ílhavo vão reunir-se à volta da fogueira e das castanhas quentinhas, no Fórum Municipal da Maior Idade, onde não faltarão outras iguarias da época num lanche partilhado com muita animação e convívio.
O Fórum Municipal da Maior Idade acolhe, mensalmente, 1.600 utilizadores em diferentes iniciativas que promovem o envelhecimento ativo, sendo esta uma excelente ocasião para apresentar mais uma criação dos Espaços Maior Idade, a Faneca Natalícia 2017, contando com a presença da nova Vereadora da Maior Idade, Fátima Teles.

Fonte: Texto e foto da CMI

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Ares de Outono - Ermida da Senhora da Saúde





O frio e o vento não deram para mais. Senti hoje, verdadeiramente, os ares de outono, um outono incomodativo. Mesmo assim, não resisti a registar a velha ermida da Senhora da Saúde. Igreja pequenina, acolhedora e humilde dos meus tempos de juventude. Ao lado, a nova igreja paroquial com a arte de Jeremias Bandarra no interior a condizer com a traça moderna do templo. E a torre sineira, imponente, a impor a sua sombra, real e simbólica, à velha ermida de tempos idos, não destoando do conjunto. Pelo contrário, entendo que foi uma bonita opção.

MaDonA — Dia Internacional da Preguiça - 7 de novembro

Preguiça

Bicho-Preguiça

Curiosidades sobre o Bicho-preguiça


Dizem que a preguiça é a mãe de todos os vícios? Onde está a igualdade de género?

“Ai que prazer 
Não cumprir um dever, 
Ter um livro para ler 
E não fazer!”

Fernando Pessoa, 
não pretendia exortar à preguiça, mas a um sentimento de pura liberdade.

Apesar de todas as segundas-feiras parecerem o dia da preguiça, a verdade é que existe um dia especial para o celebrar. Aproveitar o dia para explorar a arte de não fazer nada, o "dolce far niente", que os Italianos criaram e transmitiram ao mundo .
A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda. Pode subentender um processo criativo.
A preguiça crónica pode ser preocupante e indício de algum transtorto grave. Se se tratar de uma “preguicite aguda”, é tão passageira como uma faringite, sinusite ou nevrite, tratável com um chá de pau de marmeleiro, na pedagogia dos nossos pais! Hoje, os psicólogos recomendam mezinhas mais suaves, sem recurso a medidas dráticas, que possam machucar as adoráveis criancinhas...
As pessoas ditas preguiçosas tendem a dormir sesta com alguma frequência. Estas têm o poder de reduzir a pressão sanguínea, melhorar a saúde cardiovascular e reduzir significativamente o stress – tudo coisas positivas para o bem-estar e a saúde em geral.
Foram importadas dos “nuestros hermanos”que fizeram uma invenção genial – “La siesta”. Os povos latinos, sempre, na vanguarda do descanso. Preguiça é o nome de um mamífero, cujo nome advém do metabolismo muito lento do seu organismo, responsável pelos seus movimentos extremamente lentos. É um animal de pelos longos, que vive na copa das árvores de florestas tropicais desde a América Central até o norte da Argentina.
De hábitos solitários, o preguiça tem, como defesa, a camuflagem e as garras. Para se alimentar, utiliza-se de "dentes" que se apresentam em forma de uma pequena serra. É herbívoro, tem hábitos alimentares restritos e dorme cerca de catorze horas por dia,
(Que inveja!) também pendurado nas árvores. Na reprodução, dá apenas uma cria, e apenas a fêmea cuida do filhote. Um pai preguiçoso, seguido por muitos humanos. A mãe é que paga as favas todas! Reproduz-se, como tudo o que faz, na copa das árvores. Raramente desce ao chão, apenas aproximadamente a cada sete dias para fazer as suas necessidades fisiológicas. Quer manter a casa limpa!
Um hino à preguiça!

Maria Donzília  Almeida

NOTA: Por dificuldades técnicas, só hoje me foi possível editar esta mensagem da minha amiga e colaboradora Maria Donzília. Apresento as minhas desculpas à autora e aos seus e meus leitores.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Igreja permite que padres continuem em funções depois de assumirem paternidade

P.e Giselo Andrade


Está a dar que falar o caso de um padre da Madeira, Giselo Andrade, que assumiu, recentemente, a paternidade de uma menina. O caso de padres que têm ou tiveram filhos não é inédito. Sempre os houve e sempre os haverá, apesar de terem assumido, como adultos responsáveis, a condição de celibatários, norma da Igreja católica estabelecida há séculos. Há muito que se defende que o celibato devia ser opcional e não obrigatório. Não me repugna nada aceitar a livre escolha dos candidatos ao presbiterado. Mas também sei que na Igreja católica as alterações às normas, mesmo que não tenham fundamento bíblico, não acontecem de um dia para o outro. Nas demais Igrejas cristãs, os presbíteros podem ser casados, o mesmo acontecendo na Igreja católica do oriente. De qualquer forma, penso que todos somos pecadores (Quem não é que atire a primeira pedra), razão por que não vejo mal nenhum em o padre Giselo Andrade continuar a exercer o seu ministério, sem fugir, covardemente, às suas responsabilidades paternas. Claro é, contudo, que não estará em condições de constituir família.

Para um mais completo esclarecimento ler o texto publicado hoje no Diário de Notícias

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Pela Positiva – Uma curiosidade com 11 anos de idade


Blog do anterior director do Correio do Vouga 

“O meu propósito, neste espaço, situa-se na linha dos que apostam, no dia-a-dia, num mundo muito melhor” afirma Fernando Martins

Os blogues foram das melhores coisas que aconteceram à e na Internet. Muito mais interessantes que a maioria dos sites (ou sítios), muito mais fáceis de actualizar, muito mais virados para o interesse dos leitores e dos autores, muito mais actuais, criativos e úteis.
O Correio do Vouga começa hoje a divulgar alguns, e nada melhor para começar do que o blog Pela Positiva, de Fernando Martins, o anterior director deste jornal.
Mas antes, para quem não é iniciado nestas lides, convém informar que um blog é uma espécie de diário na Internet, que todos os dias (ou quase) o autor utiliza, pois o modo como se constrói e mantém o blog é atraente e fácil. Há blogues políticos, culturais, religiosos ou amorosos, individuais ou colectivos, de palavras e de imagens, mais ou menos artísticos, introspectivos ou interventivos, fechados ou abertos (quando o leitor pode comentar), etc.
A origem do nome blog reside nas palavras inglesas web log (que poderíamos traduzir como “notas na teia”, isto é, na Internet), embora alguns prefiram dizer que vem de we blog (nós “blogamos”).
O blog de Fernando Martins, como o próprio nome indica, tem um tom positivo. Diz o autor, logo no primeiro “post” (assim se chama cada uma das entradas do blog): “O meu propósito, a partir de hoje e neste espaço, situa-se na linha dos que apostam, no dia-a-dia, num mundo muito melhor. Não simplesmente pelo protesto, que será sempre a via mais fácil e menos estimulante, mas fundamentalmente pela defesa do bem, do belo, dos afectos, em suma, dos valores que enformam a nossa civilização.
Pela Positiva vai ser o meu lema de todos os dias, quer na análise dos mais diversos acontecimentos, quer pela divulgação do que vou lendo, quer pela defesa do que vou reflectindo, quer, ainda, pela partilha de gestos, porventura ignorados ou marginalizados, que são matriz de uma sociedade mais justa e mais fraterna.
De bom grado se aceitam sugestões, desde que venham pela positiva”.
Para se ter uma ideia do que se pode encontrar neste blog, aqui ficam os títulos dos três últimos “posts” na altura da escrita deste artigo: “Câmara de Ílhavo atribui bolsas de estudo”, “Adopte um idoso” e “Solidariedadade com o sudeste asiático”. Belas imagens, por vezes de carácter religioso, textos do Papa e poemas de Natal são outras das pérolas que “Pela Positiva” oferece ao leitor.

J.P.F.

O Blog pode ser consultado em


Texto publicado por Jorge Pires Ferreira em 3 de abril de 2006 no Correio do Vouga

“100 Anos de Usos e Costumes em Extinção”


«No espaço da Comunidade Portuária de Aveiro, transmitido quinzenalmente na Rádio Voz da Ria, o destaque vai, nesta edição, para o trabalho de um escultor de Aveiro.
Ao longo das últimas duas décadas, Afonso Henrique retratou os usos e costumes antigos do País, através de 80 figuras típicas, trabalhadas em grés policromado.
“100 Anos de Usos e Costumes em Extinção” é o título da mostra que o escultor quer expor de Norte a Sul de Portugal.»

Ouvir entrevista na Rádio Voz da Ria,  divulgada pela Comunidade Portuária de Aveiro

Figueira da Foz — Marina


Já não vou à Figueira da Foz há meses, mas não me saem da cabeça imagens belíssima daquela famosa estância balnear, que outrora acolhia, com pompa e circunstância, a aristocracia de título e de dinheiro. Mas também artistas que por ali andavam a banhos na época própria. 
A atual marina merece-me sempre uma atenção especial, tanto pelos encantos dos barcos ancorados como pelos seus tripulantes, aventureiros de ocasião ou, quiçá, de profissão. De modo que, quando vou à Figueira da Foz, faço daquele local um espaço de sonho, sobretudo quando ponho a mim mesmo a questão: Por que razão, eu, que sou de alma e corpo um homem de mar e maresias, nunca me arrisquei a entrar num cruzeiro para uma viagem que ficasse para sempre na minha história de vida? 

domingo, 5 de novembro de 2017

Bento Domingues — A ignorância não é um dever



1. Lutero não passou por Portugal. Na revista Brotéria, de Outubro, tentei explicar porque lhe negaram o passaporte. Apesar disso, de vez em quando, surgem acontecimentos que levam os meios de comunicação a lembrar que existe uma coisa muito antiga chamada Bíblia, que ele próprio traduziu para alemão. Agora parece que foi invocada, juntamente com o código penal de 1886, pelos juízes Neto Moura e Maria Luísa Arantes, para atenuar um crime horroroso contra uma mulher adúltera.
Não admira, dizia-me um leitor de Saramago. A Bíblia está cheia de histórias escandalosas e de maus exemplos. O diabo não precisa de ser muito pior do que um deus que mata e manda matar. Esse livro parece escrito por um bipolar: passa facilmente do sublime ao detestável, por vezes no mesmo salmo. No entanto, cuidadosamente encadernado fica bem numa sala, ainda que pouco frequente numa casa portuguesa. Entre as dificuldades em ler e interpretar esses textos antigos figura uma insistente ignorância ou esquecimento: a Bíblia não é um livro!
Habituados, como estamos, a ver as Sagradas Escrituras cristãs num só volume e a dar-lhes um nome no singular, a Bíblia, somos levados a imaginar que é uma obra que um autor divino escreveu, de fio-a-pavio, mas com mais heterónimos do que Fernando Pessoa. 
Na verdade, não se trata de um livro, mas de uma biblioteca formada por 73 ou 74 obras, segundo o cânone da Igreja católica, e 66, segundo o cânone das Igrejas reformadas. Foi escrita ao longo de vários séculos em diversos contextos geográficos, sociais e culturais.
Sem poder entrar aqui em pormenores, convém lembrar o seguinte: quase dois terços dos livros da Bíblia cristã são comuns ao cristianismo e ao judaísmo rabínico, herdeiro imediato das escrituras do judaísmo antigo. Na verdade, o Antigo Testamento (AT) católico é mais vasto e variado do que o TaNak e o AT das Igrejas reformadas que adoptaram o cânone judaico. A escrita dos livros do AT católico durou cerca de um milénio. Teve como quadro essencial a Palestina. É possível que alguns livros tenham sido escritos, em parte, na Babilónia e outros no Egipto (em Alexandria).
A exegese histórico-crítica mostrou que figuram no AT diferentes géneros literários e temas que são documentados nas outras literaturas próximo-orientais do primeiro milénio a.C., em particular, nas literaturas dos demais povos semitas [1].

2. Os juízes, se queriam referir-se à relação de homens e mulheres na Bíblia, teriam de se aconselhar com o trabalho de investigação e de militância das feministas que reexaminam não só a própria Bíblia, mas também a interpretação que os homens fazem dela, tentando, muitas vezes, justificar e perpetuar uma dominação ancestral, própria de sociedades patriarcais. A mulher era propriedade do marido; a virgem, antes do noivado, propriedade do pai. O adultério da mulher e a defloração de uma rapariga eram, antes de mais, um atentado contra o direito de propriedade [2].
A exegese bíblica feminista assume-se como instrumento de luta pela igualdade social. O seu objectivo expressa-se em termos de emancipação ou de libertação das mulheres. Desse ponto de vista, a leitura feminista da Bíblia é comparada e, em parte, comparável ao trabalho da Teologia da Libertação.
Contrariamente ao que às vezes se afirma, não foi a Bíblia que deu origem à subordinação das mulheres na civilização ocidental. A subordinação era um traço das civilizações europeias antes da chegada da Bíblia. Essas civilizações tinham esse traço em comum com as civilizações do Próximo Oriente de que a Bíblia é uma expressão. O que a Bíblia fez foi dar a essa prática a sua legitimação religiosa.
Sendo fruto da civilização ocidental, o próprio feminismo é herdeiro da mesma Bíblia que deu caução religiosa à supremacia dos homens sobre as mulheres. Por isso, é natural que a Bíblia ocupe um lugar muito importante nos estudos feministas, mas as mulheres ainda estão longe da paridade com os homens. Na Igreja Católica, intérprete autorizada da Bíblia, a hierarquia continua a ser formada só por homens e, além disso, celibatários [3].
O NT não legitima as atitudes dominadoras do AT em relação às mulheres. Pelo contrário, elas estão incluídas no espantoso universalismo cristão, sublinhado por Paulo: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” [4]. No Evangelho de Marcos, mostra-se que o homem pode ser adúltero contra a mulher. Como nota Frederico Lourenço, trata-se de “um desenvolvimento notável rumo à igualdade de género” [5].
Quanto à atitude de Jesus em relação ao apedrejamento de uma mulher apanhada em adultério, aconselho a leitura das admiráveis observações do mesmo autor ao texto atribuído ao evangelista João [6].
Se houve mulheres que se emanciparam para servir o projecto de Jesus, é porque esse projecto as incluía. O Ressuscitado encarregou-as de evangelizar os próprios apóstolos. Daí que a Maria Madalena tivesse sido designada como Apóstola dos Apóstolos.

3. Frederico Lourenço entregou-se a um empreendimento que julguei impossível, quando foi anunciado: traduzir, do texto grego, o conjunto da Bíblia, tradicionalmente conhecido pelo nome de Septuaginta, com apresentação, introdução e notas dos vários livros. Sobre a significação, a originalidade e as explicações acerca da Bíblia Grega, o tradutor encarregou-se de nos elucidar logo no Vol. I, consagrado aos Quatro Evangelhos, em 2016. Em 2017, surgiram o Vol. II, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, e o Vol. III, Os Livros Proféticos. Este, em Outubro. É o segundo acontecimento mais importante do ano para todos os que julgam que a ignorância do mundo bíblico não é obrigatória.
Francolino Gonçalves, O.P., morreu a 15 de Junho deste ano, na Escola Bíblica de Jerusalém, na qual viveu, investigou e ensinou, durante mais de 40 anos. Segundo alguns confrades, sofreu muito por não poder continuar as investigações do AT, que tinha em mãos, especialmente do universo profético, bíblico e extra bíblico, de que era um reconhecido especialista. Tenho muita pena que ele não pudesse acompanhar a obra impressionante de Frederico Lourenço, que lhe daria grande alegria.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO

[1] Para as informações fundamentais sobre os mundos em que se formou e desenvolveu essa biblioteca, ver o amplo e rigoroso estudo de Francolino J. Gonçalves, Mundos bíblicos, Cadernos ISTA, n.º 18, 2005, pp 7-34.
[2] Ex 20,14; 22,15-16; Lv 20,10; Dt 5,21; 22, 22-29; Ez 16, 38-40.
[3] Cf. Francolino J. Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Bíblica Pontifícia, As mulheres na Bíblia, Cadernos ISTA, n.21 (2008), pp 109-158
[4] Gal 3, 25-28
[5] Mc 10, 1-12 e nota ao v. 11.
[6] Jo 8, 1-11; cf. Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. I, pp.357-360

sábado, 4 de novembro de 2017

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