domingo, 30 de julho de 2017

Bento Domingues — Jesus não gostava de broa? (2)


1. Vivemos, hoje, um momento de extraordinárias possibilidades na Igreja Católica e o Papa Francisco é, a muitos títulos, uma bênção mundial.
Os participantes no G20, em Hamburgo, nos dias 7 e 8 de Julho, tinham um tema: “Dar forma a um mundo interligado.” Na sua mensagem, o Bispo de Roma lembrou quatro princípios de acção, recolhidos da sabedoria multissecular, para a construção de sociedades fraternas, justas e pacíficas: o tempo é superior ao espaço; a unidade prevalece sobre o conflito; a realidade é mais importante do que a ideia; o todo é superior às partes.
Já tinha assumido essa sabedoria no seu programa pastoral Evangelii gaudium, pois a Igreja não deve aprender apenas na escola da Bíblia e das suas tradições, mas na de todos os povos e culturas, do passado e do presente. Para poder ser “mãe e mestra”, tem de ser filha e aluna atenta a todos os mundos. Antes de falar é necessário ouvir, como indica o ritual do Baptismo.
Na sua mensagem aos mais ricos e poderosos, Bergoglio abordou cada um desses temas de forma extremamente rigorosa e concreta, mas sempre com um objectivo muito preciso: dar prioridade absoluta aos pobres, aos refugiados, aos sofredores, aos deslocados e aos excluídos, sem distinção de nação, raça, religião ou cultura e rejeitar os conflitos armados.
Possibilidades semelhantes tinham sido abertas pelo Papa João XXIII, ao convocar o concílio Vaticano II (1962-1965), uma espantosa Primavera traída por algo que ainda hoje é inquietante: o adiamento da reforma das mediações concretas e a sua substituição por remendos de pano velho e irrecuperável.
A decepção criou gerações de católicos decepcionados, “não praticantes”, periféricos e um catolicismo do abandono da Eucaristia, cuja gravidade está ainda longe de ser reconhecida. Pela longa cegueira e medo de se tocar na Cúria, foi impedida a reforma radical dos ministérios ordenados que continua a ser uma urgência adiada.
Foi-se pronto a impedir a ordenação das mulheres, invocando razões teológicas ininteligíveis. Para os homens casados, dizem que não há nenhum obstáculo teológico, mas o resultado é o mesmo. Como o actual modelo de acesso a esses serviços está falido, os dons ministeriais de serviço sacramental da Igreja não têm quem os possa receber.
Em várias dioceses, o clero das Congregações religiosas vai procurando tapar o sol com a peneira, traindo a sua vocação específica. Certas Congregações femininas, multiplicando retiros e cursos de formação, ao rejeitarem as transformações das suas estruturas, estão em progressiva e inútil agonia.

2. A Igreja Católica não pode prescindir das mediações sacramentais e litúrgicas. Fazem parte das celebrações existenciais da Fé. O modo como celebra não é indiferente. Celebrar mal é pior do que não celebrar: fomenta alergias inúteis. O domingo, na linguagem cristã, não pertence ao “fim de semana”, mas à grande festa do seu primeiro dia. Nasceu como possibilidade, muito bela, de rejuvenescer e transformar a vida, resistindo às tendências negativistas e niilistas.
A religião ética é uma forma de resistência à alienação e ao pessimismo. É um protesto para abrir caminhos na floresta dos enganos. Por isso, a experiência da finitude é caminho de abertura à transcendência, que se exprime, sobretudo, na linguagem simbólica de gestos e palavras.

3. Tomás de Aquino, na primeira fase do seu ensino, estava marcado por uma concepção dos Sacramentos como causas da graça. Na Suma Teológica abandonou essa perspectiva e situou os Sacramentos no mundo da simbologia. São essencialmente signos, sensíveis, terrestres da graça actuante de Cristo. É uma mudança radical que ainda hoje está longe de ser assumida em todas as consequências. O primeiro cuidado com a sua celebração não é a fidelidade às rúbricas de um ritual, mas a realização de uma festa significativa da Fé pelo envolvimento de todos os participantes, mulheres e homens, grandes e pequenos.
É tríplice a sua significação: remetem para todo o percurso de Jesus Cristo até ao dom do Espírito Santo à Igreja, mas não são uma romagem de saudade, não fixam a comunidade naquele tempo. Cristo ressuscitado não pode ser amputado da sua vida terrestre, mas é celebrado como presença actual e transformante da comunidade, abrindo-lhe um futuro de esperança.
Seria engano ver nesta estrutura simbólica — causam o que significam — apenas actos de Cristo, como um automatismo ritual. Não se pode esquecer a correlação íntima entre essa actuação e as experiências de vida da assembleia celebrante. Estas são essenciais ao acontecimento sacramental e precisam de ter expressão pública.
Dizer que foi Cristo que instituiu os sacramentos e, especialmente, a Eucaristia, não se pode pensar como se ainda estivéssemos no mundo cultural da época de Jesus. Pensar dessa maneira é amputar o cristianismo da sua significação universal e da sua capacidade de inculturação em todos os povos e culturas. Quem, no seu perfeito juízo, pode hoje supor que na chamada celebração da última Ceia, Jesus tenha dito: fazei isto em memória de mim, mas só com pão de trigo, ázimo e a bebida só pode ser vinho?
Dir-se-á que hoje os comerciantes do trigo podem assegurar esse cereal em qualquer parte do mundo. Não tenho dúvidas. Todos sabemos das imposições culinárias da grande indústria. Não me parece que seja essa a missão da Igreja.
A simbólica da Eucaristia é a mesa partilhada, por isso, quando se convida alguém para jantar não se lhe pode dizer: vem, mas não comas.
Uma das grandes tarefas das Igrejas locais consiste em exprimir a identidade da Fé cristã nas linguagens das suas culturas.
Sarah, com as suas exigências culinárias, mesmo com risco para a saúde, anulou a simbólica essencial da Eucaristia, como mesa cristã de todos os povos. A base dos Sacramentos é terrestre, é sensível, mas é a sua tríplice significação do mistério cristão que mais conta. O cardeal atirou fora a simbologia e ficou, apenas, com as coisas, retirou-se da sacramentalidade.
Não sei se Jesus gostava ou não de broa. Talvez até nem soubesse que existia. Mas imaginar que ficaria atrapalhado, nos lugares em que o trigo não é o principal alimento, em celebrar com broa ou com arroz é duvidar do poder de Cristo.

Sou levemente alérgico a estas crónicas durante o mês de Agosto. Até Setembro

Frei Bento Domingues, no PÚBLICO 

sábado, 29 de julho de 2017

Álvaro Garrido: Venham ao museu e tragam um amigo também

Faina Maior
Embarcações lagunares

O bacalhau que comemos

Aquário dos bacalhaus
O Museu Marítimo de Ílhavo (MMI) aguarda a nossa visita em qualquer dia do ano. Jovens e menos jovens são sempre bem recebidos e desejados, porque um museu tem de ser permanentemente uma casa aberta, com a predisposição para acolher quem chega, ou não tivesse nascido para exibir um recheio multifacetado e devidamente organizado, direcionado para as pessoas. 

Álvaro Garrido 
Um dia destes lá fomos cumprir um ritual integrado nas férias anuais que teimamos em manter. À chegada, tivemos a dita de encontrar o consultor do MMI, Álvaro Garrido, que fizemos questão de cumprimentar, a quem lançámos uma questão: Dê-nos uma boa razão para visitar o Museu de Ílhavo durante as férias! E com toda a naturalidade, Álvaro Garrido sugeriu que o ideal seria participar na festa comemorativa dos 80 anos do museu, que decorre de 5 a 8 de agosto, sublinhando, como pontos altos, «a inauguração de uma exposição extraordinária intitulada História Trágico Marítima, que vai incluir muitas obras valiosas que não é comum verem-se em exposições». 
Referiu que há um concerto celebrativo no dia 6, à noite, no largo do museu, «precisamente baseado numa obra inédita de Fernando Lopes Graça — História Trágico Marítima, cuja letra foi escrita por Miguel Torga». E acrescentou: «É um espetáculo muito singular, inédito», tratando-se de uma obra musical que foi descoberta e que estava esquecida», obra essa «que tem sido trabalhada pelo maestro Vassalo Lourenço».
Álvaro Garrido lembrou, entretanto, que, de 5 a 8 de agosto, há continuamente atividades, visitas especiais e a possibilidade de «fazer coisas diferentes no museu, para vários públicos, dos 8 aos 80 anos». 
Questionado sobre o enquadramento do MMI no contexto europeu e a nível internacional, Álvaro Garrido adiantou que «o nosso museu é cada vez mais conhecido.» E esclareceu: «Os museus marítimos são muitos, mas têm identidades muitos diversas; há os museus marítimos de comunidade e museus navais», sendo certo que «os museus marítimos, à escala internacional, estão numa espécie de encruzilhada, hesitantes entre os caminhos a seguir». 
Disse que o MMI tem conquistado públicos, «talvez por efeito do fluxo de turismo que ocorre em Aveiro e que tem algum impacto no município de Ílhavo». «É um público mais aberto, do país inteiro, e o número de estrangeiros também está a aumentar, sobretudo espanhóis, franceses, e não só, e ainda ilhavenses que estão na diáspora; no verão é muito comum as pessoas virem ao MMI, quase como um ritual». E finalizou a nossa curta conversa com um apelo: «Venham ao museu e tragam um amigo também.» 

Fernando Martins

OBSERVADOR — Espanhóis ajudam nos fogos em Portugal


«A Autoridade Nacional de Proteção Civil solicitou a presença de meios terrestres espanhóis no início da semana, face ao agravamento dos fogos nesta zona. O Governo acionou o Protocolo Bilateral Luso-Espanhol em matéria de Proteção Civil e Espanha enviou novamente os operacionais da Unidade Militar de Emergências.
Patrícia Gaspar, adjunta de operações da Proteção Civil, explicou ao Observador que se aplicam os princípios da solidariedade europeia em matéria de Proteção Civil: a ajuda é enviada a título gratuito, ficando o país de acolhimento responsável pelos custos de manutenção das equipas, nomeadamente a alimentação e o alojamento.»

(...)

“A voz do fogo é complicada. Eu também não a conhecia. Uma coisa medonha, parece um filme de terror. Faz correntes de ar e sucções estranhas”, descreveu a autarca, crente na capacidade dos espanhóis para revigorarem os 500 homens que estavam no terreno: “Os nossos homens estão exaustos. Não comem. Temos de refrescar as equipas no terreno. Um combatente cansado é um guerreiro inútil.”

(...)

“Às vezes as pessoas saúdam-nos quando passamos, mas aqui tem sido impressionante”, admitiu um deles. Ficou também bastante surpreendido quando viu o Presidente da República no quartel de Mação: não só por ter ido ali, e por ter também agradecido aos espanhóis, mas por o ter visto puxar de um tabuleiro para tomar a mesma refeição que eles: “Em Espanha não vemos o [primeiro-ministro, Mariano] Rajoy fazer isso.”

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sexta-feira, 28 de julho de 2017

Paulo Rocha — Turismo, rotundas e esplanadas



«Portugal tem, no entanto, que oferecer mais do que rotundas e esplanadas. Quem nos visita e se encanta pelo sol e pela alimentação deve levar na bagagem motivos para regressar, não só pelo acolhimento que acontece e as saudades dos petiscos, mas também, e sobretudo, pela capacidade de oferta cultural, de entretenimento e de humanismo que cidadãos e instituições forem capazes de fazer. Assim, depois de criar todos os circuitos por cidades e aldeias, de construir os vários abrigos e montar todas as esplanadas, é necessário criar ofertas qualificadas para cada turista no âmbito no âmbito da cultura, do lazer, do mar, dos rios, das barragens, dos parques naturais, das matas qualificadas, dos monumentos património mundial e de tantos outros recantos que permanecem escondidos de quem visita Portugal e podem ser um fator decisivo para que voltem pela segunda, terceira ou quarta vez…»

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Anselmo Borges — Trabalho e férias


1. O Homem "define-se" por muitas características. O trabalho - homo laborans - é uma dessas dimensões constitutivas do humano. E, quando falamos do trabalho, não pensamos apenas na necessidade que o Homem tem de se esforçar para poder sobreviver - ele há esta palavra tremenda: "trabalhar para ganhar a sua vida", que há dias o L"Osservatore Romano, órgão oficioso do Vaticano, disse que também se deve aplicar aos padres. De facto, por outro lado, o trabalho significa o esforço comum da Humanidade para transformar o mundo, pois é transformando o mundo que o Homem verdadeiramente se realiza e toma consciência de si enquanto humano, como bem viu Hegel, concretamente na sua famosa dialéctica do senhor e do escravo, no que constitui a primeira grande reflexão filosófica sobre o trabalho, na Fenomenologia do Espírito. O escravo, pelo trabalho e transformando o mundo, não ganha apenas para o seu sustento, pois, para lá disso e sobretudo, vem a si mesmo na consciência de Homem, de tal modo que supera o senhor para quem trabalha: afinal, o senhor apenas consome o que o escravo produz.
Quando se olha à volta ou se viaja pelo mundo, por toda a parte, de um modo ou outro, o que vamos encontrando tem que ver com este esforço histórico-colectivo gigantesco de transformar o mundo e torná-lo humano. Instrumentos de trabalho, aldeias, cidades, meios de transporte - dos mais simples aos mais complexos -, monumentos, fábricas, escolas, universidades, laboratórios, bibliotecas, museus...
Assim, o trabalho tem sempre esta dupla face: por um lado, o esforço, e, por outro, a obra. O esforço está bem presente na própria palavra trabalho: deriva de tripalium, que era um instrumento de tortura. Na Bíblia, no Génesis, é dito por Deus ao Homem: "Comerás o pão com o suor do teu rosto." A outra face é a obra: o Homem, mediante o trabalho, realiza obras que o enaltecem. É construindo o mundo de múltiplos modos que a Humanidade ergue a sua História de fazer-se. A sua obra é essa.

2. Frequentemente, quando se fala de trabalho, é sobretudo em emprego que se pensa e no desespero que o desemprego representa. Neste sentido e tomando em conta, por um lado, a globalização e, por outro, a influência, por exemplo, da robotização e o que ela significará nestes domínios, penso que este é um dos temas que vai exigir uma governança global. Não vou meter--me nesta problemática gigantesca do trabalho enquanto bem escasso que é preciso saber distribuir e partilhar, com todas as consequências. Também não pretendo argumentar, como já uma vez escrevi aqui, com o matemático e filósofo Bertrand Russell, Prémio Nobel da Literatura, que há muito tempo escreveu que bastaria trabalhar quatro horas por dia, ou com o físico de renome mundial, Hans Peter Dürr, que também disse que precisaríamos apenas de um terço do nosso tempo de trabalho para produzirmos o que é realmente importante... O outro tempo seria para a criatividade e sua fruição na beleza, na música, na contemplação, na filosofia...

3. E assim entro nas férias. De facto, o Homem não se define apenas pelo trabalho. A sua relação com o mundo e com os outros é também de gáudio, de gratidão, de criação e contemplação. O Homem não se esgota na produção e destrói-se quando vive apenas para sobreviver. Pelo contrário, sobrevive para viver e nesse viver estão o trabalho e também a festa, o gratuito, a alegria genuína de ser si mesmo com os outros, o inútil do ponto de vista da produção - "o fascinante esplendor do inútil", escreveu George Steiner, que também escreveu sobre a música, inseparável do sentimento religioso e que nos torna vizinhos do transcendente: "Ela foi durante muito tempo, continua a ser hoje, a teologia não escrita dos que não têm ou recusam qualquer crença formal."
Isto diz-se na palavra férias, quando se considera o seu étimo: a palavra latina feria, no plural feriae, tinha o sentido de "descanso, repouso, paz, dias de festa". A Bíblia também tem o mandamento de Deus de um dia de descanso semanal e de festa, dia santo sem trabalho, para que o Homem fizesse a experiência de que não é besta de carga, mas um ser festivo. Tem de trabalhar - e duro -, mas não é uma besta de carga.
Se se pensar bem, as férias, como aliás um dia feriado, não têm como finalidade última um intervalo no trabalho em ordem a repor as forças, para poder voltar a trabalhar e mais. As férias e um dia feriado têm a sua finalidade em si mesmos: a experiência, repito, de que o ser humano é um ser festivo. É preciso voltar às alegrias simples: a alegria do estar juntos em família e com os amigos e também a alegria de estar só para saber de si no milagre da existência, contemplar uma gota de água numa folha de erva, acolher o perfume de uma rosa, que dá perfume sem porquê, como escreveu o místico Angelus Silesius. Ler poesia e escutá-la. Ler a grande literatura, que diz as nossas possibilidades. Ouvir música, a música que é o divino no mundo e nos remete para origens imemoriais e para a transcendência, lá, para lá, onde nunca propriamente estivemos, mas é para lá que queremos ir morar para sempre... Exaltar-se com o mistério de qualquer rosto humano no seu olhar, o olhar que é alguém vir e mostrar-se à janela de si mesmo. Apanhar sol na praia, no campo, na montanha e ver nascer o Sol e pôr-se (ah, e se ele nunca mais voltasse?!) e contemplar o alfobre das estrelas (o que na cidade não se vê). E ter tempo para ouvir o silêncio e descer ao mais fundo de si, lá onde verdadeiramente somos nós. E perceber que é possível e necessário emendar tanta coisa e ir mais longe, sempre mais longe na honra e na dignidade. E, se se for fora, encontrar-se na autenticidade com culturas outras e diferentes modos de também se ser humano. E vir mais rico em humanidade e horizontes novos. Boas férias!

Anselmo Borges no DN de hoje

Georgino Rocha — Fazer opções sábias. E a tempo



Jesus quer mostrar a urgência de fazer opções sábias e a tempo. Recorre, segundo a versão de Mateus, a três parábolas, acessíveis aos discípulos: a do tesouro escondido no campo; a da pérola preciosa; e a da escolha do peixe apanhado na pesca. Depois de as narrar, pergunta-lhes: “Entendestes tudo isto?” “Entendemos”, respondem, sem hesitar. A comunicação havia resultado em cheio. Que alegria para todos. Nem os discípulos pedem mais explicações, nem Jesus sente necessidade de as dar. Mas acrescenta: “Todo o escriba instruído sobre ”.

O comentário esclarecedor de Jesus valoriza a sabedoria do pai de família que conserva “o novo e o velho” do seu património, a liberdade de dispor dos bens guardados e o horizonte aberto a que os destina à luz dos critérios provindos do reino dos Céus, do Evangelho que ia sendo anunciado. É a sabedoria que brilha na oração de Salomão, após a sua coroação de rei, sendo ainda jovem. Um sonho descreve esta atitude primeira. “Dai, Senhor, ao vosso servo um coração inteligente, para governar o vosso povo, para saber distinguir o bem do mal”. E a oração do jovem rei agradou ao Senhor que lhe concede o que havia pedido e ainda mais. Que encanto de oração para o nosso tempo tão necessitado da sabedoria que sabe discernir a fim de tomar decisões acertadas e a tempo. Que realismo de compreensão do que está em causa: o bem do povo e a necessidade de bem servir. Que abertura a Deus que sempre quer o melhor para todos, em todos os tempos; sempre “concorre em tudo para o bem daqueles que O amam” como garante Paulo na carta aos cristãos de Roma, hoje proclamada na celebração.

A liberdade de tomar decisões e dispor dos bens está clara nas parábolas do tesouro e da pérola preciosa. Com efeito, quem as encontra quer possuí-las, ainda que para isso tenha de vender tudo quanto tem. Atitude corajosa. Mas quem deseja sinceramente arrisca. E o protagonista das parábolas foi ousado e confiante. A opção pelo bem maior “falava” mais alto. Não se pôs a fazer conjecturas, nem se deixou alarmar por infundadas suposições. Do género: E se o dono do campo não o quer vender ou o da pérola não pretende aliená-la? Ou, se entretanto, sou assaltado ou mudam “as regras do jogo”?... Confiante, ousa e alcança. Que belo exemplo para tempos, como os nossos, em que a liberdade de tomar decisões sábias parece estar francamente ausente em muitos âmbitos onde a vida humana corre perigo, e a saúde e a educação estão raquíticas e enviesadas.

O horizonte aberto ao uso dos bens é iluminado pelo reino dos Céus, pelo Evangelho de Jesus, pelo magistério da Igreja e pelo pensamento social de homens e mulheres, amigos da humanidade. O Papa Francisco tem-se feito intérprete fiel dos critérios que surgem nestas correntes da história, não apenas do ocidente, mas universal; não somente da Europa, mas de outros continentes. A arca dos bens é património da humanidade e não apenas de quem teve acesso ao desenvolvimento material que a revolução industrial despoletou e fez avançar, muitas vezes à custa de medidas desumanas, de exploração e fraude. Tendo a situação mundial como horizonte e olhando com amor compassivo a legião de famintos e o bem estar de minorias afortunadas, como não reclamar por uma nova economia, uma outra cultura, uma nova ordem internacional, já proclamada por Paulo VI na sua encíclica sobre “O Desenvolvimento dos Povos”, em 1967? Ao ver o ritmo do avançar na história, facilmente se reconhece s sua lentidão para a maioria e a obstrução deliberada para quem se apoderou do que é comum.

O tesouro e a pérola, diz José M. Castillo, expressam “o que mais enche os humanos” e exemplifica: “um âmbito e um ambiente humano de respeito, tolerância, estima, carinho e segurança, em que damos e recebemos felicidade, com a convicção de que isso é ( e será) para sempre. Só isso pode significar o que, tal como somos humanos, Jesus oferece e afirma”.

A sabedoria toma o rosto do pescador que, tendo a rede cheia de peixes, a puxa para terra, se senta e escolhe pacientemente os bons dos maus. Imagem persuasiva e bela que nos lança um desafio constante: Sei parar para discernir o que está na rede da minha vida? Advirto na qualidade do que ando a fazer com as minhas atitudes? Estou a construir um futuro promissor, ancorado nos valores do Reino, ou a satisfazer necessidades efémeras, ainda que legítimas? Um dia brilhará o alcance das minhas escolhas. Sem qualquer dúvida.

O Papa Francisco ao comentar a passagem do evangelho de hoje, afirma: “Quem encontra o Reino de Deus não tem dúvidas, sente que é isso mesmo que buscava, que esperava, que responde às suas aspirações mais autênticas. E é verdadeiramente assim: quem conhece Jesus, quem o encontra pessoalmente, fica fascinado, atraído por tanta bondade, tanta verdade, tanta beleza, e tudo numa grande humildade e simplicidade. Buscar Jesus, encontrar Jesus: este é o grande tesouro”.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

MaDonA — O avô Manel


«O avô Manel é o último sobrevivente do clã familiar. Fui visitá-lo, um dia destes, e ia rever uma pessoa que me é tão grata. O que estou a escrever será uma homenagem, a minha homenagem, em vida. É em vida que se apreciam os afagos, os mimos, o carinho. Depois...restam apenas as flores... 
Qual não foi a felicidade do avozinho, ao receber a visita de entes queridos, que lhe atenuam a solidão dos dias. Com idade avançada, prestes a completar 95 anos, as forças do avô foram minguando, trazendo consigo as maleitas próprias desta faixa etária. A força nas pernas diminuiu, e depois de várias quedas, o destino foi o recurso a uma cadeira de rodas. Foi uma inevitabilidade! A única e a possível.»

“A gratidão é a memória do coração.” 

Antístenes

O avô Manel é o último sobrevivente do clã familiar. Fui visitá-lo, um dia destes, e ia rever uma pessoa que me é tão grata. O que estou a escrever será uma homenagem, a minha homenagem, em vida. É em vida que se apreciam os afagos, os mimos, o carinho. Depois...restam apenas as flores... 
Qual não foi a felicidade do avozinho, ao receber a visita de entes queridos, que lhe atenuam a solidão dos dias. Com idade avançada, prestes a completar 95 anos, as forças do avô foram minguando, trazendo consigo as maleitas próprias desta faixa etária. A força nas pernas diminuiu, e depois de várias quedas, o destino foi o recurso a uma cadeira de rodas. Foi uma inevitabilidade! A única e a possível. 
Foi o prenúncio de um fim anunciado, já que a mobilidade é uma força que nos prende à vida e nos faz lutar por ela. O avô Manel ficava privado da sua deslocação ao jardim, onde poderia enxergar as flores que outrora cultivara, e as uvas americanas que pendiam em latada, nos longos passeios pelo quintal. 
Um véu de tristeza escurecera o seu semblante, que gradualmente se foi dissipando com a nossa presença. Foi um raio de luz a iluminar-lhe o rosto e trazer ao seu olhar, o brilho de tempos antigos. De vez em quando, os seus olhos ficavam marejados de lágrimas, quando, à memória, vinham recordações antigas, dos seus tempos de pujança. Em frente àquele rosto, agora encanecido, passou na minha tela mental, o filme do Avô Manel, em que foi o protagonista de uma grande epopeia. 
Após a sua retirada do mundo do trabalho, o avô dedicou-se, de alma e coração, à sua horta biológica, uma atração para os domingueiros que apreciavam o kitchen-garden do Sr Manuel. Aí, sentia-se nas suas sete quintas! 
“Vou semear um rego, dois regos...de ervilhas, favas, tomateiros, pimentos, cebolas, etc, etc” era uma expressão recorrente, no linguajar simples do avô Manel, com marcado acento tripeiro. 
E assim, nasciam os canteiros, rigorosamente talhados a régua e esquadro, dada a perfeição com que os desenhava. Reminiscência dos seus tempos de marceneiro em que projetava e fabricava móveis, com a perícia de um mestre. A bordejar esses canteiros de hortaliças, havia sempre renques de dálias, gladíolos, cravinas. No meio desse jardim, da casa até à linha do comboio, no fundo do quintal, estendia-se um largo passeio em cimento, ladeado por videiras. Em dossel, uma ramada de uvas americanas, que no verão nos ofereciam a sua sombrinha refrescante. Depois de maduras e vindimadas, davam o vinho americano, que antes de fermentado era aquele vinho doce tão apreciado. Era o autêntico, genuíno sumo de uva que distribuía pela família e amigos. Ainda tenho guardada, na minha retina e no olfato, a imagem das ervilhas de cheiro, que trepavam à volta dos esteios em ferro, da ramada, libertando para a atmosfera, a sua fragrância adocicada e fresca. 
Dava gosto ver o sentido estético que ele punha em tudo que fazia. Espantoso! E os produtos vegetais que saiam das suas mãos, arrancados à terra preta, fecunda, do Porto, eram de alta qualidade, hoje designados por produtos gourmet. 
Por tudo isto e outras coisas que, involuntariamente, possa ter omitido, tenho um profundo sentimento de gratidão, pelo avô Manel. 
Bem-haja, por tudo o que fez pela sua prole. 

Mª Donzília Almeida 

26 de julho de 2017 

ADIG visita obras da bacia de contenção de lixiviados e ETAR


O presidente, Humberto Rocha, e mais quatro  elementos da direção da ADIG - Associação para a Defesa dos Interesses da Gafanha foram recebidos, no dia 24 de julho, pelos engenheiros da Administração do Porto de Aveiro (APA) e da Cimpor, para apreciarem, no terreno, as obras da Bacia de Contenção de Lixiviados e a Estação de Tratamento. E dessa visita, aquela associação pôde concluir que «as águas contaminadas são bombeadas para dois grandes tanques assentes no solo do Porto Comercial», seguindo um processo de «decantação das águas lixiviantes», após o que as águas filtradas serão devolvidas à natureza. 
A visita da ADIG insere-se na luta levada a cabo pela associação, no sentido de resolver problemas criados pelo manuseamento de lixiviados e Petcoke, o que afetava seriamente as populações da freguesia da Gafanha da Nazaré e não só. Foi, garante a ADIG, um processo que chegou a bom porto, mas acrescente que «agora é suficiente continuar a manter os métodos de carga e descarga já em curso». 
Dando-se por satisfeita, a ADIG sublinha a importância do diálogo que leva, «naturalmente, a resultados frutíferos, para bem das pessoas e da natureza». E louva «o trabalho da nossa associação, dos habitantes e o contributo da APA e da Cimpor». 
De nossa parte, sentimos ser obrigação de os gafanhões felicitarem a ADIG e todos os que se empenharam na procura de soluções para a resolução de um problema que afetava seriamente a qualidade de vida das comunidades locais.

Futuro Cais dos Pescadores de S. Jacinto em fase de estudo

São Jacinto visto do Forte da Barra
«A Câmara Municipal de Aveiro está a desenvolver o novo projecto do Cais dos Pescadores para São Jacinto, abandonando o antigo projecto (por incompatibilidade do dimensionamento das estruturas face às condições existentes no local, uma vez que foi feito sem avaliação geotécnica).», li no Porto de Aveiro. Nessa linha, está a decorrer uma campanha de sondagens, com a finalidade de se avaliar «a qualidade dos solos com o objectivo de fornecer as informações necessárias para a empresa Consulmar terminar o projecto». Seguir-se-á «o lançamento do respectivo concurso público para a obra durante o mês de Setembro.»

Li aqui 

Navio-museu Santo André - Camaratas




«As camaratas de proa são um conjunto de 6 camarotes com capacidade para alojar 40 homens. Cada tripulante ocupa um beliche e um cacifo. Ao centro do camarote há um aquecedor a água, essencial para suportar o frio do Atlântico Norte.»

Li aqui

Júlio Cirino — Ilha Terceira – Carnaval

Melodia
Músicos
Pandeiros
Dança Pandeiro 

O Carnaval ocupa um lugar de destaque nas festividades da ilha Terceira. O “bailinho”, designação popular para uma representação teatral acompanhada por música, é o principal entretenimento no Entrudo. “As chamadas ‘Danças de Carnaval’, às quais assistem milhares de terceirenses, são o maior encontro de teatro popular em língua portuguesa que se faz em todo o mundo.” 
Os membros de cada “bailinho” criam o enredo, a música e a coreografia da peça. O traje também é da sua autoria. Estes grupos podem representar uma paróquia, uma casa do povo, uma sociedade filarmónica, uma instituição de solidariedade ou até um partido político. 
Existem várias categorias de danças e “bailinhos”. As “danças de espada”, as “danças de pandeiro” e os “bailinhos” masculinos, femininos ou mistos. 
O “bailinho” começa com uma cantiga acompanhada por tocadores de cordas e de instrumentos de sopro. Segue-se uma peça teatral sobre um tema escolhido e tudo termina com mais uma cantiga. Cada espectáculo tem a duração aproximada a 40 minutos. 
As Sociedades Filarmónicas, as Casas do Povo ou as Juntas de Freguesia, a abarrotar de gente entre o sábado gordo e a madrugada de quarta-feira de cinzas, são visitadas por mais de 60 “bailinhos” que apresentam os temas mais variados. Cada grupo, entre actores, músicos, dançarinos, autores, ensaiadores e costureiras conta com uns 50 elementos. Isto é, na ilha movimentam-se mais de 3.000 pessoas que, no palco, vão trazer alegria a quem assiste! 
Ninguém paga para assistir a estes espectáculos. Porém, os salões, para angariar fundos, possuem bares onde se podem comer bifanas, frango, chouriça e linguiça fritos, coscorões, arroz doce, filhoses, etc., que constituem a gastronomia própria da época. O vinho e a cerveja acompanham tais petiscos. 

Obs.: É pena que, como noutros assuntos, os ecos do Carnaval na Terceira não cheguem ao Continente. Dando o meu contributo para contrariar tal situação, convido-vos a assistir, pela internet, a dois “bailinhos” que retratam o que por aqui se passa no Carnaval. 
A quem estiver interessado, recomendo “Um Congresso da 3.ª idade - Bailinho do Posto Santo - Carnaval de 2015.” (por se ver melhor, aconselho a que abram a segunda janela da página). 
Através desta peça, de cariz humorístico, podemos ver certa rivalidade que existe entre a Terceira e S. Miguel por os micaelenses “terem a mania” que são da capital dos Açores. 
Está também aqui retratada a fama que os terceirenses têm de estar quase sempre em festa e por isso pouco trabalharem. No arquipélago até costuma dizer-se: “nos Açores há oito ilhas e um parque de diversões (a Terceira)”. 
Vão notar diferenças de sotaque, algo exageradas, entre a ilha Terceira, a de S. Miguel e de S. Jorge. Quem não estiver por dentro da realidade açoriana, poderá não compreender algumas “bocas regionais”, mas no fim ficará mais enriquecido pelo espectáculo a que acabou de assistir, para além de ficar a saber o que é um “bailinho”. 
O segundo tema que recomendo é o “Bailinho do Grupo de Amigos do Carnaval SFP dos Biscoitos – A vida de S. Norberto”. 
Aqui é retratada a vida de um solteirão chamado Norberto, pessoa simples que tem de tomar conta dos pais já idosos e doentes. Cansado da vida que levara, durante 27 anos, foi estudar para padre… 
A pronúncia utilizada nesta peça corresponde a algumas zonas da ilha. Realço que os excelentes actores provêm das mais variadas camadas sociais, podendo ser professores, carpinteiros, pedreiros, agricultores ou ter qualquer outra profissão. 

Todos os espectáculos que por cá se fazem são interpretados por amadores, mas que ensaiam como profissionais para não se saírem mal nos espectáculos em que vão participar.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Praia da Barra em tempo de verão









Mesmo com tempo sem sabor a verão, fui de fugida à Barra para me encontrar com um amigo e para apreciar o movimento próprio da época. Sem o sol que tanto aprecio, dei conta de centenas e centenas de pessoas de todas as idades que, apressadas, queriam beneficiar de algum calor iodado apesar do ventinho irritante. De trouxas às costas: mantas, cestos, guarda-sóis, toalhas, chapéus e roupas de agasalho, talvez adivinhando o pior, lá rumavam ao areal. 
Quis estacionar o carro, mas nenhuma porta se abriu e fugi então para a beira-ria, onde o sossego era mais sentido e vivido. Gostei do que vi. E também por ali fiquei a contemplar a azáfama dos mariscadores, as águas calmas da laguna, uns pescadores na sua faina silenciosa e desprendida. E ao longe, não muito, está bem de ver, o casario do Forte, de S. Jacinto, do Farol e o  céu azul, com convites para que volte sem intenção de pisar a areia, que não aprecio.
Boas férias para todos.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Georgino Rocha — Divorciados recasados






A IGREJA EM MOVIMENTO DE AJUDA

“Vamos levar connosco a «Alegria do Amor» para, em férias, revisitarmos toda a exortação do Papa Francisco que, durante o ano, andámos a ler com um grupo de casais amigos”. E adiantam que “não se pode deixar passar, sem especial cuidado, mensagem tão importante.” Agradecia-lhes a informação, felicitei-os pela decisão tomada e anunciei-lhes que também eu a estava a reler e a tomar notas que, de vez em quando, dava a conhecer. Algumas dessas notas versam sobre os divorciados recasados que, sendo cristãos praticantes, querem viver a comunhão possível na Igreja.
“Não é a «Amoris laetitia» que põe a família em crise. É a crise da família que põe a Igreja em movimento.” Esta afirmação pertence ao cardeal José Farrell, prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida. E constitui uma chave de leitura que ajuda a ver com atenção o que vem a público sobre a recepção da “Alegria do Amor”, sobre a relação entre a família e a Igreja, sobre a clara opção estratégica pastoral do Papa Francisco para a tão desejada saída missionária, a conversão, a compreensão da Igreja a partir “de baixo” onde o Espírito Santo lança continuamente as sementes do Reino de Deus. De facto, a alegria da família é o júbilo da Igreja. E a inversa também se pode afirmar. A reciprocidade é clara e interpelante. Por isso, a resposta à vocação da família é única e insubstituível, tanto para a Igreja como para a sociedade (AL 88).
As pessoas existem dentro de restrições, observa o cardeal Schonborn ao falar nas sessões preparatórias do Encontro Mundial das Famílias a realizar na Irlanda em 2018. E lembra que o Papa Francisco “frequentemente volta ao que disse na “A Alegria do Evangelho” em que um pequeno passo em direção ao bem feito sob circunstâncias difíceis pode ser mais valioso do que uma vida moral sólida sob circunstâncias confortáveis”.
Define assim os três pólos a ter em conta na atenção às famílias: A beleza do amor conjugal heterossexual, vivido em situações concretas e os passos a dar numa caminhada a realizar em casal. De permeio, como elemento aglutinador, está o discernimento espiritual e o acompanhamento pessoal e conjugal ou familiar. E a convicção forte de que um pequeno passo na direcção certa tem um valor enorme, pois condensa a realização possível do ideal apontado doutrinalmente.
“A Igreja deve estar de pé e em caminho, escutando as preocupações da gente e sempre na alegria”, exorta o Papa Francisco numa das suas homilias na Casa Santa Marta. E indica o exemplo do diácono Filipe (Act Ap 8) salientando os passos a dar: Prepara-te e vai; aproxima-te desse carro e acompanha-o; ouve as inquietações das pessoas; anuncia a Boa Nova desejada; vive a alegria de ser cristão. Passos que podem servir de referência para um agir pastoral solícito respeitoso.
A situação do novo casal, depois da experiência dolorosa do fracasso matrimonial, será semelhante, em metáfora, à de um precioso vaso de porcelana, cheio de fissuras cobertas pela finura do artista que sabe juntar em harmonia os pedaços partidos, aplicar-lhes a cola adequada e recobri-los com a tinta correspondente, fazendo brilhar o oiro sobre um atraente azul-escuro. Apreciar e valorar esta nova situação constitui um sólido ponto de partida para o desejado processo de integração eclesial.
Seguem-se outros passos como a revisitação da experiência anterior, a verificação das relações com as pessoas envolvidas, designadamente os filhos (se os há), o ex-cônjuge e os pais, a consistência da nova situação e propósito de caminhar gradualmente no rumo certo.
“A casa se desmoronará um dia se não se vigiar o vigamento.” Esta advertência é feita pelo Padre Henri Caffarel aos casais das Equipas de Nossa Senhor, em 1945 e destaca a necessidade do «dever de sentar» ou seja de namorar a relação e a vida, de dialogar com simplicidade e franqueza.
O casal em nova situação é sempre o protagonista da caminhada a que se propõe. Ajudado, sem dúvida, mas nunca substituído na sua consciência. Por amigos experientes e aceites. Pelo padre acompanhante por missão ou por escolha. Por grupos que se organizem nesse sentido. As possibilidades são muitas quando a criatividade faz brilhar a caridade que nos impulsiona.
E surgem iniciativas e projectos que testemunham a coragem de quem avança e sonha com uma Igreja em movimento. A título de referência, mencionam-se alguns, apenas: O recente encontro do Papa Francisco com mulheres divorciadas pertencentes ao grupo Santa Teresa, na diocese de Toledo; o serviço de Reliance organizado pela diocese de Lille e implementado pelas Equipas de Nossa Senhora; a integração de iniciativas várias em planos de pastoral a nível diocesano, como Santarém, e em catequeses familiares em paróquias; a divulgação de critérios de orientação pastoral elaborados por Bispos, como os da região pastoral de Buenos Aires que inspiram muitos outros, designadamente o documento dos Bispos do Centro de Portugal; os grupos de informação e sensibilização sobre a problemática que comporta a situação canónica dos cristãos divorciados recasados na Igreja.
“Não se deve deixar de acompanhar e educar a comunidade para que cresça no espírito de compreensão e de acolhimento… A comunidade é instrumento da «misericórdia que é imerecida, incondicional e gratuita» refere o mencionado documento dos nossos Bispos, apoiando-se na “Alegria do Amor”.

domingo, 23 de julho de 2017

Aí o tens, boa amiga, o vasto, o poderoso Oceano! Procura conhecê-lo


Uma leitura para este tempo é ou pode ser Ramalho Ortigão. Um clássico porventura a cair no esquecimento. Dele não conhecia muito. Umas Farpas e textos de antologias. 
Graças à Editora Quetzal, estou a ler [2014] "As Praias de Portugal - Guia do Banhista e do Viajante", cuja primeira edição data de 1876. As nossas praias, Barra e Costa Nova, não lhe mereceram qualquer referência. Apenas diz que a Costa Nova era frequentada por algumas famílias de Aveiro e seus subúrbios. Nem o Algarve está no mapa. 
De qualquer forma, o leitor fica ao alcance de bons nacos de prosa e de informação variada. E não faltam curiosidades científicas, decerto já ultrapassadas. Já lá vão uns 150 anos. 
Deixo aqui um pedacinho dedicado às mulheres, que talvez possua um fundo de atualidade, com poesia para este tempo.
Boas férias para todos.




«Aí o tens, boa amiga, o vasto, o poderoso Oceano! Procura conhecê-lo. Ele será o teu melhor, o teu mais fiel amigo, o teu médico, o teu mestre, o namorado do teu espírito.
Tudo aquilo de que precisa o teu abatido organismo, a tua imaginação, o teu carácter, a tua alma, o mar possui para to dar.
Ele tem o fosfato de cal para os teus ossos, o iodo para os teus tecidos, o bromureto para os teus nervos, o grande calor vital para o teu sangue descorado e arrefecido.
Para as curiosidades do teu espírito ele tem as mais interessantes histórias, os mais engenhosos romances, os mais comoventes dramas, as mais prodigiosas legendas.
Para as fraquezas da tua imaginação, da tua sensibilidade, da tua ternura, tem finalmente a grande força austera, simples, tenaz, implacável, que na terra se não encontra senão dispersa, em pequenas parcelas, pelo que há de mais sublime e de mais culminante na humanidade: a alma dos heróis e o coração das mães; - força imensa, sobrenatural, inconsciente, de que o mar é viva imagem colectiva e portentosa.»

NOTA: Texto publicado no meu blogue há precisamente três anos. 

Um poema para tempo de férias de Rainer Maria Rilke


Amo-te, ó lei mais suave,
na qual amadurecemos, quando com ela em luta estávamos;
ó grande saudade que não dominámos,
ó floresta da qual nunca saída encontrámos,
ó canção que em cada silêncio cantámos,
ó rede de obscuridade,
em que nossos sentimentos presos abrigávamos.

Tão infinitamente grande te começaste,
naquele dia em que nos começaste,
e tanto amadurecemos nos sóis de tuas horas,
tanto nos alargámos e nos plantámos profundamente,
que em Homens, Anjos e Nossas Senhoras
agora te podes cumprir descansadamente.

Deixa a tua mão na encosta dos céus pousar
e tolera em silêncio o que te estamos na sombra a preparar.

Rainer Maria Rilke (1875-1926)
In «O Livro de Horas», ed. Assírio & Alvim

Bento Domingues — Jesus não gostava de broa? (1)


1. A interrogação desta crónica tem raízes ocultadas e persistentes na teologia dos sacramentos. Regressou devido a graves problemas alimentares e simboliza a marginalização de questões abafadas na reflexão e na prática da inculturação da fé cristã. Saltou para aqui por alguma falta de humor.
O Cardeal Robert Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, dirigiu uma Carta aos Bispos diocesanos — ou àqueles que, por direito, lhe são equiparados — para lhes recordar o dever de vigiarem a qualidade do pão e do vinho destinados à Eucaristia e à idoneidade daqueles que os fabricam. Um amigo, pouco versado na linguagem litúrgica, reagiu: querem ver que a ASAE já chegou à Missa!? Acrescentei: ou será que já andam para aí a celebrar com broa de milho?
Um padre, muito zeloso, não gostou nada dessas mansas piadas: não admito que se brinque com uma das realidades mais sérias da nossa fé!
Quando tentei mostrar que a carta não era sobre a Eucaristia, mas apenas sobre a qualidade do pão e do vinho que lhe são destinados, a indignação não abrandou, pois estaríamos a desrespeitar uma zona sagrada que a protege. Não melhorei o ambiente ao dizer que antes do problema da qualidade do pão destinado à Eucaristia, existe um imperativo mais sagrado e mais cristão: lutar para que todos tenham o pão de cada dia, o alimento suficiente, como consta da mensagem do Papa Francisco ao presidente da FAO. Lembrou-me, com razão, que essa não era a preocupação do Cardeal Sarah.
Era preciso regressar a uma pergunta banal: que terá acontecido para motivar um texto cardinalício sem qualquer novidade? [1]
A explicação é oferecida numa linguagem eclesiástica que alguns julgarão ser altamente ridícula. “Enquanto até agora, de um modo geral, algumas comunidades religiosas dedicavam-se a preparar com cuidado o pão e o vinho para a celebração da Eucaristia, hoje estes vendem-se, também, em supermercados, lojas ou mesmo pela internet. Para que não fiquem dúvidas acerca da validade desta matéria eucarística, este Dicastério sugere aos Ordinários que dêem indicações a este respeito; por exemplo, garantindo a matéria eucarística mediante a concessão de certificados.”
“O Ordinário deve recordar aos sacerdotes, em particular aos párocos e aos reitores das igrejas, a sua responsabilidade em verificar quem é que fabrica o pão e o vinho para a celebração e a conformidade da matéria [...].”
A Carta funciona como um puro acto de memória. As normas acerca da matéria eucarística já estavam estabelecidas: “O pão que se utiliza no santo Sacrifício da Eucaristia deve ser ázimo, unicamente feito de trigo, confeccionado recentemente, para que não haja nenhum perigo de que se estrague por ultrapassar o prazo de validade. Por conseguinte, não pode constituir matéria válida, para a realização do Sacrifício e do Sacramento eucarístico, o pão elaborado com outras substâncias, embora sejam cereais, nem mesmo levando a mistura de uma substância diversa do trigo, em tal quantidade que, de acordo com a classificação comum, não se possa chamar pão de trigo [...].”
“O vinho que se utiliza na celebração do santo Sacrifício eucarístico deve ser natural, do fruto da videira, puro e dentro da validade, sem mistura de substâncias estranhas... [...] Não se deve admitir, sob nenhum pretexto, outras bebidas de qualquer género, pois não constituem matéria válida.” [2]

2. Esta pureza ritual embate em graves problemas de saúde reconhecidos no citado documento. De facto, a própria Congregação para a Doutrina da Fé já tinha indicado as normas para as pessoas que, por diversos e graves motivos, não podem consumir pão normalmente confeccionado ou vinho normalmente fermentado [3]: “As hóstias completamente sem glúten são matéria inválida para a Eucaristia. São matéria válida as hóstias parcialmente desprovidas de glúten, de modo que nelas esteja presente uma quantidade de glúten suficiente para obter a panificação, sem acréscimo de substâncias estranhas e sem recorrer a procedimentos tais que desnaturem o pão.”
“O mosto, isto é, o sumo de uva, quer fresco quer conservado, de modo a interromper a fermentação mediante métodos que não lhe alterem a natureza (p. ex., o congelamento), é matéria válida para a eucaristia.”
“Os Ordinários têm competência para conceder a licença de usar pão com baixo teor de glúten ou mosto como matéria da Eucaristia em favor de um fiel ou de um sacerdote.” [4]

3. Quando frequentei a catequese, os cuidados rituais para a comunhão exigiam, além do jejum desde a meia-noite até à hora de comungar, a tortura de engolir a hóstia, sem a mastigar e sem a deixar tocar nos dentes. Supunha que era para não magoar o Senhor, mas estava em oposição ao mandato de Jesus — tomai e comei — e, na altura, reservada ao padre — tomai e bebei.
Esta Carta dispensa essa tortura, mas liga a verdade e a eficácia sacramental da Eucaristia à pureza de um cereal — o trigo — e ao produto da videira, o vinho fermentado ou não.
Urge uma alteração de paradigma na teologia dos sacramentos e da liturgia. Veio mais do mesmo. Se esquecermos as exigências universais das múltiplas faces da inculturação, continuaremos num beco sem saída. Temos de voltar a esta questão.

Frei Bento Domingues no Público 

[1] Ver texto integral em: www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/index_po.htm
[2] Cf. Can. 924 do CIC e nos números 319 a 323 da Institutio Generalis Missalis Romani, foram já explicadas na Instrução Redemptionis Sacramentum desta Congregação (25 de Março de 2004)
[3] Carta-circular aos Presidentes das Conferências Episcopais acerca do uso do pão com pouca quantidade de glúten e do mosto como matéria eucarística (24 de Julho de 2003, Prot. n. 89/78-17498)
[4] Cf. Carta ao Perfeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, 9 de Dezembro de 2013, Prot. n. 89/78 – 44897








Georgino Rocha — A beleza do ministério e a fragilidade humana do padre


O alarme chega de Dublin. Uma linha SOS-emergência foi pedida por uma associação de padres na Irlanda. A notícia adianta algumas razões do pedido, destacando o risco de crises graves que podem ser fatais. Crises a que não serão alheias situações como depressão, stress saturante, sobrecarga de responsabilidades, desproporção de recursos humanos face aos desafios a enfrentar, experiências de inadaptação às linguagens e culturas de hoje, sensação de inutilidade eclesial e de insignificância social. Entre outras, claro.
O alarme disparou numa altura em que estava a acompanhar a informação de nomeações canónicas para novos serviços pastorais feitas em várias dioceses da Igreja portuguesa. A impressão mais marcante que me veio à memória e agita a consciência é a de que muitos padres estão disponíveis para o exercício do ministério, para a mudança de funções, para o “morrer no seu posto”. Atitude admirável em que a beleza do ministério brilha na fragilidade humana! Espelho de Igreja que precisa de manter nos seus “postos de trabalho” aqueles que dão sinais claros de envelhecimento e desgaste, de inadaptação aos “novos tempos” e de desajuste emocional; aqueles que têm de assumir responsabilidades em áreas de grande exposição pública sem especial iniciação nem acompanhamento conveniente ou que, após anos de serviço generoso, sentem o peso da “meia-idade”, da vida em rotina, da solidão progressiva.
A par destes sinais facilmente verificáveis, há a outra face da realidade pastoral a merecer igual atenção: A situação dos leigos e das religiosas, pessoalmente e em associações e movimentos ou comunidades. À generosidade comprovada em muitos locais de missão, fruto dos dons do Espírito Santo e da acção de padres e diáconos, soma-se o desajuste de capacidades e ritmos, a deficiente valorização de habilitações específicas e de reconhecimento na Igreja e na sociedade.
“O futuro da Igreja depende dos leigos e esse futuro começa já”, defende o cardeal Kevin Farrell, responsável do Dicastério para «os Leigos, a Família e a Vida» que está convencido de que “este é o momento na vida da Igreja em que realmente podemos tentar implementar aquilo de que já falava o Vaticano II: o papel dos leigos”. E adianta o seu testemunho pessoal enquanto bispo de Dallas, nos Estados Unidos da América: “Sempre senti a necessidade de promover os leigos dentro da Igreja e dentro da sua organização”.
A apregoada hora dos leigos, feita aquando do concílio, parece que parou no tempo e, em alguns casos, os ponteiros do relógio estão a atrasar visivelmente. No entanto, não faltam vozes a clamar por um acerto com o ritmo da história, com a urgência da missão, com o reconhecimento efectivo e comprovado das funções de cada um e de todos na Igreja comunhão de diversidades articuladas na caridade, de modo razoável e fraterno.
Aludindo ao papel da mulher na Igreja o Cardeal Reinhard Marx declarou ao jornal francês La Croix: “Seríamos loucos se não utilizássemos os talentos das mulheres. De facto, seria um verdadeiro absurdo”. O arcebispo de Munique expressa o seu pensamento por ocasião de um encontro recente de mulheres líderes da sua diocese. E prosseguiu: “Precisamos de uma nova imagem do que a Igreja deve ser: uma Igreja mundial liderada por homens e mulheres de todas as culturas trabalhando juntos”. Conclui lembrando que, embora, o sacerdócio seja exclusivamente masculino, isto “não queira dizer que só os homens podem mandar na Igreja”.
Em resumo, o imperativo desta hora de “crise” manifesta-se na necessidade de trabalhar juntos, em espírito sinodal, dando e recebendo, articulando funções e ministérios, crescendo na verdade por meio da caridade, tendo sempre presente a fidelidade ao Evangelho de Jesus e a urgência missionária da Igreja. 
“Não somos chamados a fazer «tudo», a salvar o mundo (que já foi salvo por Jesus Cristo)”, afirma Francesco Cosentino ao reflectir sobre a figura e o papel do sacerdote hoje, em artigo publicado por Settimana News, 14-07-2017. E o autor, que é membro da Congregação para o Clero e professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, continua: O padre “não é e não deveria ser o centro, a fonte e o ápice da comunidade e da ação pastoral”. E de forma interrogativa, adverte: “Não será que muitas frustrações, sofrimentos e depressões dependem também de nos termos superestimado a nós mesmos e feito exigências excessivas (ou ao menos em número) para o nosso ministério?”
A beleza do ministério brilha na fragilidade do padre. E toma o rosto humano de cada um, o sentido do serviço que cultiva e da espiritualidade que vive, da arte pastoral, alimentada na escola do Bom Pastor, que desenvolve no convívio com as pessoas e na animação da comunidade que “preside” para que se promovam e insiram as diversidades legítimas na harmonia da caridade missionária. À maneira da celebração da eucaristia (correctamente entendida). Gerir razoável e eficazmente a fragilidade é fruto também de saber definir e observar prioridades, de fazer uma boa gestão do tempo, de pautar o trabalho por objectivos acessíveis, de respeitar ritmos e valorizar os passos dados no rumo certo, de cultivar o realismo sadio e a esperança firme de que a paciência de Deus abre sempre horizontes novos aos nossos esforços positivos.

A Urbanização da Quinta da Barra, na Praia da Barra, Gafanha da Nazaré, passa a designar-se por «Parque Urbano Paulo Henriques “O Paulinho”», em homenagem ao Campeão Europeu e Mundial, mas também recordista do Guiness.
Diz um comunicado da Câmara Municipal de Ílhavo que o atleta “Paulinho” conseguiu «estes feitos», os quais «são conquistas de um gigante atleta que tem a particularidade de ser portador de trissomia 21». 
Ao homenagear deste modo o "Paulinho", a autarquia ilhavense apresenta-o como exemplo a seguir por toda a nossa juventude de todas as idades. 
Os nossos sinceros parabéns.

sábado, 22 de julho de 2017

Mons. João Gaspar — Uma palavra de gratidão


Como é público, Mons. João Gonçalves Gaspar, Monsenhor apenas para os aveirenses e amigos, deixou a missão de Vigário-Geral da Diocese de Aveiro, dando lugar ao Padre Manuel Joaquim Rocha, recentemente empossado no cargo pelo nosso Bispo, D. António Moiteiro, depois de consulta ao presbitério aveirense. 
Mons. João Gaspar desempenhou o cargo cerca de 30 anos com a delicadeza e proficiência que lhe são conhecidas, só próprias de pessoas simples, de alma lúcida e competência indiscutível. Todos quantos o conhecem sabem que Monsenhor cultivou na vida a arte de saber escutar e o espírito de gerar consensos e de animar relações de proximidade com toda a gente. 
Conheço-o desde que começou a servir os Bispos da restaurada Diocese de Aveiro, sendo o braço direito e o conselheiro profícuo, ou não fosse ele um conhecedor profundo da área diocesana, cujos cantos e recantos cheios de histórias conhece como as suas próprias mãos. Vi-o ainda padre ao lado de D. João Evangelista, D. Domingos da Apresentação, D. Manuel de Almeida Trindade (altura em que foi distinguido com o título de monsenhor), D. António Marcelino, D. António Francisco e, finalmente, D. António Moiteiro. 
Monsenhor João Gaspar, no seu mundo de silêncio quanto baste, não se limitou a servir a Igreja nas tarefas próprias do seu múnus, mas foi muito mais além pela sua paixão reconhecida pela história, de Aveiro e não só, abrindo portas a estudiosos e amantes da cultura. Olhando para as publicações que editou, depois de pesquisas sem conta, pacientemente analisadas e meditadas, não podemos deixar de ficar perplexos pelas revelações que retratam o dia a dia da Igreja Aveirense e muito para além dela. 
Por estes dias, dei-me ao cuidado de compulsar diversos livros da lavra de Monsenhor, e vezes sem conta me quedei a meditar fascinado sobre a profundidade dos seus conhecimentos e a variedade dos temas abordados, o que me leva a dizer, com alguma garantia de verdade, que Monsenhor João Gaspar estará no primeiro lugar do elenco dos aveirógrafos, tão multifacetada é a sua obra. 
Em nome pessoal ou em representação do seu e nosso bispo, Monsenhor era presença assíduo, desejada e querida da grande maioria dos responsáveis por eventos realizados em Aveiro e arredores. Exposições de artistas de várias expressões, acontecimentos históricos relevantes, efemérides marcantes e lançamento de livros podiam contar com a sua presença amiga, solidária, atenta. 
A minha gratidão apoia-se na disponibilidade de Mons. João Gaspar para comigo, na hora precisa da confirmação de um ou outro estudo por mim encetado, nas novidades que normalmente me anunciava, na serenidade do seu relacionamento com todos, na humildade com que sabia e queria apenas escutar, na firmeza das suas convicções, na fé que irradiava e testemunhava, na sua capacidade extraordinária de pesquisa e escrita, na sua paixão por Santa Joana, na simplicidade da sua vida. Monsenhor é, realmente, uma pessoa que inspira confiança, amizade e amor a Jesus Cristo e à Igreja que sempre serviu e continuará a servir. 

Fernando Martins

Ler um livro...


Ler um livro de pensamento exigente
com um forte desejo da verdade
sem avidez em saber
sem pretensão de disputar
mas por gosto, por amor da verdade
Abrir a porta profunda
a todo o pensamento que emerge
e deixá-lo permanecer em paz
de modo que ele venha a dar o seu fruto.


Maurice Bellet
In Cahiers pour croire aujourd'hui, 
Novembro 1993

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Anselmo Borges — O ateísmo libertino


1. Marion Gräfin Dönhoff, uma prestigiada jornalista e intelectual alemã do pós-guerra, co-editora do semanário Die Zeit, escreveu, pouco tempo antes de morrer: "O fixar-se exclusivamente no aquém, que corta o Homem das suas fontes metafísicas, e o positivismo total, que se ocupa apenas com a superfície das coisas, não podem dar às pessoas um sentido duradouro e estável, e, por isso, levam à frustração."

2. Paradoxalmente, Nietzsche, o profeta do ateísmo, é testemunha disso. Aquele que, filho de um pastor protestante, fora uma criança piedosa e estudara Teologia, havia de proclamar publicamente, em 1882, através de um louco, em A Gaia Ciência, a morte de Deus: "Deus morreu! Deus está morto! E fomos nós que o matámos!" E continua: "Conta-se ainda que o louco entrou nesse mesmo dia em várias igrejas e aí cantou o seu requiem aeternam deo. Expulso dos templos e interrogado, ripostou sempre apenas isto: "Que são agora ainda estas igrejas senão os túmulos e os monumentos funerários de Deus?""
Mas, ao mesmo tempo, Nietzsche apercebe-se do afundamento que se segue. De facto, o júbilo perante o "acto mais grandioso da história", que foi a morte de Deus, é atravessado por estas perguntas terríveis: "Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta terra ao sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estaremos a sentir o sopro do espaço vazio? Não estará agora a fazer mais frio? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?"
Nietzsche anunciou a morte de Deus, mas fê-lo "sem triunfalismo nem euforia", como observa agudamente o filósofo Manuel Fraijó. De facto, percebeu que, sem Deus, soava "a hora do deserto, do vazio total, no niilismo completo". Serviu-se para isso de três metáforas: o mar esvazia-se, significando com isso que já não temos possibilidade de matar a nossa sede de transcendência e infinito; apaga-se o horizonte, e, portanto, ficamos sem o referente último de sentido; o sol separa-se da terra, isto é, o frio e a noite invadem tudo. E não é aí que estamos?
Nietzsche viverá atenazado entre o Deus que tem de morrer para ser possível o super-homem e a permanente nostalgia do Deus desconhecido. Foi ao Deus desconhecido que o jovem Nietzsche dirigiu esta oração: "Antes de prosseguir no meu caminho e lançar o meu olhar para a frente uma vez mais, elevo, só, as minhas mãos para ti na direcção de quem eu fujo. A ti, das profundezas do meu coração, tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, a tua voz me pudesse chamar. Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: "Ao Deus desconhecido." Teu sou eu, embora até ao presente me tenha associado aos sacrílegos. Teu sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo. Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servir-te. Eu quero conhecer-te, Desconhecido. Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida. Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero conhecer-te, só a ti quero servir."
O mesmo Nietzsche havia de confessar a Ida, a mulher do seu grande amigo F. Overbeck: "Nunca abandones a ideia de Deus. Eu abandonei-a; quero criar algo de novo, e não posso nem quero voltar atrás. Acabarei por sucumbir a esta paixão que me esfalfa constantemente. Vou-me desmoronando."

3. O pior do nosso tempo é o desinteresse. Já não se ergue a pergunta de abismo. E é como se Deus não existisse. Unamuno não se conformava: "Na ordem da cultura espero muito pouco daqueles que vivem desinteressados do problema religioso no seu aspecto metafísico."
Claro que o homem também vai morrendo, como escreveu Karl Rahner, o maior teólogo católico do século XX: "O homem só existe propriamente como homem quando diz "Deus", pelo menos como pergunta. A morte absoluta da palavra "Deus", uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o homem morreu."
Mas, afinal, será que Deus morreu? Não, Deus não morreu, fez-se Dinheiro, diz, com razão, o filósofo G. Agamben. E metamorfoseou-se de tal modo que agora o que há é o "ateísmo libertino", na expressão do filósofo uruguaio A. Methol Ferré, que, numa conferência em Lima em 1992 - cito a partir da reflexão de N. Tenaillon, em Dans la Tête du Papa François -, perguntava se tínhamos entrado num "interregno global" marcado por uma profundíssima crise dos valores, e respondia que a queda de um dos pólos da diarquia mundial, a União Soviética, e a sua difusão do ateísmo messiânico, tiveram como consequência "fazer ganhar o outro pólo, esse empenhado num empreendimento devastador, o da chegada de uma sociedade niilista". O novo ateísmo "mudou radicalmente de aspecto. Não é messiânico, mas libertino. Não é revolucionário no sentido social, mas cúmplice do statu quo. Não se interessa com a justiça, mas com tudo o que permite cultivar um hedonismo radical. Não é aristocrático, transformou-se num fenómeno de massa". Ao recusar toda a metafísica e, num gesto antiplatónico, ao cair num esteticismo desligado do Verdadeiro e do Bem, favorece um individualismo narcisista sem moral, em que o outro não conta como "pessoa", comenta Tenaillon.
As consequências deste ateísmo libertino na vida pessoal, moral, económico-financeira, procriadora, social, eclesial, militar, política, podem ser devastadoras. Como está à vista de quem quiser ver.

Padre e professor de Filosofia

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