1. Marion Gräfin Dönhoff, uma prestigiada jornalista e intelectual alemã do pós-guerra, co-editora do semanário Die Zeit, escreveu, pouco tempo antes de morrer: "O fixar-se exclusivamente no aquém, que corta o Homem das suas fontes metafísicas, e o positivismo total, que se ocupa apenas com a superfície das coisas, não podem dar às pessoas um sentido duradouro e estável, e, por isso, levam à frustração."
2. Paradoxalmente, Nietzsche, o profeta do ateísmo, é testemunha disso. Aquele que, filho de um pastor protestante, fora uma criança piedosa e estudara Teologia, havia de proclamar publicamente, em 1882, através de um louco, em A Gaia Ciência, a morte de Deus: "Deus morreu! Deus está morto! E fomos nós que o matámos!" E continua: "Conta-se ainda que o louco entrou nesse mesmo dia em várias igrejas e aí cantou o seu requiem aeternam deo. Expulso dos templos e interrogado, ripostou sempre apenas isto: "Que são agora ainda estas igrejas senão os túmulos e os monumentos funerários de Deus?""
Mas, ao mesmo tempo, Nietzsche apercebe-se do afundamento que se segue. De facto, o júbilo perante o "acto mais grandioso da história", que foi a morte de Deus, é atravessado por estas perguntas terríveis: "Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta terra ao sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estaremos a sentir o sopro do espaço vazio? Não estará agora a fazer mais frio? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?"
Nietzsche anunciou a morte de Deus, mas fê-lo "sem triunfalismo nem euforia", como observa agudamente o filósofo Manuel Fraijó. De facto, percebeu que, sem Deus, soava "a hora do deserto, do vazio total, no niilismo completo". Serviu-se para isso de três metáforas: o mar esvazia-se, significando com isso que já não temos possibilidade de matar a nossa sede de transcendência e infinito; apaga-se o horizonte, e, portanto, ficamos sem o referente último de sentido; o sol separa-se da terra, isto é, o frio e a noite invadem tudo. E não é aí que estamos?
Nietzsche viverá atenazado entre o Deus que tem de morrer para ser possível o super-homem e a permanente nostalgia do Deus desconhecido. Foi ao Deus desconhecido que o jovem Nietzsche dirigiu esta oração: "Antes de prosseguir no meu caminho e lançar o meu olhar para a frente uma vez mais, elevo, só, as minhas mãos para ti na direcção de quem eu fujo. A ti, das profundezas do meu coração, tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, a tua voz me pudesse chamar. Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: "Ao Deus desconhecido." Teu sou eu, embora até ao presente me tenha associado aos sacrílegos. Teu sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo. Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servir-te. Eu quero conhecer-te, Desconhecido. Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida. Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero conhecer-te, só a ti quero servir."
O mesmo Nietzsche havia de confessar a Ida, a mulher do seu grande amigo F. Overbeck: "Nunca abandones a ideia de Deus. Eu abandonei-a; quero criar algo de novo, e não posso nem quero voltar atrás. Acabarei por sucumbir a esta paixão que me esfalfa constantemente. Vou-me desmoronando."
3. O pior do nosso tempo é o desinteresse. Já não se ergue a pergunta de abismo. E é como se Deus não existisse. Unamuno não se conformava: "Na ordem da cultura espero muito pouco daqueles que vivem desinteressados do problema religioso no seu aspecto metafísico."
Claro que o homem também vai morrendo, como escreveu Karl Rahner, o maior teólogo católico do século XX: "O homem só existe propriamente como homem quando diz "Deus", pelo menos como pergunta. A morte absoluta da palavra "Deus", uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o homem morreu."
Mas, afinal, será que Deus morreu? Não, Deus não morreu, fez-se Dinheiro, diz, com razão, o filósofo G. Agamben. E metamorfoseou-se de tal modo que agora o que há é o "ateísmo libertino", na expressão do filósofo uruguaio A. Methol Ferré, que, numa conferência em Lima em 1992 - cito a partir da reflexão de N. Tenaillon, em Dans la Tête du Papa François -, perguntava se tínhamos entrado num "interregno global" marcado por uma profundíssima crise dos valores, e respondia que a queda de um dos pólos da diarquia mundial, a União Soviética, e a sua difusão do ateísmo messiânico, tiveram como consequência "fazer ganhar o outro pólo, esse empenhado num empreendimento devastador, o da chegada de uma sociedade niilista". O novo ateísmo "mudou radicalmente de aspecto. Não é messiânico, mas libertino. Não é revolucionário no sentido social, mas cúmplice do statu quo. Não se interessa com a justiça, mas com tudo o que permite cultivar um hedonismo radical. Não é aristocrático, transformou-se num fenómeno de massa". Ao recusar toda a metafísica e, num gesto antiplatónico, ao cair num esteticismo desligado do Verdadeiro e do Bem, favorece um individualismo narcisista sem moral, em que o outro não conta como "pessoa", comenta Tenaillon.
As consequências deste ateísmo libertino na vida pessoal, moral, económico-financeira, procriadora, social, eclesial, militar, política, podem ser devastadoras. Como está à vista de quem quiser ver.
Padre e professor de Filosofia