É no presente que a vida acontece e é nele que se torna possível caminhar para a plenitude que desejamos, porque a ela somos chamados. Quando se recua cinquenta anos na memória do tempo vivido, já pouco se encontra de nós, além de nós próprios que persistimos ainda e das nossas vivências. Iguais, mas diferentes, parecendo que veio de um sonho para viver outro sonho.
Quem não tem passado, tem mais dificuldade em perceber o presente. As pessoas e as coisas, tal como as plantas, têm raízes e estas são quase sempre ocultas. Delas, porém, vem a vida e a sua razão de ser. Nada por acaso, nada a nascer já feito, nada a ser perfeito antes do tempo, nada que dispense a colaboração pessoal.
O mundo de hoje não tem só as desgraças e as coisas de que todos se vão queixando. Está, também, cheio de riquezas naturais e humanas, de renovadas possibilidades e conquistas que antes nem se podiam imaginar, e não passavam de “ficções científicas”, que recheavam romances empolgantes para gente nova e menos nova. A maior das aventuras era para jovens sonhadores a “a volta ao mundo em oitenta dias”, que, então, não passava de um sonho que permitia voar nas asas da imaginação.
Mundo novo, mundo rico de oportunidades alargadas, de riquezas diversas hoje mais acessíveis, mundo globalizado e sem quaisquer fronteiras, possibilidades diversas de usufruir o património cultural, condições para usar a liberdade de opinião e expressão, mundo em que muitas coisas que ontem se mendigavam, hoje se esbanjam…
Se no bojo enriquecido da sociedade em que vivemos vai a riqueza da liberdade, da solidariedade, da cultura multiforme, dos compromissos pela justiça e pela paz, da vontade eficaz do bem, dos valores morais e éticos mais universais, dos apelos de transcendência libertadora, também neste bojo coabitam sementes empobrecedoras de egoísmo, orgulho, desprezo dos outros, insensibilidade a situações dolorosas necessidades básicas, ânsia incontida de ter, poder e gozar, prepotência física e moral sob muitas formas, tentação de pôr o emotivo e o imediato a comandar a vida, não aceitação da dependência pessoal e social, presunção de ser dono dos outros…Tudo até que o coração aqueça e se abra…
Hoje podem ler-se, com melhor compreensão e mais responsabilidade, as ameaças da natureza não respeitada, as manchas incómodas mais graves e preocupantes da pobreza, como a fome que alastra, desemprego que cresce, as doenças sem cura, a crescente e fomentada fragilidade das famílias, a perda de sentido na vida de muita gente, a insensibilidade frente às injustiças, mentiras, prepotências, a violência e todas as formas de exploração do homem pelo homem, o egoísmo na procura do bem estar, os privilégios escandalosos de uns poucos a afrontar as carências injustas de muitos… Num clima assim percebem-se os jogos do poder, o desrespeito pela democracia, a sobreposição dos interesses particulares aos colectivos, as portas e janelas fechadas ao sobrenatural e ao transcendente.
Dar à pessoa humana, em tudo, o lugar primeiro; reconhecer à natureza criada a sua dignidade; alargar o círculo da responsabilidade; hierarquizar, com sabedoria, capacidades e necessidades; colocar de novo o bem comum como objectivo da acção política e social; deixar o espírito soltar-se rumo ao bem; aceitar, com alegria, a força determinante da humildade, do diálogo e do serviço aos outros, será o caminho comum de edificação de um mundo que não seja de ricos ou de pobres, mas de todos.
Apostar nas riquezas pessoais e nas possibilidades da natureza criada, duas dádivas gratuitas e únicas do Criador, tornou-se uma urgência num mundo à deriva. Mas não é menor urgência que cada um de nós olhe à nossa volta as situações graves de pobreza e se interrogue, consequentemente, sobre o que pode fazer, não apenas com palavras.
António Marcelino