sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Anselmo Borges - O Menino Jesus de Fernando Pessoa


"O seu Menino Jesus representa a procura terna e eterna da paz e da reconciliação, na simplicidade daquele Menino eternamente criança e humano."

1 - Ainda era Outubro e já havia anúncios comerciais lembrando o Natal. Já se esqueceu que o Natal de Jesus é o Natal do Emanuel, o Deus connosco, e, consequentemente, o Natal da dignidade divina da pessoa humana, da liberdade, da fraternidade, dos direitos humanos, da igualdade radical de todas as pessoas. Isso foi lembrado pelos grandes: Hegel, Ernst Bloch, Jürgen Habermas, entre outros. Esquecendo o essencial, fica-se afundado na correria das compras e na concorrência opressiva das prendas, dentro da sofreguidão consumista insaciável, lembrando o velho mito do tonel das Danaides. E será o inessencial e o cansaço.

2 - Fernando Pessoa, o génio da melhor literatura mundial de sempre, também confessou o seu cansaço. Mas, ele, ele era por causa do mais profundo e essencial: o pensar: "O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,/Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo." "O que há em mim é sobretudo cansaço/ (...)/ Um supremíssimo cansaço/íssimo, íssimo, íssimo,/Cansaço..." Por isso, suspirava por voltar à inocência dos tempos de criança. O Menino Jesus seria o reencontro da inocência perdida: "Num meio-dia de fim de Primavera/Tive um sonho como uma fotografia./Vi Jesus Cristo descer à terra./Veio pela encosta de um monte/Tornado outra vez menino,/A correr e a rolar-se pela erva/E a arrancar flores para as deitar fora/E a rir de modo a ouvir-se de longe./Tinha fugido do céu. Era nosso de mais para fingir/De segunda pessoa da Trindade./(...)/ No céu tinha de estar sempre sério/(...)./Um dia que Deus estava a dormir/E o Espírito Santo andava a voar,/Ele foi à caixa dos milagres e roubou três./Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido./Com o segundo criou--se eternamente humano e menino./Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz/E deixou-o pregado na cruz que há no céu/E serve de modelo às outras./Depois fugiu para o Sol/E desceu pelo primeiro raio que apanhou./Hoje vive na minha aldeia comigo/É uma criança bonita de riso e natural./(...)/A mim ensinou-me tudo./(...)/Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro./Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava./Ele é o humano que é natural,/Ele é o divino que sorri e que brinca./E por isso é que eu sei com toda a certeza/Que ele é o Menino Jesus verdadeiro./ (...)/A Criança Eterna acompanha-me sempre./A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando./O meu ouvido atento alegremente a todos os sons/São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas./Damo-nos tão bem um com o outro/Na companhia de tudo/Que nunca pensamos um no outro,/Mas vivemos juntos e dois/Com um acordo íntimo,/Como a mão direita e a esquerda./Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas/(...)/Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens/E ele sorri, porque tudo é incrível./Ri dos reis e dos que não são reis,/E tem pena de ouvir falar das guerras,/E dos comércios, e dos navios/Que ficam fumo no ar dos altos mares./Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade/Que uma flor tem ao florescer/E que anda com a luz do Sol/A variar os montes e os vales/E a fazer doer aos olhos os muros caiados./Depois ele adormece e eu deito-o./Levo-o ao colo para dentro de casa/E deito-o, despindo-o lentamente/E como seguindo um ritual muito limpo/E todo materno até ele estar nu./Ele dorme dentro da minha alma/E às vezes acorda de noite/E brinca com os meus sonhos./Vira uns de pernas para o ar,/Põe uns em cima dos outros/E bate as palmas sozinho/Sorrindo para o meu sono./... Quando eu morrer, filhinho,/Seja eu a criança, o mais pequeno./Pega-me tu ao colo/E leva-me para dentro da tua casa./Despe o meu ser cansado e humano/E deita-me na tua cama./E conta-me histórias, caso eu acorde,/Para eu tornar a adormecer./E dá-me sonhos teus para eu brincar/Até que nasça qualquer dia/Que tu sabes qual é./... Esta é a história do meu Menino Jesus./Por que razão que se perceba/Não há-de ser ela mais verdadeira/Que tudo quanto os filósofos pensam/E tudo quanto as religiões ensinam?"
Em apontamentos soltos, o próprio Fernando Pessoa reconheceu que escreveu "com sobressalto e repugnância o poema oitavo de O Guardador de Rebanhos com a sua blasfémia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto", dizendo ao mesmo tempo: "Na minha pessoa própria, nem uso da blasfémia nem sou antiespiritualista." O seu Menino Jesus representa a procura terna e eterna da paz e da reconciliação, na simplicidade daquele Menino eternamente criança e humano.
Fernando Pessoa "ele mesmo" - ele era muitos, como cada um de nós é muitos; se assim não fosse, como poderíamos entender-nos uns aos outros e a nós próprios? - também escreveu: "Grande é a poesia, a bondade e as danças.../Mas o melhor do mundo são as crianças,/Flores, música, o luar e o sol, que peca/Só quando em vez de criar, seca./O mais que isto/É Jesus Cristo,/Que não sabia nada de finanças/Nem consta que tivesse biblioteca..." E assim chega mesmo a caminhar de mãos dadas com Deus: "Por isso, a cada passo/Que meu ser triste e lasso/Sente sair do bem/Que a alma, se é própria, tem,/Minha mão de criança/Sem medo nem esperança/Para aquele que sou/Dou na de Deus e vou."

3 - Fica aqui o meu mais vivo desejo de Boas Festas para todos, lembrando que o essencial do Natal é Jesus, como disse o Papa Francisco no passado dia 17, quando fez 81 anos: "Se retirarmos Jesus, o que é o Natal? Uma festa vazia."

Anselmo Borges no Diário de Notícias

Georgino Rocha — De Maria, nasce Jesus, o Filho de Deus


Convite aceite

Deus bate à porta de um par de noivos, surpreende-os nos seus sonhos familiares e faz-lhes uma proposta aliciante, embora estranha e perturbadora. Quer dar início à nova fase do projecto que tem em curso desde a criação do mundo: repor a dignidade original do ser humano que, entretanto, tinha sido ferida pelo pecado, e abrir-lhe os horizontes de novidade insuspeitos.
Os noivos habitam em Nazaré, são gente humilde e honrada, vivem os esponsais e aguardam, em esperança confiante, a fase que se segue: habitar juntos. Ela é Maria e ele, José. Cada um, a seu modo, tem o coração posto no futuro que se avizinha. Ambos, sem dúvida, partilham a expectativa messiânica, como bons judeus, e aguardam a sua realização. Ambos são surpreendidos pelo convite do enviado de Deus que pretende a sua colaboração generosa e pede a aceitação correspondente. Maria vai ser a Mãe do Filho de Deus, o Emanuel, a quem será dado o nome de Jesus. José terá a missão de velar pela família e garantir o seu sustento, ser responsável legal, inserir na história que remonta a David a nova situação criada.
Lucas e Mateus, autores dos relatos destes episódios como eram vividos pelas comunidades a que dirigiam os seus escritos, mostram a reacção de perturbação e medo dos convidados. Em tons diferentes e propósitos diversos. Nem era para menos! Imagine cada um o sobressalto que teria se a “coisa” fosse consigo. O enviado de Deus dá explicações que reforçam a grandeza da missão que lhes vai ser confiada e o desejo intenso de que aceitem. O que vem a acontecer, felizmente. E deixa a claro o respeito pela liberdade humana, iluminada pela verdade descoberta e assumida.
O domingo, que celebramos hoje, traz-nos a figura de Maria, ficando a de José para outra vez. Vamos seguir os passos do texto proclamado. Está elaborado, em estilo claro e atraente, para ser um ensinamento sapiencial à maneira de memória agradecida pelo que aconteceu e não tanto para fazer um relato histórico, como agora se entende.
É encantador o modo como o Anjo se aproxima de Maria: “Tendo entrado onde ela estava”, diz o narrador. Que suavidade e delicadeza! Nada que se compare a visitas ou aparições temerosas como a alguns profetas ou mesmo a Saulo de Tarso. Parece que pede licença para lhe falar ou que quer identificar o espaço em que habita: uma casa de família, onde decorre a vida normal. Nada de esplendoroso como o Templo de Jerusalém onde acontece o anúncio a Zacarias de que ia ser pai de João. A escolha do Anjo é significativa e indicia o valor do quotidiano, da ocupação diária, do tempo, do corpo, da relação entre as pessoas, da interioridade pessoal e da consciência iluminada pela razão inteligente e pela fé esclarecida. E deixa-nos o convite a valorizar o nosso dia-a-dia, as tarefas chamadas rotinas, onde o amor discreto quer brilhar.
“Alegra-te, cheia de graça”, assim começa a saudação do anjo visitador. Dá-lhe um novo nome. Ela é Maria por registo familiar; agora é a cheia de graça por indicação divina; no fim do diálogo, vai ser a serva do Senhor por decisão pessoal. É sempre a mesma jovem, filha de Ana e de Joaquim, seus humildes pais.
“O Senhor está contigo”. Por isso, não temas. Serena. Escuta o que Deus sonha para a humanidade por meio de ti: O Filho do Altíssimo, o herdeiro das promessas a David, aquele que vai iniciar um reinado sem fim, esse nascerá de ti por acção do Espírito Santo. E Maria evolui interiormente: Da perturbação e perplexidade face ao anúncio, passa à pergunta de esclarecimento, ao assentimento e abandono confiante expresso na entrega incondicional: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”.
Gabriel, o anjo visitador, faz memória de alguns feitos de Deus para libertar o coração de Maria da perturbação sentida. E ela escuta e atende. Esta atitude diz-nos que a fé em nós nasce da palavra, que há necessidade de conservar no coração o que vem da parte de Deus, que só a coerência de vida é resposta adequada ao seu acolhimento incondicional. Como seria bom cultivarmos o amor à Palavra de Deus que abre novos espaços à nossa vida!
Após receber o consentimento de Maria, a serva do Senhor, o anjo retirou-se. Como chegou, assim partiu. Sem mais recomendações, nem alaridos. Com plena confiança, deixa o precioso legado a germinar nas entranhas da que vai ser Mãe. Com plena liberdade. E responsabilidade, também. Que respeito e discrição! Aqui e agora, o silêncio de Deus mostra toda a sua fecundidade. E a sua transcendência toma o rosto sereno de uma criança prestes a nascer.

Georgino Rocha

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Já estamos no Inverno


Já estamos no Inverno. Oxalá ele venha com chuva, mas não com frio. No inverno da vida, precisamos muito de temperaturas mais amenas, se possível. Contudo, a chuva própria desta estação faz muito jeito a toda a natureza, incluindo as pessoas. A água é já um bem escasso em muitos recantos do mundo, pelo que será bom lembrar que importa preservá-la, poupando-a e evitando a poluição. E que nos lembremos também de quem vive em zonas áridas, sem água à vista. 
Para elucidar os meus habituais leitores, sirvo-me hoje de um texto que transcrevo do Observatório Astronómico de Lisboa. Leia, por favor: 

«Este ano o Solstício de Inverno ocorre no dia 21 de Dezembro às 16h 28min. Este instante marca o início do Inverno no Hemisfério Norte, estação mais fria do ano. Neste dia, o sol no plano da eclíptica passará pela declinação mínima (latitude ao equador) de -23° 26′ 5″, atingindo o máximo de fluxo de energia solar (J/m2) no hemisfério sul do planeta.
Produz também um dos dias mais curtos do ano no hemisfério norte: apenas 9h e 27min 4s em Lisboa. O dia 21 é igualmente curto até à casa dos segundos. A duração do dia será de: 9h e 8minem Bragança; 9h e 12min no Porto; 9h e 18min em Coimbra; 9h e 21min em Castelo Branco; 9h e 29min em Évora; 9h e 33min em Ponta Delgada; 9h e 37min em Faro; 10h e 0min no Funchal;
Esta estação prolonga-se por 88,99 dias até ao próximo Equinócio que ocorre no dia 20 de Março de 2018 às 16h 15min.
Solstícios: pontos da eclíptica em que o Sol atinge as posições máxima e mínima de afastamento (altura) em relação ao equador, isto é, pontos em que a declinação do Sol atinge extremos: máxima no solstício de Verão e mínima no solstício de Inverno.
A palavra de origem latina (Solstitium) está associada à ideia de que o Sol devia estar estacionário, no movimento de afastamento ao equador, ao atingir a sua mais alta ou mais baixa posição no céu.»

O nosso Menino Jesus já está connosco


Razões diversas provocaram um atraso na chegada do Menino Jesus. Obras em casa têm os seus custos. Porém, tudo terminou a seu tempo, porque, afinal, é sempre tempo de nos revermos no nosso Menino Jesus que está na família há décadas. Em corpo e em espírito.
Um dia destes tentámos acertar as contas, mas as provas reais nunca bateram certo. Certo é que o nosso Menino Jesus, desde há muito, se apresenta vestido a rigor, não vá dar-se o caso de se constipar com o frio e a humidade próprios da quadra.
De facto, há bastantes anos a Lita pôs-se a meditar e chegou à conclusão de que Nossa Senhora, se visse como apresentam o seu e nosso Menino Jesus quase nuzinho,  nas igrejas e em espaços comerciais, mas ainda em casa de gente cristã, ficaria zangada, ela que tantos cuidados teve com o seu querido filho desde que o ofereceu a todos os homens de boa vontade. Depois dessa meditação, a Lita não hesitou e vestiu o nosso Jesus com roupinhas quentinhas e à sua medida, feitas com muita ternura. E assim ficou até hoje.

Bom Natal para todos.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Câmara de Ílhavo solidária com Pedrógão Grande





Não podendo passar ao lado da catástrofe dos incêndios que se abateram no nosso país, com as consequências dramáticas de todos conhecidas, nomeadamente na região de Pedrogão Grande, a Câmara Municipal de Ílhavo acaba de doar o bacalhau para um jantar de Natal promovido pela Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande e destinado a um universo de 200 pessoas dos concelhos atingidos pelos incêndios. Este jantar terá lugar em Castanheira de Pera no dia 25 de dezembro e nele deverá participar o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. A autarquia ilhavense faz jus à sua qualidade de Capital do Bacalhau. Trata-se de um gesto que me apraz registar. 

Fonte: CMI

Ponte-cais da Bestida renovada em 1938



Este é verdadeiramente um postal ilustrado (preto e branco) da ponte-cais renovada da Bestida, Murtosa, com data de 1938, a caminho, portanto, os 80 anos. Quem nos brindou com esta evocação foi o Porto de Aveiro com o intuito, garantidamente, de tornar presente marcas da passagem do tempo.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O LIVRO


"O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, 
um cego que guia, um morto que vive."

Padre António Vieira

Li no Citador

Nota: O Padre António Vieira, que viveu no séc. XVII, tinha realmente uma capacidade de síntese enorme. Nos sermões, obras primas da oratória e da arte de escrever, dizia grandes  verdades de forma tão simples e bela. Apreciem como numa  frase é capaz de ideias tão expressivas.

NATAL À BEIRA-RIO




É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta. 

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado... 

É noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra. 

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?


David Mourão-Ferreira,
in 'Obra Poética'

domingo, 17 de dezembro de 2017

Papa celebra o seu 81.º aniversário



O Papa Francisco completou hoje, 17 de dezembro, a bonita idade de 81 anos. Nesta hora, não posso deixar de admirar a sua paixão pela Trindade Divina, sendo responsável máximo pela Igreja que ama como provavelmente mais ninguém. 
Diariamente, sem cansaço nem tibiezas, sem medos nem hesitações, acorda o mundo para os frutos dos nossos comodismos e indiferenças, bem patentes nas injustiças dilacerantes que assolam milhões de seres humanos em todos os quadrantes da Terra. Sente-se envergonhado pelo mal que fazemos e pelo bem que não fazemos, pelos nossos orgulhos e preconceitos, mas também pelos nossos olhares de soslaio para quem tem fome e sede de justiça, pelas guerras que alimentamos e pela paz que nos recusamos a construir.
O Papa Francisco, que veio do outro lado do mundo para acordar uma Igreja adormecida, uma Igreja do luxo e de vaidades, não se cansa de bradar para que os católicos e demais homens de boa vontade saiam em força para as periferias, onde importa, quanto antes, levar Cristo aos deserdados, aos famintos de verdades salvíficas e do pão reconfortante, deixando os adros das igrejas à espera dos peregrinos que se perderam nos caminhos da vida por falta da Luz que ilumina valores de paz, alegria e fraternidade. O Papa quer uma Igreja pobre de bens e rica de amor para os feridos pela sociedade do descartável. Uma Igreja sem pompa imperial, mas aberta à partilha. 
Que Deus Todo Poderoso abençoe o Papa Francisco, são os meus votos.

Detesto ser enganado




Eu nunca gostei de ser enganado, mas há quem goste. Frequentemente deparo-me com gente que me quer impingir publicidade de alguém que faz curas milagrosas com «resultados máximos em 7 dias». E vai mais longe, o próprio ou o empregado do “espiritualista”: ajuda a resolver casos, «graves ou de difícil solução», tais como «saúde, amor, negócios, união familiar, desviar ou prender, afastar ou aproximar pessoas amadas, exames, doenças, vícios de alcoolismo e droga, impotência sexual, maus olhados, invejas, etc…» Também lê a sorte e faz trabalho à distância. Garante que o pagamento é feito após resultados. No papelinho, que encontrei preso no limpa-vidros do meu carro, estão bem claros os seus contactos, que não reproduzo para não alimentar tais publicidades.
Confesso que fico perplexo perante a indiferença das autoridades que permitem estes negócios, que também aparecem em alguns jornais, revistas e até televisões, dando pelo nome de cartomantes, horóscopos, tarot, búzios, bolas de cristal, pulseiras magnéticas, astrologia e equiparados, poderes de falar com o diabo ou com as almas do outro mundo, que nada têm de científico. E o povo, na sua ignorância, infantilidade mental, talvez desesperado, decerto à procura de sorte ou de riqueza sem trabalhar, vingativo e desejoso de fazer mal a alguém, procurando passar nos exames sem estudar, etc… etc…, vai na onda. 
Há tempos, uma dessas “artistas” que põem cartas na mesa, numa televisão, em resposta a uma pergunta de um consulente, disse: a menina Carolina (nome fictício) está bem de amores, há uns desentendidos, mas tudo vai ficar bem, brevemente. E o consulente atira: Olhe que a menina só tem quatro anos. A “artista” ficou atrapalhada… sorriu, e continuou o trabalhinho. E assim se ganha a vida à custa dos papalvos. E as autoridades, caladinhas. Será que essa gente paga impostos? Se calhar, é por isso. 

Fernando Martins

Bento Domingues — Jesus nasceu para descrucificar



“Jesus Cristo, com as palavras que lhe são atribuídas nos quatro evangelhos, é a figura que mais me interessa. Continuo a achar que, independentemente de ele ter dito aquelas palavras ou não, elas são as coisas mais extraordinárias que foram ditas à face da terra. Por exemplo, quando leio para mim o Novo Testamento estou num mundo maravilhoso que é só meu e me preenche muito, animicamente, espiritualmente. Apesar de ser um linguista crítico-histórico, não sou um ateu a traduzir a Bíblia. Serei sempre, até ao último segundo da minha vida, um apaixonado por esse judeu chamado Jesus de Nazaré.”

Frederico Lourenço


1. Estamos na quadra litúrgica do Advento, mas tudo parece encenado e polarizado apenas pela memória do nascimento de Jesus, alimentando um terno imaginário da infância, com alguma e passageira solidariedade, própria da estação, sem, no entanto, tocar nos alicerces da sociedade. É como se nada estivesse para acontecer.
Os textos das celebrações do Advento vão, pelo contrário, noutra direcção: é hoje que podemos acolher a graça da nossa transformação interior que nos associe, de forma activa, às mais diversas iniciativas sociais, culturais e políticas da construção de uma cultura da justiça e da paz, a nível local e global. O Espírito do Natal é Aquele que suscitou o canto subversivo de Maria de Nazaré.
As preocupações com as indispensáveis reformas das “cozinhas eclesiásticas” da Igreja, se não estiverem centradas no estilo da prática histórica de Jesus Cristo e nas urgências dos mais carenciados das nossas sociedades, acabam por nos fazer esquecer que somos nós, a Igreja, que precisamos de reforma permanente. 
Frederico Lourenço — a grande figura portuguesa da cultura bíblica fora das sacristias — recorda-nos que os Evangelhos têm, ainda hoje, em 2017, o potencial para mudar o mundo para radicalmente melhor. Sublinha comovido: “Jesus Cristo, com as palavras que lhe são atribuídas nos quatro evangelhos, é a figura que mais me interessa. Continuo a achar que, independentemente de ele ter dito aquelas palavras ou não, elas são as coisas mais extraordinárias que foram ditas à face da terra. Por exemplo, quando leio para mim o Novo Testamento estou num mundo maravilhoso que é só meu e me preenche muito, animicamente, espiritualmente. Apesar de ser um linguista crítico-histórico, não sou um ateu a traduzir a Bíblia. Serei sempre, até ao último segundo da minha vida, um apaixonado por esse judeu chamado Jesus de Nazaré.” [1]
Muitos anos antes, numa entrevista de 1978, Eduardo Lourenço mostrou a verdade da nossa condição, na própria referência cristã: “Cristo é o momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma humana. [...] Foi crucificado, não por querer ser deus, mas por ensinar o que era ser homem. Dois mil anos passaram sem que esquecêssemos nem aprendêssemos a lição.” [2]
Num belo livro, traduzido por José Sousa Monteiro, deparo com a confissão do marxista Milan Machovec: “O coração duma freira desconhecida que se dedica a uma criança incurável, só poderia ser substituída por uma teoria da história, por um estúpido e um idiota [...]. Pessoalmente, não me traria grande desgosto o facto de a religião acabar. Mas se tivesse de viver num mundo no qual Jesus fosse inteiramente esquecido, então preferia não continuar a viver” [3].
Como escreveu o dominicano E. Schillebeeckx, para Jesus, a história dos seres humanos é a narrativa de Deus acolhido ou recusado [4].

2. Para o imaginário do Evangelho de S. Lucas, a festa do nascimento de Jesus aconteceu num curral iluminado pela luz do céu, acompanhada pela música dos anjos e rodeado de pastores e estrangeiros. Tudo aconteceu à margem do Templo de Jerusalém e dos palácios imperiais. Aliás, Jesus com o comércio do Templo teve uma relação muito agreste e só conheceu os palácios quando estava a ser julgado e condenado à pena capital. A sua coroa foi de espinhos e o seu trono foi uma cruz.
Esta apresentação testemunha um profundo contraste, mas pode cair na perversão do próprio Evangelho de Cristo, sugerindo que Jesus veio sacrificar-se e semear mais sacrifícios no mundo. Porque será mantida a cruz como símbolo cristão, quando o que Jesus procurava era, precisamente, descrucificar?
A minha hipótese de interpretação é outra, bastante simples, mas que importa explicar. A cruz, a sentença de morte mais bárbara e cruel, fazia parte do mundo que Jesus queria mudar. Então, por que continua a funcionar como um símbolo cristão, quando ela é anti-humana, anticristã?
Ao contrário do que se repete há séculos, Jesus Cristo não desejou nem santificou a cruz. Alterou-lhe, porém, a significação de forma radical. Foi-lhe imposta, num julgamento iníquo, por ele recusar trair o seu projecto. Tornou-se, deste modo, o símbolo da fidelidade inquebrantável, o signo da extrema generosidade. A presença de sinais da cruz, desde o baptismo até à morte, diz que é preciso dizer não à crucifixão da vida e dizer sim à generosidade libertadora, no dia-a-dia.
Tudo isto vem confirmado no trecho do Evangelho escolhido para a celebração da Eucaristia, do passado dia 6: estava Jesus sentado junto ao mar da Galileia e uma grande multidão veio ter com ele e lançou-lhe, aos pés, coxos, aleijados, cegos, mudos e muitos outros [5].
Se o mestre fosse um pregador de sacrifícios dizia-lhes: estais mal? Ainda bem. Assim podeis santificar-vos e, um dia, sereis muito felizes no céu.

3. Jesus não acreditava nessa mística. Curou-os e organizou, com pouca coisa, um grande banquete popular. A multidão ficou admirada ao ver os mudos a falar, os aleijados a ficar sãos, os coxos a andar, os cegos a ver e todos a comer até sobrar.
Poder-se-á dizer: porque não deixou a fórmula? Seria uma alternativa muito barata dos serviços de saúde, públicos e privados. Mas ele não veio para nos substituir.
Já na apresentação do seu programa, em Nazaré, ficou claro que o mundo tinha de começar mesmo a mudar. Deus não podia ser o da ira de Iavé, mas o da pura graça do amor. Diz a narrativa evangélica que, nesse momento, os seus conterrâneos o julgaram um subversivo e, por isso, quiseram acabar logo com ele [6].
Os seus comportamentos eram, de facto, estranhos: andava em más companhias, com quem comia e bebia, a ponto de lhe chamarem “comilão e beberrão”; aceitou o convívio de mulheres que não eram todas exemplos de virtude; violava, sistematicamente, o Sábado — o dia mais sagrado da sua religião — com curas que bem podia fazer noutros dias [7].
Não deixou fórmulas ou receitas que pudessem ser transformadas em rituais. A sua prática é um desafio à imaginação de todos os homens e mulheres, de todos os tempos, a usarem os seus talentos, as suas capacidades, não para cavar distância entre ricos e pobres, mas para as eliminar, pois não suporta ver uns à porta e outros à mesa, uns em banquetes requintados e outros na miséria [8].

Frei Bento Domingues no PÚBLICO


[1] Frederico Lourenço, Entrevista, in Ler, Outubro 2017, n.º 147
[2] Eduardo Lourenço, in Opção, n.º 97, pp. 2-8, Março 1978
[3] Cf. VV. AA., Os marxistas e Jesus, Iniciativas Editoriais, Lisboa 1976, pp. 88 e 98
[4] Edward Schillebeeckx, L’histoire des hommes, récit de Dieu, Cerf, Paris 1992
[5] Mt 15, 29-37
[6] Lc 4, 16-30
[7] Lc 7; 8; 13, 10-17
[8] Lc 16, 19-31

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Papa Francisco: Parece que o nosso Deus quer cantar-nos uma canção de embalar



Anselmo Borges — O Sagrado e a crítica



1. Na noite do passado dia 7, estava eu no aeroporto da Madeira, já de regresso, após duas conferências, no Funchal e em Machico, quando recebo um telefonema do meu colega da Universidade de Coimbra, Victor Lobo, químico de renome internacional. Estava indignado com o programa Mata-Bicho, no qual se tinha produzido, pouco antes das notícias das 17 horas, na Antena 1, uma inqualificável fala sobre a festa de Nossa Senhora da Conceição, no dia seguinte. Já no continente, pude ouvi-la, e dei razão ao meu colega. Porque é uma javardice reles.
Devo confessar que pessoalmente não me sinto ofendido e também dizer que o seu autor não ofende propriamente os católicos, muito menos Nossa Senhora, Jesus Cristo e Deus. Com aquele discurso soez e boçal, o autor ou autores o que ofenderam foi a inteligência. E lembrei-me de uma prosa recente de Ricardo Araújo Pereira, cáustica e mordaz, "Discriminar como Jesus discriminou", a propósito de declarações do cardeal-patriarca sobre a homossexualidade dos clérigos e o caso do padre madeirense. Comparada com a fala do Mata-Bicho, imbecil, tem uma diferença abissal: o brilho da inteligência, obrigando a pensar.

2. Foi Kant que viu bem, quando, numa declaração irrenunciável, afirmou: "O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado", e isso "sobretudo nas coisas da religião". Esta, "apesar da sua majestade", não pode considerar-se imune à crítica. Mostraria fraqueza uma religião que não admitisse a crítica. Ai de nós se não houvesse críticos da religião, que chamam a atenção para aspectos das religiões tantas vezes ridículos, supersticiosos e inumanos! Assim, o crente até com a crítica soez e boçal saberá aprender, para exprimir o sentido correcto dos textos, aplicando os métodos científicos, exegético-hermenêuticos. Exemplos, a propósito da data natalícia:

2.1 O que é que verdadeiramente se celebra na festa da Imaculada Conceição? Maria foi concebida sem pecado original. Mas o mesmo é preciso dizer de todos os seres humanos: nascem todos sem pecado e espera-se que tenham sido gerados no amor. Foi Santo Agostinho concretamente que, na tentativa de explicar o mal no mundo, teorizou sobre o pecado de Adão e Eva, que foi o primeiro e seria herdado por todos. Jesus, porém, nunca falou em pecado original. Todos pecamos e Jesus é o Salvador de todos. E Maria é grande, não primariamente por ser a mãe de Jesus, mas porque é a primeira cristã, que acreditou no seu Filho e se converteu ao seu Evangelho, que é ele mesmo, notícia boa e felicitante para todos. Acompanhou-o sempre, até à Cruz. Ele é o Messias esperado, mas não um Messias guerreiro como se esperava. Jesus anunciou, por palavras e obras, o Deus bom, não vingativo, amigo de todos os homens e mulheres, que compreende e perdoa e cujo único interesse é a realização plena de todos. E foi um novo começo...

2.2 Maria foi virgem? Nem os Evangelhos nem a teologia são tratados de biologia. A fé cristã afirma que Jesus é homem verdadeiro, em tudo igual aos homens excepto no pecado. Mas ele é de tal modo humano, tão plena e decisivamente humano, que só pode ser divino: é a humanização de Deus. Só Deus poderia ser assim, a ponto de o próprio centurião romano, ao vê-lo morrer na cruz, ter confessado: "Verdadeiramente este homem era Filho de Deus."

2.3 Jesus teve irmãos e irmãs? Os Evangelhos dizem que sim. Que mal há nisso? A Igreja não é favorável a famílias numerosas?

2.4 Vem aí o Natal. E eu sinto e penso que é uma época belíssima de amor e de ternura, a viver no aconchego das famílias e naquela beleza inocente de presépios e festividades populares. Mas percebendo o seu sentido autêntico e verdadeiro, no mais profundo do humano, que é divino.
Assim, é preciso que se saiba que os chamados Evangelhos da infância só aparecem em São Mateus e São Lucas e não pretendem relatar acontecimentos históricos, à maneira da nossa história crítica. São reflexões teológicas, a partir já da fé em Jesus como o verdadeiro Messias esperado e o Salvador de Deus para toda a humanidade. Portanto:

2.4.1 Perguntam-me: Jesus nasceu em Belém? É quase certo que nasceu em Nazaré. Então, porque é que os evangelistas o põem a nascer em Belém? Porque, se ele é realmente o Messias, tem de ser da descendência de David e, por isso, nascer em Belém. Lá está no Evangelho segundo São Lucas: "O Senhor Deus vai dar-lhe o trono de seu pai David."

2.4.2 Os anjos apareceram aos pastores e os reis magos vieram do Oriente? Esse anúncio e essas belas estórias têm um significado teológico-doutrinal imenso: são modos de comunicar que Jesus veio para os mais pobres e humildes e não veio só para um povo, mas para todos os povos. O Reino que Jesus anunciou, Reino da alegria, da paz, da justiça universal, do amor, da liberdade, da fraternidade, da igualdade, da vida eterna, é o Reino de Deus para todos. E faz-se aparecer uma estrela no céu, porque Jesus é a verdadeira Luz que a todos ilumina.

2.4.3 Jesus foi exilado para o Egipto? Não. Quando os discípulos acreditaram que Jesus é o Messias verdadeiro e universal, o libertador do mal, do pecado, da injustiça, da morte - Deus é amor e, na morte, não caímos no nada, mas entramos na plenitude da vida de Deus -, então apresentaram esta estória da fuga para o Egipto, para que se compreendesse que ele é o verdadeiro Moisés, o libertador definitivo. É mais do que Moisés.

2.4.4 Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro? Como sabê-lo, se não há nenhum documento? Mas é uma belíssima data, pois veio substituir a festa do nascimento anual do deus Sol (natalis Solis invicti: nascimento do Sol invicto), no solstício de Inverno. Na perspectiva da fé, o Sol verdadeiro, invencível, é Jesus, e assim se comemora a partir do século III no dia 25 de Dezembro.

Anselmo Borges no DN

Georgino Rocha - Descobri quem está no meio de vós



Apelo de João, a testemunha

João, a testemunha de Jesus, está no rio Jordão com as numerosas pessoas que tinham escutado o seu apelo. Arrependidas, querem receber o batismo da penitência por meio do rito da água purificadora. Provindos da outra margem, chegam também sacerdotes e levitas enviados pelos judeus de Jerusalém. São uma espécie de inquiridores, uma delegação credenciada para averiguar o que estava a acontecer, a começar pela identidade de João. E as perguntas, claras e directas, surgem de imediato. E a justificação, também: “Dar uma resposta àqueles que nos enviaram”. Não vinham por sua iniciativa nem agem por conta própria; são mandatados pelos notáveis da cidade e funcionários do Templo; pelos que estavam bem com a situação.

João responde com grande transparência. Faz brilhar a luz de quem é testemunha. Afirma que é a voz e não a palavra nem o profeta, que apenas baptiza na água, que “vai chegar Alguém depois de mim”. E lança o apelo/desafio: “Conhecei-o porque Ele está no meio de vós”. E na sua simplicidade e modéstia, brilha a grandeza da missão do “homem enviado por Deus”, como atesta o início do texto hoje proclamado na liturgia. 

O relato do Evangelho não desvenda a reacção dos sacerdotes e levitas. Mas não é difícil de imaginar. Seria um misto de desconforto e perplexidade, de preocupação interpelante e de curiosa expectativa. Menos ainda se fica a saber a atitude dos judeus de Jerusalém depois de receberem a informação. Para o narrador isso não interessa, pois quer centrar o leitor no núcleo da mensagem e não oferecer motivos de dispersão. “Alguém está no meio de Vós”. João é a testemunha. O local da ocorrência é Betânia, além do Jordão. É preciso reconhecê-lo.

A certeza de que Jesus está no meio de nós, ainda que de  forma anónima e despercebida, desperta um duplo sentimento: O da alegria que preenche o coração humano e o inunda de esperança; e o da busca que a consciência iluminada pela fé está chamada a fazer. São estes os alicerces que a liturgia de hoje pretende realçar e celebrar.

A alegria tem a sua fonte primeira no encontro pessoal com Jesus Cristo, no diálogo de amizade consequente, na aceitação dos seus ensinamentos, no seguimento do seu estilo de vida. A consciência, que quer ser livre e agir responsavelmente, precisa da “alavanca” da verdade e do amor, da compreensão de si e da relação correcta com os outros e seus contextos culturais e sociais. E fica-nos o apelo/convite: “Alguém está no meio de vós”, isto é no santuário da consciência pessoal e comunitária, familiar e colectiva onde predomina o bom senso e o bem comum. Por isso, fazei silêncio no vosso coração. Há tantos ruídos a habitar-nos. Sobretudo em certos ambientes. Protegei-vos para O reconhecer e escutar. Com Ele, é mais fácil perceber que as vozes do tempo são portadoras de aspirações genuínas onde ressoa o Espírito de Deus. E, como João, sede testemunhas da luz, sempre pronta a irradiar. Há tanta treva a semear confusão.

“O mais grandioso que pode fazer um ser humano neste mundo, afirma J. M. Castillo, é ser testemunha de Jesus, dizer com a própria forma de vida que Jesus é a esperança que nos resta e o futuro que temos”.

Ser testemunha é ver “como a terra faz brotar os germes e o jardim germinar as sementes” e descobrir: “Assim o Senhor Deus fará brotar a justiça e o louvor diante de todas as nações”, afirma Isaías na primeira leitura.

A certeza de que o Senhor está connosco e realiza o que promete, leva o salmista a exultar de alegria e a fazer-nos rezar o hino de Maria de Nazaré, a Senhora do Advento, a Mãe de Jesus que vai chegar no Natal que se aproxima. E com esta oração singular, a contemplar o modo de agir de Deus que realiza a salvação de cada pessoa e de toda a humanidade a partir dos humildes em relação a si, dos mansos (activos não violentos) em relação aos outros e às injustiças, dos famintos de dignidade que, reconhecida e assumida, visa derrubar as estruturas do poder opressor e transformar a ordem estabelecida para que brilhe a fraternidade humana e a harmonia da criação.

Escuta o apelo de João. Medita na atitude de Maria. Descobre e reconhece que Jesus está no meio de nós e quer agir connosco e por nós.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Hoje acordei assim...

Hoje acordei assim. O frio que tanto temo, o olhar distante e pensativo, a recordação da Nazaré e a roupa que me apeteceu vestir, exceto o boné de que não necessitei, tudo isto vi e senti nesta imagem. Encontrei a foto quando buscava outras e logo dei um pulo até à praia das ondas gigantes que o surfista Garrett McNamara venceu, projetando bem longe aquela ridente e atraente terra, originária, segundo a lenda, da imagem da nossa padroeira. 
Lenda ou naco de história, a verdade é que nutro por aqueles ares, o sítio e o mar,  um certo carinho. Mas deixando o frio de lado, que me tolhe as saídas de casa e me obriga a manter a lareira acesa, fixo-me nesta recordação ao lado de outras, de andanças pelo país, na esperança de que venha a chuva e se vá o frio para junto de quem gosta de patinar na neve da nossa Serra da Estrela, que só visitei uma vez na vida.

O Natal na poesia portuguesa




Há mais de oito séculos que o Natal se celebra na poesia portuguesa. As belíssimas composições de Afonso X, do Mestre André Dias e do maior teólogo da nossa literatura que é Gil Vicente (bastaria, para qualquer natal futuro, o seu «Breve sumário da História de Deus»:

«Adorai, montanhas,
o Deus das alturas,
também das verduras.
Adorai, desertos
e serras floridas, o Deus dos secretos,
o Senhor das vidas.
Ribeiras crescidas,
louvai nas alturas
o Deus das criaturas…»)


representam uma espécie de pórtico para uma viagem que, em cada época, encontrou os seus cantores. No século XVI, há um trecho anónimo, talvez cantado numas dessas romarias como ainda hoje se vêem

«Non tendes cama bom Jesus não
non tendes cama senão no chão»,


mas também sonetos de Camões

«Dos Céus à Terra desce a
mor Beleza»



e de Frei Agostinho da Cruz.

Ao século XVII bastariam os vilancicos de Sóror Violante do Céu

«Todos dizem, meu Menino,
Que vindes libertar almas,
Mas eu digo, vida minha,
Que vindes a cativá-las
Porque é tal a formosura…»,~



como ao século XVIII, do Abade de Jazente, de Correia Garção e outros, bastaria a composição piedosa do satírico Bocage, cotejando com elegância o texto profético de Isaías

«A Virgem será mãe; vós dareis flores,
Brenhas intonsas, em remotos dias;
Porás fim, torva guerra, a teus horrores».


O século XIX é de Garrett, com um poema delirante e “incorrecto”, onde faz valer o natal folgado e guloso da sua «católica Lisboa» sobre o «natal sem graça» dos protestantes londrinos. Mas, a seu lado, Feliciano de Castilho, canta «O Natal do pobrezinho» e João de Lemos e João de Deus descrevem sobretudo a experiência mística da contemplação. O século XX desdobra, seculariza, interroga, e, por fim, talvez adense o escondido significado do Mistério da Encarnação de Deus. Há o Natal devoto de Gomes Leal; há o Natal distanciado de Pessoa (o seu grande poema de natal é evidentemente o Poema VIII de O Guardador de rebanhos, mas isso dava outra conversa); o Natal dilacerado pela procura de Deus em José Régio

«Distância Transcendente,
Chega-te, uma vez mais,
Tão perto que te aqueças, como a gente,
No bafo dos obscuros animais»



e em Torga; o evangélico Natal de Sophia e de Nemésio (como esquecer aquele «Natal chique», onde «Só [um] pobre me pareceu Cristo»?); o Natal asperamente profético de Jorge de Sena («Natal de quê? De quem?/ Daqueles que o não têm?») ou de David Mourão Ferreira

«Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada».


Declinações diferentes de um único Natal.

José Tolentino Mendonça

In SNPC

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Maria de Fátima Teles é a nova presidente da CPCJ de Ílhavo



Maria de Fátima Teles 
A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Ílhavo elegeu para sua presidente, para o próximo triénio, Maria de Fátima Teles, a representante do município.
Em comunicado que nos foi enviado, sublinha-se que «será dada continuidade ao trabalho desenvolvido por este organismo em prol da promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens de Ílhavo, nomeadamente através das ações previstas no Plano Local de Promoção dos Direitos da Criança, envolvendo, para o efeito, todas as entidades parceiras da comunidade». 
Entretanto, a recém-eleita presidente acredita que, «com a experiência e o empenho já demonstrado pela equipa “residente”, todo o trabalho continuará a ser de excelência e focado no bem-estar das nossas crianças, jovens e suas famílias».

NOTA: Hoje, porventura mais do que nunca, a proteção de crianças e jovens deve estar sumamente atenta aos cuidados de quem mais precisa, a muitos e diversificados níveis, na certeza de que eles serão o futuro de uma sociedade mais justa e mais fraterna. Nesse pressuposto, todos devemos estar disponíveis para ajudar, no que for possível e estiver ao nosso alcance, a CPCJ. 

Menino Jesus Feliz



NATAL

Menino Jesus feliz 
Que não cresceste 
Nestes oitenta anos! 
Que não tiveste 
Os desenganos 
Que eu tive 
De ser homem, 
E continuas criança 
Nos meus versos 
De saudade 
Do presépio 
Em que também nasci, 
E onde me vejo sempre igual a ti.

Miguel Torga

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Georgino Rocha - Onde estão as freiras, nossas irmãs?

D. António Francisco 


«“É isto que, em nome da Igreja de Aveiro, vos peço: Sede testemunhas felizes da fidelidade de quem se encontra com Deus; sede apelo contínuo à vocação para que nunca faltem trabalhadores generosos da Messe do Senhor; sede trabalhadores incansáveis desta Igreja em missão”. Pedido feito por D. António Francisco no a 2 de Fevereiro de 2014, dia dos consagrados, e agora evocado como memória agradecida.»

“A maioria das pessoas que vejo nesta sala, afirma Carlos Mester ao iniciar a sua comunicação no congresso da vida religiosa activa no Nordeste brasileiro, tem cabeça de prata, corações de ouro e pés de ferro”. De facto este biblista notável socorre-se do seu fino humor para provocar uma grande gargalhada e animar a vasta assembleia de 250 freiras, todas bem entradas em idade. O realismo sadio faz encarar as situações como elas são e a procurar tirar partido das oportunidades que oferecem. Os pés de ferro, ainda que com alguma ferrugem, constituem o testemunho mais expressivo do valor da vida religiosa, pois são estão dotados de uma energia que brota do coração sempre disponível para servir por amor. A moldura grisalha fica mais visível com as brancas que predominam no cabelo da maioria.

Este cenário tem tanto de encanto como de provocador, tanto de memória agradecida como de ousadia profética. Onde estão as freiras, nossas irmãs? Pergunta que nos leva a Nazaré da Galileia, a casa de Ana e de Joaquim, e a ver de novo o portador de boas notícias, o Anjo Gabriel, a chegar onde está Maria, e a saúda com o convite à alegria por ser a cheia de graça. Pergunta que nos faz percorrer os espaços geográficos, mas sobretudo anímicos, relacionais ocupacionais/laborais e espirituais que configuram a vida das freiras e atestam a realização feliz da sua opção evangélica.

Fruto da consagração a Deus é a doação livre ao serviço integral da pessoa humana que se concretiza de diversas formas, tendo em conta o carisma original enriquecido pela leitura constante do magistério da Igreja e dos desafios da sociedade, pela experiência das pessoas envolvidas e opções feitas.

O serviço toma rosto no silêncio contemplativo e oração solícita do Carmelo, na acção de proximidade de quem ajuda as famílias empobrecidas a cuidarem dos próprios lares, no acolhimento e acompanhamento de mulheres e crianças em situação de risco, na instrução/educação de adolescentes e jovens que querem prosseguir estudos ou “encontrar uma casa fora de casa”, na orientação de momentos de oração e de grupos bíblicos e vocacionais, na colaboração em tarefas paroquiais e diocesanas, na presença feminina encorajante dos que se acolhem ao Seminário e pretendem amadurecer a opção da vida e ser consequentes. É um rosto plural, com traços pessoais e comunitários, acentuados pelo evoluir dos tempos e consumo de energias. É um rosto plural que irradia o amor que Deus nos tem e se humaniza em cada pessoa. É um rosto plural que carrega a suavidade do serviço livremente aceite e, tantas vezes, exemplarmente realizado, serviço que gere o presente e se abre ao futuro.

“Fiquei surpreendida com a agilidade, destreza e capacidade de uma Irmã, com oitenta anos, que orienta uma obra social e atende a 600 crianças e adolescentes, em risco constante, na periferia da cidade. Face à situação tem entre mãos e coordena o projecto que visa reorganizar a sua congregação, já que em breve terá de deixar o seu trabalho e quer prever as circunstâncias decorrentes”. Este testemunho pertence a Maria Inês Vieira Ribeiro, da CNBB, em relato da sua visita recente a uma comunidade situada nas periferias de uma cidade onde a riqueza e a miséria convivem em ostentação provocadora. Relato em que surge a afirmação taxativa; “A vida religiosa fechada nos nossos ambientes é testemunho de fragilidade, empobrecimento e tristeza”.

O desafio parece claro: Fechar-se e gerir razoavelmente as forças existentes, implorando do Senhor que faça o resto, e/ou reorganizar as congregações afins nos seus objectivos e relançar-se, com ousadia, em nova saída missionária? Apostar na proximidade das pessoas, sobretudo das que mais precisam, e/ou evangelizar por irradiação contagiante na certeza de que os dons de Deus contam com a colaboração de quem nEle confia e podem estar a florescer em outras modalidades mais consentâneas com os sinais dos tempos?

Na década de oitenta, do século 20, participei num processo de discernimento de oito reduzidas congregações religiosas na Bélgica com o objctivo de valorizar o que havia de comum e chegar a uma “plataforma” de entendimento. O resultado foi positivo, ficando apenas duas com renovado vigor e grande irradiação apostólica. O acompanhamento foi da responsabilidade da equipa local do Movimento por um Mundo Melhor.

Onde estão as freiras, nossas Irmãs? Pergunta que faz parte da consciência cristã decorrente do ser Igreja; pergunta que tem pleno cabimento no programa pastoral 2017/2018 da nossa diocese; pergunta que exige resposta positiva pois enquanto “a vida consagrada” não constituir preocupação apostólica constante, o Evangelho que anunciamos e a Igreja que construímos ficam empobrecidos e desfigurados. “Este estado, afirma o Vaticano II na constituição sobre a Igreja, pertence, de modo indiscutível, à sua vida e à sua santidade”. (LG 44).

“A vida religiosa está entre as questões urgentes e inevitáveis que não podem esperar”, afirma J. M. Castillo que reflecte sobre o magistério do Papa Francisco e destaca a prioridade que vê nesta urgência, fazendo um pedido: “ensinai-nos a procurar no encontro com Cristo a alegria que preencha a alma da Humanidade, a coragem que vença os medos do Mundo, e as certezas de fé e de esperança que desfaçam as injustiças sociais”. Aponta assim a projecção pública do encontro pessoal com Jesus Cristo, centro da vida cristã. E faz lembrar que a vida religiosa é um bem de excelência na sociedade actual: afirma o valor da pessoa e do sentido da vida aberto ao futuro de Deus, testemunha a relação humana no seio da comunidade, evidencia o valor da doação ao outro por amor solidário, empresta, como dizia Madre Teresa de Calcutá, as suas costas para carregar os pobre de Deus, como outrora o jumentinho de Jerusalém levou Jesus.

“É isto que, em nome da Igreja de Aveiro, vos peço: Sede testemunhas felizes da fidelidade de quem se encontra com Deus; sede apelo contínuo à vocação para que nunca faltem trabalhadores generosos da Messe do Senhor; sede trabalhadores incansáveis desta Igreja em missão”. Pedido feito por D. António Francisco no a 2 de Fevereiro de 2014, dia dos consagrados, e agora evocado como memória agradecida.

Efeméride — Restauração da Diocese de Aveiro


1938, 11 de dezembro 

«Com grande solenidade, D. João Evangelista de Lima Vidal deu execução à bula do Papa Pio XI, que restaurou a Diocese de Aveiro, e tomou posse do cargo de administrador apostólico da mesma Diocese (Correio do Vouga, 11-12-1938; João Gonçalves Gaspar, Lima Vidal no seu Tempo, III, pgs. 102-106 e 109-120) – J.»

NOTA HISTÓRICA

A Diocese de Aveiro, sufragânea da Arquidiocese de Braga, foi criada pelo papa Clemente XIV, mediante o breve Militantis Ecclesiae gubernacula, de 12-04-1774, a pedido do monarca D. José I, abrangendo uma área destacada do território da Diocese de Coimbra; em 24-03-1775 deu-se execução ao documento pontifício. O rei ficou com o direito de padroado. A catedral foi instalada na igreja da Misericórdia e, mais tarde, em 1830, na igreja que fora do extinto Recolhimento de S. Bernardino. Nas suas primeiras seis décadas, teve apenas três bispos. Em 01-04-1845, após alguns anos de certa confusão canónica no governo eclesiástico, o arcebispo de Braga foi também constituído no cargo de administrador apostólico da Diocese, para a qual nomeou sucessivamente vigários gerais ou governadores – o que aconteceu até à sua extinção pela bula do papa Leão XIII Gravissimum Christi Ecclesiam regendi et gubernandi munus, de 30-09-1881, executada em 04-09-1882. Pela bula Omnium Ecclesiarum, de 24-08-1938, o papa Pio XI restaurou-a, dando-lhe novos limites, com oitenta e duas freguesias de dez concelhos, desmembrados das Dioceses de Coimbra (Águeda, Anadia, Aveiro, Ílhavo, Oliveira do Bairro e Vagos), do Porto (Albergaria-a-Velha, Estarreja e Murtosa) e de Viseu (Sever do Vouga); foi então elevada a catedral a secular igreja do extinto Convento de S. Domingos e matriz da Paróquia de Nossa Senhora da Glória. A sentença executória da restauração deu-se em 11-12-1938.

Portugal é o melhor destino turístico do mundo


 
«O prémio acaba de ser entregue [10 de dezembro à secretária de Estado Ana Mendes Godinho nos World Travel Awards, no Vietname.
Foram seis Óscares mundiais, mais quatro do que os conquistados no último ano, que "representam muitos anos de trabalho na requalificação do país". "Portugal arrasou!" Ainda com a emoção à flor da pele, Ana Mendes Godinho, que foi ao Vietname para a cerimónia anual dos World Travel Awards, contou ao DN que "nem tinha mãos para segurar tantos prémios".
Depois do Dubai, no ano passado, neste ano e pela primeira vez Portugal foi escolhido pela prestigiada organização mundial como o Melhor Destino Turístico do Mundo. Mas se esta foi a maior distinção da noite - que chega três meses depois de recebermos também o prémio de Melhor Destino Europeu -, não foi de longe a única.»
 
Ler mais aqui  
 
NOTA: Portugal é assim: capaz do melhor e do pior.  Tanto somos distinguidos numa faceta como de repente somos apontados como  atrasados  noutras. De qualquer forma, nesta área do turismo, um dos grandes desafios dos tempos de hoje e do futuro, vencemos tudo e todos. É bom, sim senhor.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Dia de Natal - António Gedeão

O nosso Menino Jesus 

Dia de Natal
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra — louvado seja o Senhor! — o que nunca tinha pensado comprado.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:

Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

Bento Domingues — Quem desafia quem?



1. A guerra de insultos entre ciência e religião só pode ser alimentada e divulgada pelo persistente desconhecimento da natureza destas duas atitudes e práticas, igualmente humanas e diversas. Não são concorrentes, pois não brotam das mesmas perguntas, nem seguem os mesmos caminhos. Uns são os métodos da investigação científica, outros os percursos da experiência religiosa.
Certas formas de ateísmo contemporâneo, com ou sem invocações científicas, pretendem mostrar que a religião é um veneno. Para os adversários deste neoateísmo trata-se, apenas, “da última superstição”. São, de facto, duas apologéticas ideológicas. Deliciam-se a encontrar as formas mais sofisticadas ou mais grosseiras de se desqualificarem mutuamente. Distorcem um debate necessário, que não pode ser feito nesses termos, nem nesse clima crispado e de propaganda (1).
Muito diferente é o estilo de Francisco J. Ayala, um biólogo, membro da Academia Nacional das Ciências dos EUA, que também teve uma exímia preparação teológica. Ao terminar a sua obra sobre a evolução e a fé religiosa mostra que elas não são incompatíveis. Os crentes podem ver a presença de Deus no poder criativo do processo de selecção natural, descoberto por Darwin. Como este escreve no final da Origem das Espécies, “existe grandeza nesta concepção de que a vida, com as suas diferentes forças, foi alentada pelo Criador … e que, a partir de um princípio simples se desenvolveram uma infinidade de formas, as mais belas e poderosas” (2).
Hoje, existem bastantes pessoas com preparação científica e teológica para não se fazer de uma teoria científica e de uma convicção de fé religiosa um campo de batalha. Na religião não vale tudo. Jesus Cristo passou o tempo a denunciar a religião em que foi criado quando ela não servia a vida e alegria dos seres humanos.

2. O Papa Francisco (3), no passado dia 18 de Novembro, ao receber os Membros, Consultores e Colaboradores do Pontifício Conselho para a Cultura, assumiu, no seu discurso, uma posição descontraída, como se fosse absolutamente normal a Igreja ser desafiada e desafiar a questão das questões, a questão antropológica, e encontrar as linhas futuras de desenvolvimento da ciência e da técnica.
Bergoglio realçou que este Conselho para a Cultura tinha concentrado a sua atenção, de modo particular, em três tópicos.
O primeiro é sobre a medicina e a genética, que nos permitem olhar para dentro da estrutura mais íntima do ser humano e até intervir nela para a modificar. Tornam-nos capazes de debelar doenças que até há pouco tempo eram consideradas incuráveis; mas abrem, também, a possibilidade de determinar os seres humanos, “programando”, por assim dizer, algumas das suas qualidades.
Em segundo lugar, as neurociências que oferecem cada vez mais informações sobre o funcionamento do cérebro humano. Através delas, realidades fundamentais da antropologia cristã como a alma, a consciência de si e a liberdade aparecem, agora, sob uma luz inédita e até podem ser postas seriamente em discussão por parte de alguns.
Finalmente, os incríveis progressos das máquinas autónomas e pensantes, que em parte já se tornaram componentes da nossa vida quotidiana, que nos levam a meditar sobre aquilo que é especificamente humano e nos torna diferentes das máquinas.
Todos estes desenvolvimentos científicos e técnicos induzem algumas pessoas a pensar que nos encontramos num momento singular da história da humanidade, quase na alvorada de uma nova era e no surgimento de um novo ser humano, superior àquele que conhecemos até agora.
As interrogações e as questões que devemos enfrentar são graves. Por isso a Igreja, que acompanha, com atenção, as alegrias e as esperanças, as angústias e os medos do nosso tempo, deseja colocar a pessoa humana e as questões que lhe dizem respeito, no centro das suas próprias reflexões.
A antropologia é o horizonte de auto compreensão no qual todos nos movemos, diz o Papa, e determina a nossa noção do mundo e as escolhas existenciais e éticas. Hoje, apercebemo-nos de que os grandes princípios e os conceitos essenciais são constantemente postos em questão, inclusive com base num maior conhecimento da complexidade da condição humana. Exigem novos aprofundamentos. Por outro lado, as mudanças socioeconómicas, os deslocamentos de populações, os confrontos interculturais, a propagação de uma cultura global e, sobretudo, das incríveis descobertas da ciência e da técnica inscrevem-se num contexto mais fluido e mutável.

3. Bergoglio pergunta: Como reagir a estes desafios?
Antes de tudo, diz, devemos expressar a nossa gratidão aos homens e às mulheres de ciência pelos seus esforços e pelo seu compromisso a favor da humanidade.
Este apreço pelas ciências, que nem sempre soubemos manifestar, continua o Papa, encontra o seu fundamento último no desígnio de Deus, que nos escolheu antes da criação do mundo como seus filhos adoptivos (4), confiando-nos o cuidado da criação: cultivar e salvaguardar a terra (5).
Precisamente porque o ser humano é imagem e semelhança de um Deus que criou o mundo por amor, o cuidado de toda a criação deve seguir a lógica da gratuidade e do amor, do serviço e não do domínio nem da prepotência.
A ciência e a tecnologia ajudaram-nos a aprofundar os confins do conhecimento da natureza e, em particular, do ser humano. Elas sozinhas não são suficientes para todas as respostas. O ser humano tem outras dimensões. É necessário recorrer aos tesouros da sabedoria conservados nas tradições religiosas do saber popular, à literatura, às artes e a tudo o que toca o mistério da existência humana, sem esquecer a filosofia e a teologia.
Não estamos no pior nem no melhor dos mundos. Os progressos científicos e tecnológicos são incontestáveis, mas a quem aproveitam? Quem são os seus beneficiários? Servem para o bem da humanidade inteira ou criam novas desigualdades? As grandes decisões sobre a orientação da pesquisa científica e sobre os investimentos que exigem devem ser tomadas pelo conjunto da sociedade ou ditadas apenas pelas regras do mercado ou pelo interesse de poucos?
Com o Papa Francisco entramos numa Igreja que aceita ser desafiada, mas que desafia, não como quem manda, mas como quem serve a casa comum.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO


(1) Edward Feser, A última superstição. Uma refutação do neoateísmo, Ed. Cristo Rei, Belo Horizonte, 2017
(2) Cf. Darwin y el Diseño Intekigente. Creacionismo, Cristianismo Y Evolución, Alianza Editorial, Madrid, 2008, pp 206-207
(3) Discurso do Papa Francisco ao Pontifício Conselho para a Cultura
(4) Ef 1, 3-5
(5) Cf. Gn 2, 15

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