sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Anselmo Borges — O Sagrado e a crítica



1. Na noite do passado dia 7, estava eu no aeroporto da Madeira, já de regresso, após duas conferências, no Funchal e em Machico, quando recebo um telefonema do meu colega da Universidade de Coimbra, Victor Lobo, químico de renome internacional. Estava indignado com o programa Mata-Bicho, no qual se tinha produzido, pouco antes das notícias das 17 horas, na Antena 1, uma inqualificável fala sobre a festa de Nossa Senhora da Conceição, no dia seguinte. Já no continente, pude ouvi-la, e dei razão ao meu colega. Porque é uma javardice reles.
Devo confessar que pessoalmente não me sinto ofendido e também dizer que o seu autor não ofende propriamente os católicos, muito menos Nossa Senhora, Jesus Cristo e Deus. Com aquele discurso soez e boçal, o autor ou autores o que ofenderam foi a inteligência. E lembrei-me de uma prosa recente de Ricardo Araújo Pereira, cáustica e mordaz, "Discriminar como Jesus discriminou", a propósito de declarações do cardeal-patriarca sobre a homossexualidade dos clérigos e o caso do padre madeirense. Comparada com a fala do Mata-Bicho, imbecil, tem uma diferença abissal: o brilho da inteligência, obrigando a pensar.

2. Foi Kant que viu bem, quando, numa declaração irrenunciável, afirmou: "O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado", e isso "sobretudo nas coisas da religião". Esta, "apesar da sua majestade", não pode considerar-se imune à crítica. Mostraria fraqueza uma religião que não admitisse a crítica. Ai de nós se não houvesse críticos da religião, que chamam a atenção para aspectos das religiões tantas vezes ridículos, supersticiosos e inumanos! Assim, o crente até com a crítica soez e boçal saberá aprender, para exprimir o sentido correcto dos textos, aplicando os métodos científicos, exegético-hermenêuticos. Exemplos, a propósito da data natalícia:

2.1 O que é que verdadeiramente se celebra na festa da Imaculada Conceição? Maria foi concebida sem pecado original. Mas o mesmo é preciso dizer de todos os seres humanos: nascem todos sem pecado e espera-se que tenham sido gerados no amor. Foi Santo Agostinho concretamente que, na tentativa de explicar o mal no mundo, teorizou sobre o pecado de Adão e Eva, que foi o primeiro e seria herdado por todos. Jesus, porém, nunca falou em pecado original. Todos pecamos e Jesus é o Salvador de todos. E Maria é grande, não primariamente por ser a mãe de Jesus, mas porque é a primeira cristã, que acreditou no seu Filho e se converteu ao seu Evangelho, que é ele mesmo, notícia boa e felicitante para todos. Acompanhou-o sempre, até à Cruz. Ele é o Messias esperado, mas não um Messias guerreiro como se esperava. Jesus anunciou, por palavras e obras, o Deus bom, não vingativo, amigo de todos os homens e mulheres, que compreende e perdoa e cujo único interesse é a realização plena de todos. E foi um novo começo...

2.2 Maria foi virgem? Nem os Evangelhos nem a teologia são tratados de biologia. A fé cristã afirma que Jesus é homem verdadeiro, em tudo igual aos homens excepto no pecado. Mas ele é de tal modo humano, tão plena e decisivamente humano, que só pode ser divino: é a humanização de Deus. Só Deus poderia ser assim, a ponto de o próprio centurião romano, ao vê-lo morrer na cruz, ter confessado: "Verdadeiramente este homem era Filho de Deus."

2.3 Jesus teve irmãos e irmãs? Os Evangelhos dizem que sim. Que mal há nisso? A Igreja não é favorável a famílias numerosas?

2.4 Vem aí o Natal. E eu sinto e penso que é uma época belíssima de amor e de ternura, a viver no aconchego das famílias e naquela beleza inocente de presépios e festividades populares. Mas percebendo o seu sentido autêntico e verdadeiro, no mais profundo do humano, que é divino.
Assim, é preciso que se saiba que os chamados Evangelhos da infância só aparecem em São Mateus e São Lucas e não pretendem relatar acontecimentos históricos, à maneira da nossa história crítica. São reflexões teológicas, a partir já da fé em Jesus como o verdadeiro Messias esperado e o Salvador de Deus para toda a humanidade. Portanto:

2.4.1 Perguntam-me: Jesus nasceu em Belém? É quase certo que nasceu em Nazaré. Então, porque é que os evangelistas o põem a nascer em Belém? Porque, se ele é realmente o Messias, tem de ser da descendência de David e, por isso, nascer em Belém. Lá está no Evangelho segundo São Lucas: "O Senhor Deus vai dar-lhe o trono de seu pai David."

2.4.2 Os anjos apareceram aos pastores e os reis magos vieram do Oriente? Esse anúncio e essas belas estórias têm um significado teológico-doutrinal imenso: são modos de comunicar que Jesus veio para os mais pobres e humildes e não veio só para um povo, mas para todos os povos. O Reino que Jesus anunciou, Reino da alegria, da paz, da justiça universal, do amor, da liberdade, da fraternidade, da igualdade, da vida eterna, é o Reino de Deus para todos. E faz-se aparecer uma estrela no céu, porque Jesus é a verdadeira Luz que a todos ilumina.

2.4.3 Jesus foi exilado para o Egipto? Não. Quando os discípulos acreditaram que Jesus é o Messias verdadeiro e universal, o libertador do mal, do pecado, da injustiça, da morte - Deus é amor e, na morte, não caímos no nada, mas entramos na plenitude da vida de Deus -, então apresentaram esta estória da fuga para o Egipto, para que se compreendesse que ele é o verdadeiro Moisés, o libertador definitivo. É mais do que Moisés.

2.4.4 Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro? Como sabê-lo, se não há nenhum documento? Mas é uma belíssima data, pois veio substituir a festa do nascimento anual do deus Sol (natalis Solis invicti: nascimento do Sol invicto), no solstício de Inverno. Na perspectiva da fé, o Sol verdadeiro, invencível, é Jesus, e assim se comemora a partir do século III no dia 25 de Dezembro.

Anselmo Borges no DN

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