Crónica de Anselmo Borges
Anselmo Borges |
1. Era um daqueles beatos que julgam amar a Deus por Ele, mas que apenas pedincham em vez de agradecer. Lá estava ele permanentemente diante do Cristo crucificado: "Senhor, cuida dos meus campos, dá-me saúde e faz que eu não morra." Um dia, farto, o sacristão escondeu-se por trás do crucifixo: "Filho, tens de tratar tu dos campos e da saúde e já sabes que um dia tens de morrer como todos os outros." O beato, furioso: "Porque és assim, pelo teu mau falar, é que foste, e bem, pregado na cruz."
Quem gosta de ouvir a verdade nua e crua?
Vamos supor que, num funeral, o padre se ergue a dizer: "Meus irmãos, levamos hoje a sepultar este irmão que era um estupor. Não sabe a mulher das suas infidelidades? Não sabem todos que era um corrupto? Alguém conhece um acto seu de generosidade? Como tratou os filhos? Um ateu crasso, materialista, que fugiu ao fisco, matou, e todos, lá no íntimo, consideram que era tão-só um crápula. Graças a Deus, estamos livres dele, vai hoje a sepultar."
A verdade nua e crua. Mas alguém, incluindo as suas vítimas, toleraria o discurso?
E aquele pensamento de Pascal: se se soubesse o que os amigos dizem nas costas, talvez não sobrassem no mundo mais do que dois ou três amigos.