Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO de hoje
Frei Bento Domingues |
1. No domingo passado, imediatamente depois da missa, na exígua sacristia, com uma fila de pessoas para atender, um amigo atirou-me a pergunta:haverá mesmo ressurreição? Respondi-lhe que o melhor seria ficarmos os dois a ler, a pensar, a escrever e a rezar essa interrogação durante toda a Semana Santa e não apenas a da liturgia oficial.
Entretanto, a morte de amigos ou de amigos de amigos, uns muito novos, outros mais idosos — umas vezes de modo fulminante, outras, depois de longo tempo de sofrimento — não descansou. Em muitas situações não é, em primeiro lugar, a chamada “ressurreição dos mortos” que mais nos interroga. Essa é, segundo a confiança cristã, cuidado de Deus. Mas a ressurreição de mulheres ou maridos vivos, com a morte na alma, sós, com crianças muito pequenas para criar, é nosso encargo.
Quando se mata para sempre o emprego de adultos na força da vida e se deixam os jovens, anos a fio, à espera de nada; quando se cortam nas pensões dos reformados e os idosos são reduzidos a sobrantes, a descartáveis, que fazer? Sem uma política de insurreição das comunidades católicas e das suas hierarquias eclesiásticas, pode ser alienante falar de ressurreição. Sem um levantamento cristão contra a injustiça, expulsámo-nos do amor transformante, da caridade teologal, como nos recorda o Papa Francisco.
2. Por outro lado, nesta quadra do ano, nada consegue abafar a nostalgia da Páscoa da minha infância, na aldeia serrana onde nasci. Desde o começo da Quaresma, um vizinho, o Tio Amaro, proclamava, com voz forte, do cimo de um muro: Alerta, alerta, alerta! A vida é curta, a morte é certa! Arrependei-vos pecadores!
Se era na tristeza que começavam os rituais da abstinência e da “desobriga”, com o Domingo de Páscoa tudo se iluminava. Era o acontecimento mais feliz e intenso de toda a aldeia que, nesse dia, nem parecia pobre. Era simplesmente bela.
Uma comitiva que tinha saído cedo da Igreja, acompanhava a Cruz luminosa do Senhor que percorria os caminhos de todos os lugarejos, visitava todas as famílias e todos a beijavam fervorosamente. Ela tornara-se o símbolo da extrema generosidade de Deus.
As casas tinham sido lavadas, a mesa estava linda com toalha de linho, com comida e bebida para quem quisesse. O chão da aldeia atapetado de verdura e flores da Primavera, o tocar dos sinos e campainhas, os foguetes subindo ao céu anunciavam uma divina alegria, respiração de um ambiente de festa em expressões de pura cultura popular.
3. Esse mundo está em acelerado processo de extinção. Do ponto de vista religioso, restam os funerais. As portas das casas vão-se fechando para sempre. Baptizados, cada vez mais raros, só nas férias, dos filhos de imigrantes!
O futuro é imprevisível. Poderá acontecer o imprevisto nessa paisagem desoladora. Se acontecer, será com novas configurações.
Seja como for, não se pense que é esta a grande agonia do catolicismo. Não se pode esquecer que as primeiras gerações de comunidades cristãs desenvolveram-se nos tecidos urbanos. As Epístolas de S. Paulo, muito lidas nas celebrações da Eucaristia, testemunham para sempre as nossas raízes. Não sendo especialista das alterações da geografia do catolicismo português nas últimas décadas, é de supor que só nas cidades e nas suas periferias — em permanente mudança e reconfiguração — poderá ressuscitar. Os modelos rurais do passado serão impraticáveis.
4. Foi na cidade, em Paris, no passado mês de Fevereiro, que faleceu frei Pedro Meca (1935-2015), uma das pessoas mais espantosas que conheci até hoje. Estudámos teologia, juntos, em Toulouse. Depois, cada um foi para seu lado. Ao longo de 40 anos, com grandes intervalos de tempo, caímos nos braços um do outro, nos lugares e pelos motivos mais imprevisíveis: no México, no Chile, em Barcelona, em Paris, em Lisboa.
Deus deu-lhe por companheiros inseparáveis o amor dos pobres, a cólera contra a miséria, uma fonte inesgotável de humor, um desprezo soberano pelo calculismo eclesiástico e uma paixão constante pela partilha dos afectos e do conhecimento.
Nasceu perto de Pamplona. Com a guerra civil espanhola, ficou sem saber dos pais e dos irmãos. Foi criado, à toa, por vizinhos e aprendeu cedo a ter de roubar para comer. Partiu para Marselha à procura da família entre os refugiados bascos e descobriu que qualquer pessoa era da sua família.
Entrou, aos 21 anos, em França, para a Ordem dos Pregadores. Viveu a partilha das múltiplas dimensões do Evangelho na cidade que o seu confrade e amigo (P. Blanquart) investigava e da qual, ele Pedro Meca, vivia a rua e a noite, a companhia dos “contrabandistas da esperança”, os marginalizados, com os quais morria e ressuscitava todos os dias. Para mim, dizia o Pedro, a rua não é um lugar de passagem, mas um lugar de vida que amo e que, desde sempre, me é familiar. Na rua, as noites escuras são mais escuras do que as dos místicos e quantas não são precisas para “uma só manhã” (H. Michaux)! Não se passa uma noite de Páscoa, confessa Pedro Meca, sem que eu não esteja num café ou na rua e, de repente, exclame: é a Páscoa!