Crónica de Anselmo Borges
Anselmo Borges |
1. Era um daqueles beatos que julgam amar a Deus por Ele, mas que apenas pedincham em vez de agradecer. Lá estava ele permanentemente diante do Cristo crucificado: "Senhor, cuida dos meus campos, dá-me saúde e faz que eu não morra." Um dia, farto, o sacristão escondeu-se por trás do crucifixo: "Filho, tens de tratar tu dos campos e da saúde e já sabes que um dia tens de morrer como todos os outros." O beato, furioso: "Porque és assim, pelo teu mau falar, é que foste, e bem, pregado na cruz."
Quem gosta de ouvir a verdade nua e crua?
Vamos supor que, num funeral, o padre se ergue a dizer: "Meus irmãos, levamos hoje a sepultar este irmão que era um estupor. Não sabe a mulher das suas infidelidades? Não sabem todos que era um corrupto? Alguém conhece um acto seu de generosidade? Como tratou os filhos? Um ateu crasso, materialista, que fugiu ao fisco, matou, e todos, lá no íntimo, consideram que era tão-só um crápula. Graças a Deus, estamos livres dele, vai hoje a sepultar."
A verdade nua e crua. Mas alguém, incluindo as suas vítimas, toleraria o discurso?
E aquele pensamento de Pascal: se se soubesse o que os amigos dizem nas costas, talvez não sobrassem no mundo mais do que dois ou três amigos.
Afinal, quem diz a verdade nua e crua? E quem quer conhecê-la? Os políticos, por exemplo, descredibilizam-se, porque a hipocrisia e os interesses impedem a verdade limpa. O que é a verdade na sociedade-espectáculo? Facto é que da morte, a verdade nua, se fez tabu, o último tabu. E deve-se dizer sempre a verdade? Deve ser norma o médico dizer ao doente a verdade bruta da iminência do fim? Porque é que há o segredo da confissão? A. Comte-Sponville: arrepiante um "olhar omnisciente". "Quem quereria viver sempre sob o olhar da mãe? Quem o suportaria, se ela soubesse tudo?"
2. Aliás, pergunta-se: a verdade existe e é possível conhecê-la? Definiu-se geralmente a verdade como adequação entre o pensamento e a realidade. Ora, para quem reflecte, a coisa é bem mais complexa. De facto, no conhecimento, há três realidades em jogo: o sujeito, a imagem ou o objecto em nós e a realidade mesma. O objecto é a coisa em nós, e qual é a correspondência entre essa imagem ou objecto e a coisa mesma e como saber que há adequação, se não é possível sair do pensamento?
Que o conhecimento não é mera construção subjectiva, como pensaria o idealismo, mostra-o o facto de a realidade não seguir os nossos desejos e nos resistir. E algo conhecemos dela, estando a prova em que os conhecimentos científicos aplicados ao mundo funcionam: em princípio, os comboios andam e as pontes estão paradas e já fomos à Lua. Mas seria estultícia pensar que conhecemos a realidade toda como é em si mesma e que lentamente nos apoderaremos plenamente dela e do seu mistério.
3. Mas há quem não tolere não possuir a verdade toda e ter de conviver com dúvidas e aproximações. Quanto à verdade científica e também moral. Diz a Bíblia que nem o justo se pode julgar a si mesmo e não sabe se é justo. Ninguém pode ser plenamente moral a não ser que tenha tido a possibilidade de ser imoral. É fácil, no nosso conforto, condenarmos quem pactuou com o nazismo, mas lá, naquele horror, teríamos tido a coragem de dizer: não? "Como saber que entregaríeis ao seu dono a carteira com uma fortuna, se ainda vos não sucedeu ter encontrado uma?", pergunta B. Piccard. "Estaremos seguros de dizer sempre a verdade, se nunca fomos forçados a mentir?" Ou que não faremos um aborto ou que não denunciaremos um amigo?
O pensamento da posse da verdade toda é a ilusão dos fundamentalismos. Por isso, quem julga detê-la não pode ter o poder político coactivo do seu lado. É que, nessas circunstâncias, a Inquisição queimou os que considerou hereges e o comunismo soviético ergueu o gulag e, agora, o Estado Islâmico degola, decapita, queima, vivos, os "infiéis". E aí está o horror da verdade na nudez da barbárie.
4. Se a História há-de ter sentido e sentido último, se a História toda não for pura e simplesmente amoral, exige-se um juízo definitivo sobre o que entretanto aconteceu, o bem e o mal.
Esta era uma exigência da Escola Crítica de Frankfurt: não se pode compreender a História sem a ideia de Juízo Final e de Messias. Porque é preciso saber a verdade sobre o acontecido, a verdade sobre bem e mal, justo e injusto, digno e indigno, o que verdadeiramente vale e o que não vale, e é exigido moralmente que se salde a dívida para com as vítimas inocentes, que clamam por justiça. E quem pode pagar essa dívida a não ser Deus?
A realidade é processual e, por isso, a História lê-se do fim para o princípio. O que é verdadeiramente?
No fim, toda a verdade sairá do oculto e será revelada. Mas, segundo os cristãos, o Juízo Final será, sem vingança nem sadismo, um juízo de misericórdia e salvação para a vida eterna, para o qual, por outro lado, a história presente, não sendo indiferente, tem consequências.