Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO
«Ao fim desta Quaresma, da Semana Santa e da Oitava da Páscoa, há um sabor amargo: tirando o Papa, quem, no mundo católico, nas dioceses, nas paróquias, nos conventos, se levantou contra os sinais de guerra que marcam o mapa do mundo?
Repetiu-se: estar com o Papa é estar com a Igreja. Isto era quando os Papas não se comoviam com as dores dos mais feridos.»
1. O filósofo Bertrand Russel não foi muito original ao destacar que os dois grandes desejos humanos são o poder e a glória. Podem realizar-se pelos caminhos da ilimitada vontade de dominação económica, política e religiosa ou pelo desenvolvimento dos próprios talentos em função da vontade de criar condições para que tenham todos iguais oportunidades.
Em Portugal, a julgar pelas aparências, o grande desejo de poder e glória, de pais e filhos, é que ganhe o clube da sua paixão. Os mais devotos têm sempre os caminhos de Fátima à disposição. Se aparecer um Papa, é o segredo da glória, o desejo consumado.
Em meados do séc. VI a.C., nasceu um príncipe desencantado, Siddharta Gautama, mais conhecido por Buda, o iluminado, e viu-se confrontado com a pulsão avassaladora do desejo. No célebre discurso pronunciado em Benares, nas margens do rio Ganges, teria sentenciado que a terceira “nobre verdade”, para acabar com a dor omnipresente, era indispensável abolir o desejo e os seus laços. Vale a pena perguntar: será o desejo uma doença ou uma bênção?
O mundo do desejo, da fantasia, do afecto, é de tal forma essencial ao psiquismo humano que todas as outras faculdades é dele que recebem a sua energia. Nasce de uma falta estrutural no ser humano, não como uma maldição, mas como um infindo desassossego. Para Espinosa, a essência do ser humano é o desejo. Segundo Aristóteles, os desejos que não dependem da fisiologia, mas da razão, são ilimitados; os seres humanos desejam o infinito. S. Tomás de Aquino descobriu, nessa sede insaciável, o desejo natural de ver a Deus que não pode ser defraudado [1].
Não há notícias de que Buda tenha influenciado o Nazareno, embora este também tenha mudado de rumo depois de uma divina iluminação. Já foram descobertas afinidades entre certas passagens dos evangelhos e algumas propostas da sabedoria budista, mas não são da mesma extracção. Jesus não era pela abolição do desejo, mas pela sua intensificação e metamorfose, isto é, pela sua conversão. O seu desejo mais ardente era colocar-se ao serviço do desejo libertador de Deus, alegria do mundo. Era vontade humana e divina de alteração radical da nossa sociedade.
Os Evangelhos sinópticos mostram, no entanto, que ele teve de lutar contra tentações diabólicas infiltradas nos caminhos do advento e da configuração da era messiânica. Se era realmente o Messias, tinha de o provar. Mediante acontecimentos espectaculares, transformações económicas, políticas e religiosas radicais, teria o mundo a seus pés.
Jesus conhecia os desejos, os modelos, os grupos e os movimentos messiânicos que agitavam o povo a que pertencia e que, sem um poder absoluto, era impossível realizar os seus projectos. Percebeu também que, por esse caminho, tinha de renunciar à alma da sua alma: à experiência do Deus do puro amor e ao projecto de passar os marginalizados dos diversos poderes para o coração da sociedade [2].
2. As tentações supunham que conheciam bem a Deus, os apetites do coração humano e o projecto do Nazareno. Vencida a tentação, ficou o aviso: quando alguém invocar a Deus para O negar ou para O louvar, é indispensável perguntar: qual é a experiência pessoal, existencial, donde nasce essa negação, exaltação ou indiferença religiosa? Fora do contexto cultural, político e religioso que provoca essas atitudes, não podemos saber o que está a comandar o uso da palavra Deus.
Na teologia de S. Tomás de Aquino, muito marcado pela teologia negativa do Pseudo-Areopagita, Deus só pode ser conhecido como infinitamente Desconhecido. A tentação permanente das religiões é a criação de deuses à imagem dos nossos desejos distorcidos para legitimar sociedades enlouquecidas pelas lutas da dominação económica, política e religiosa.
Como vimos, Jesus disse radicalmente não às tentações messiânicas que o assaltaram, mas levou muito tempo a compreender a prontidão dos discípulos em abandonar tudo para o seguirem. O Evangelho segundo S. Marcos mostrou, com insistência, que Jesus os chamou para uma missão e o que eles desejavam era que o Nazareno tomasse mesmo o Poder e o resto era só conversa. Por isso, a discussão entre eles girava sempre em torno da futura distribuição dos cargos políticos. Um dia a tensão explodiu: os irmãos, Tiago e João, perderam o pudor e foram reclamar os dois primeiros lugares, o que indignou os outros dez.
Perante essa situação, Jesus resolveu pôr tudo em pratos limpos: sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele dentre vós que desejar ser grande, seja o vosso servidor e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela libertação de todos [3].
3. O texto de S. Marcos deixou claro como devem ser as relações de poder na Igreja. Só dessa forma ela se pode tornar uma instância crítica dos poderes de dominação na sociedade.
O que o Papa Francisco está a fazer na Cúria romana, com tantas resistências, é puro Evangelho. Já em 1969, o Cardeal Suenes denunciava o sistema que aprisiona o Papa e o torna cúmplice e solidário daquilo que ele não quer, tenha ou não a sua assinatura. É preciso conseguir libertar o Papa do sistema do qual há queixas há vários séculos, sem resultado. Porque, como Suenes frisou, ainda que os Papas mudem, a Cúria permanece.
O poema do bispo Casaldáliga gritou:
“Larga a cúria, Pedro,
desmantela o sinédrio e a muralha.
Ordena que se mudem
todas as filactérias impecáveis
em palavras vibrantes de vida.”
Ao fim desta Quaresma, da Semana Santa e da Oitava da Páscoa, há um sabor amargo: tirando o Papa, quem, no mundo católico, nas dioceses, nas paróquias, nos conventos, se levantou contra os sinais de guerra que marcam o mapa do mundo?
Repetiu-se: estar com o Papa é estar com a Igreja. Isto era quando os Papas não se comoviam com as dores dos mais feridos.
[1] José Antonio Marina, Las arquitecturas del deseo, Anagrama, Barcelona, 2007; Juan Guillermo Droguett, Desejo de Deus. Diálogo entre psicanálise e fé, Vozes, Petrópolis, 2000, pp. 13 e 139; Cipriano Franco Pacheco, O desejo natural da visão de Deus. Expressão de abertura humana ao transcendente, Romae, 2001; Teresa Messias, O desejo e a sua transformação no seguimento de Jesus. Uma leitura dos escritos de Sebastião Moore, Paulus, 2017.
[2] Cf. Lc 4, 1-13; Mt 4,1-11; Mc 1,12-13
[3] Mc 10, 35-45