sexta-feira, 28 de abril de 2017

Rostos da Solidão na Fábrica das Ideias


Amanhã, 29, pelas 15h30, na Fábrica das Ideias (ex-Centro Cultural da Gafanha da Nazaré), vai abrir ao público uma exposição com tema inédito: “Rostos da Solidão”. Em nota da Câmara Municipal de Ílhavo, lê-se que esta mostra tem em consideração «o facto de o processo de envelhecimento e a solidão infelizmente se encontrarem muitas vezes associados». 
O fotógrafo convidado, Ricardo Lima, registou «momentos e sentimentos de solidão no mais íntimo reduto da vida das pessoas mais velhas do Município de Ílhavo», pelo que ouso alertar o nosso povo, ílhavos e gafanhões, para uma visita atenta. Estou certo de que ali há motivos mais do que suficientes para uma reflexão que nos leve à ação. É que, se é verdade que há solidões desejadas, também as haverá forçadas.

 Fonte: CMI
Foto: CMI

O que eu penso sobre Fátima (1)

Crónica de Anselmo Borges  no DN



Antes de entrar no tema propriamente dito, quero deixar três notas prévias, que devo ao leitor. A primeira, para dizer que, a pedido da revista internacional Concilium, escrevi, de modo mais organizado, um texto sobre Fátima, a publicar no mês de Junho. A segunda, mais importante, para esclarecer que fui ordenado padre em Fátima pelo cardeal Cerejeira e que, sempre que lá vou para fazer conferências, passo pela Capelinha das Aparições e ali rezo como tantos outros. Depois, à pergunta se vou a Fátima por causa da vinda do Papa respondo que não, porque não gosto de confusões e penso que os responsáveis da Igreja deveriam prevenir as pessoas, pois correm o risco de uma imensa desilusão, já que muitas dificilmente verão o Papa. Prestado este preâmbulo, o tema.

O Ressuscitado caminha connosco ao ritmo da vida

Reflexão de Georgino Rocha



Jesus persiste em recorrer a mediações humanas para mostrar a novidade da sua vida de ressuscitado, após a morte. Lucas, o narrador do episódio de Emaús, apresenta-o como caminhante junto de dois discípulos que rumavam àquela povoação. Esmorecidos e frustrados. Ao cair da tarde. Ao terminar do dia. Ao chegar a noite. Símbolos expressivos da agonia da esperança que lhes ia roendo o coração. Símbolos da disposição de tantos corações surpreendidos perante o insucesso provisório das suas opções de vida. Lc 24, 13-35.

O Papa Francisco, na audiência geral do passado dia 26, reconhece-o e afirma que: “A nossa existência é uma peregrinação, temos uma alma migrante. Somos um povo de caminhantes, tendo Jesus por companheiro de viagem: «Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos». Assim quis Ele assegurar-nos de que não Se limita a esperar-nos lá no fim da nossa viagem, mas já nos acompanha em cada um dos nossos dias”. Grande certeza que nos consola.

A distância geográfica de Jerusalém a Emaús é relativamente curta, mas simboliza um itinerário enorme de iniciação que, normalmente, os candidatos à vida cristã e inserção eclesial estão chamados a percorrer. Outrora, os discípulos eram Cléofas (que significa celebração) e o seu inominado companheiro (talvez para sermos nós a dar-lhe nome). Regressam à aldeia, após o fracasso das suas expectativas provocado pelo desfecho trágico da vida do seu mestre, Jesus de Nazaré. Dão largas a este estado de espírito, lamentam o sucedido e “sonham” retomar um passado que não volta. Alimentam e ampliam a amargura da frustração, “curtida” em conversas e atitudes. Sem horizontes de futuro onde brilhe qualquer “semáforo” de esperança. Amarrados a um presente marcado pelas chagas ainda em ferida viva e sangrante, carregam as gratas recordações de um tempo feliz e vivem à procura de sentido para a etapa que se avizinha.

O diálogo com o desconhecido, que se faz companheiro, mostra a dolorosa situação em que se encontram e a novidade de rumores incríveis que começavam a surgir. Constitui uma excelente amostra do sentir de tantos contemporâneos, uma boa referência para lançar pontes de contacto e iniciar uma viagem comum, com o ritmo cadenciado dos passos de cada um e com a franqueza do coração aberto de todos. Agora somos nós os peregrinos de Emaús.

O novo companheiro escuta, com delicada atenção, a resposta à pergunta que lhes fizera. E após uma breve censura, toma a palavra e faz--lhes a explicação do sucedido, situando-o no contexto das Escrituras. À medida que fala, o coração dos caminhantes vibra com novos ritmos que surgem progressivamente: coração sem esperança e incapaz de ver as luzes que começam a despontar; coração acolhedor do estranho que se faz companheiro e dialoga, sem reservas; coração aberto à intervenção de Jesus que narra tudo o que nas Escrituras lhe diz respeito; coração transformado que deseja permanecer com o desconhecido a quem oferece hospedagem e convida para uma refeição; coração agradecido que reconhece a nova forma de presença de Jesus nos sinais do pão e do vinho (eucaristia); coração entusiasmado no amor e pressionado pela novidade da experiência feita que quer contar aos discípulos; coração enternecido que recebe a alegre notícia dada pela comunidade reunida: “O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão”.

O Santo Padre na mensagem para a 54ª semana de Oração pelas Vocações, que hoje começa, faz-se eco desta novidade e diz-nos: “Amados irmãos e irmãs, é possível ainda hoje voltar a encontrar o ardor do anúncio e propor, sobretudo aos jovens, o seguimento de Cristo. Face à generalizada sensação duma fé cansada ou reduzida a meros «deveres a cumprir», os nossos jovens têm o desejo de descobrir o fascínio sempre atual da figura de Jesus, de deixar-se interpelar e provocar pelas suas palavras e gestos e, enfim, sonhar – graças a Ele – com uma vida plenamente humana, feliz de gastar-se no amor”.

O Ressuscitado vive connosco e marca o ritmo que o coração humano deseja e procura assumir. Felizmente!

terça-feira, 25 de abril de 2017

25 de Abril de 1974 — O Grito da Liberdade

Salgueiro Maia na linha da frente da liberdade
 Ao contrário do que alguns pensam, é sempre oportuno e necessário evocar a revolução dos cravos, que permitiu, com natural heroísmo, mas também com alegrias incontidas, oferecer a liberdade aos portugueses, muitos deles sem nunca a terem sentido e experimentado. E é oportuno e necessário, porque a liberdade pode correr o risco de se perder, levada pela nossa incúria e pela voracidade de ditadores em potência, que pululam por aí. 
Não falta quem vista a camisola contra o 25 de abril, contra as amplas liberdades, contra o atraso económico, contra as injustiças sociais, contra a corrupção e contra a fome que grassa em cada canto deste país “à beira mar plantado”. São protestos com razão, é certo, porque 43 anos são tempo que baste para erradicar as injustiças, mas também é verdade que na sociedade que eu respirei na meninice e na juventude o atraso económico e social era notório. Hoje, apesar de tudo, contrariando os céticos, a sociedade está muito melhor do que antes da revolução.
Antes do grito da liberdade, o analfabetismo tolhia os horizontes do nosso povo, obrigando-o a fugir, pela calada da noite, para sobreviver longe desta Pátria que muito pouco lhe dava. Muitos portugueses desapareciam a salto, calcorreando caminhos nunca vistos, serras e montes inóspitos, traídos muitas vezes por passadores desumanos, deixando para trás a família à espera de pão. E instalavam-se clandestinamente em bairros de lata nos subúrbios de Paris. Anos depois, as casas novas das Gafanhas e de outras terras portugueses ostentavam sinais evidentes das cores e formas que os impressionaram à chegada a França.
A guerra colonial, incompreensível já no mundo civilizado de então, massacrou sonhos e vidas de muitos compatriotas. A cegueira de uns tantos políticos da época anterior ao 25 de Abril espezinhou quem se opôs à utópica bandeira do proclamado Império Português idealizado por lunáticos do chamado Estado Novo. Com o 25 de Abril, finalmente, Portugal descobriu que o mundo não se confinava aos curtos horizontes que bloqueavam os olhos do entendimento do povo luso. De olhos abertos, soube e pôde gritar bem alto… Viva a Liberdade! Viva o 25 de Abril!

Fernando Martins

Rosto de misericórdia – DIÁCONO AUGUSTO SEMEDO



Na página da Comissão Diocesana da Cultura da Diocese de Aveiro, na rubrica Rostos de Misericórdia, é apresentado um amigo que muito estimo, Diácono Augusto Semedo, pela sua ação na sociedade humana e eclesial a vários níveis. O texto é da autoria de Georgino Rocha, presbítero da Igreja aveirense, que me apraz aplaudir pela oportunidade de que se reveste. 
Augusto Semedo está em fase de demorada recuperação de um AVC que sofreu. Todos os seus amigos, que muitos são, sabem que o Diácono Semedo é um homem corajoso, paciente e determinado, o que nos garante que voltará à vida normal, com destaque para a sua intervenção junto dos feridos da vida. Foi sempre essa a sua grande paixão, social e eclesial. E há de continuar a ser, porventura agora pela oração, pelo testemunho consciente e pela palavra sempre pronta para o conselho oportuno e fraterno.

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segunda-feira, 24 de abril de 2017

“Gafanha… Crianças de antanho e suas vivências”

Autógrafos para crianças que colaboraram na festa
A mesa convidados da autora

Crianças bem ensaiadas pela Cláudia 

Autógrafo para Domingos Cardoso

“Gafanha… Crianças de antanho e suas vivências” é o mais recente trabalho de Maria Teresa Filipe Reigota, natural da Gafanha da Nazaré e residente na Gafanha da Boavista. É uma obra que vem na sequência de “Gafanha… O que ainda vi, ouvi e recordo” (2009) e “Gafanha… retalhos do passado” (2013). Todos para memória futura, com retratos, tradições, saberes e sabores que a autora soube recolher e partilhar, despertando os nossos sentidos para a descoberta do povo que somos com as marcas indeléveis do passado, rumo ao futuro.
«Este livro é uma lufada de ar fresco que nos faz recuar no tempo, um tempo que já foi e que pode voltar a ser se os pais e as mães de hoje o quiserem», afirmou Miguel Almeida, da Federação do Folclore Português, na apresentação deste trabalho da Teresa Reigota, no sábado, 22 de abril, no teatro da Vista Alegre, num ambiente emoldurado por crianças que brincaram, ao jeito de outras eras, bem ensaiadas por Cláudia Reigota, filha da autora.
Miguel Almeida considerou esta obra «um autêntico manual da criança», mas ainda um «convite a uma viagem no tempo cujo caminho é de sentido único» tendo em conta «paragens obrigatórias em alegres apeadeiros de lugares e sítios onde os versos saltar, inventar, escutar, correr, adivinhar, esconder, jogar, tocar, cantar e dançar são entremeados por risos alegres e cristalinos». 
Paulo Costa, vereador do pelouro da cultura da Câmara Municipal de Ílhavo, agradeceu à Cláudia, aos alunos e seus pais, a oferta a todos os presentes de jogos e brincadeiras do passado, «divertindo-nos também a nós». Adiantou que, «se há coisa que é comum às crianças do mundo inteiro,  é o brincar; algo de que o ser humano precisa». Felicitou, por isso, Teresa Reigota  pelo seu empenho na área da cultura.
João Campolargo, presidente da Junta de Freguesia de São Salvador, disse que não há palavras que possam medir o tamanho das expressões que a autora apresenta nos seus livros, agradecendo o contributo que a Teresa Reigota tem dado no âmbito do Rancho Regional da Casa do Povo de Ílhavo, de que foi fundadora com seu marido, João Fernando Reigota. 
Em Nota da Autora, a investigadora, professora do agora Ensino Básico durante bons anos, garantiu que as crianças dos nossos dias «quase nem têm tempo de o ser». E frisou: «usam o computador, vão para a escolinha já de telemóvel na bolsa, jogam playstation entre outras dádivas do progresso.»
Lembrou o passado que não volta, confessando que sente «saudades da pureza e da simplicidade» da sua meninice feliz, «quando corria, pulava e chapinhava nas poças da rua, formadas pela água da chuva — as “labacheiras”, palavra usada pelo povo». 
Teresa Reigota dedicou este trabalho aos seus filhos, Cláudia e Joel, «gafanhões de gema e que amam de verdade a Gafanha, seu torrão natal». E informou que o produto da venda do livro reverterá para o Rancho Regional, afinal «um outro filho».
Dos três capítulos destacamos a localização das suas pesquisas e recolhas, as crianças desde o nascimento, canções de embalar, dias festivos, tarefas familiares e escolares, o que vestiam e comiam, mas ainda como se divertiam e brincavam.
“Gafanha… Crianças de antanho e suas vivências” vem enriquecido com um CD que reproduz cantares e modinhas de há décadas. Trata-se, realmente, de um livro que é uma viagem retrospetiva para os mais velhos, mas muito útil também para os mais novos ficarem a conhecer os alicerces da sociedade atual. 

Fernando Martins

domingo, 23 de abril de 2017

O Padre Américo


Ontem fui ao Hospital Padre Américo, em Penafiel, para visitar um amigo ali internado há umas semanas. Confirmei que a sua saúde está a torná-lo num guerreiro na luta para voltar à vida do dia a dia. Digo guerreiro pela coragem com que enfrentou a situação difícil por que passou. De sorriso permanente, apesar decerto de algum sofrimento, senti o carinho com que os familiares, filhos e netos, o mimoseavam. A forma terna como o beijavam, as palavras doces que lhe dirigiam e a ternura com que o acariciavam estarão naturalmente a encher-lhe a alma e a reforçar-lhe o corpo para um dia destes regressar a casa. Assim espero.

À entrada do Hospital que tem o nome de Padre Américo, não pude deixar de recordar um homem que muito apreciei desde a minha juventude. Américo de Aguiar, já adulto, resolveu um dia ser padre. Alguns não acreditaram que viesse a ser o que foi: Um homem que se deu, de corpo e alma inteiros, sem preconceitos nem desânimos, aos mais pobres dos pobres. Uma vida inteira e cheia de amor. A Casa do Gaiato acolheu os rapazes da rua, mas o Padre Américo não se ficou por aí. Olhou à volta e viu homens e mulheres com doenças incuráveis e sem quem deles tratasse. Mas ele não lhes virou as costas. 

A sua passagem por este nosso mundo tão belo, mas também com tanto sofrimento e amarguras, deixou marcas de amor para partilhar. Não haverá amor sem partilha. E o processo do conhecimento canónico para a sua beatificação, aberto em 1986, estará perdido em alguma gaveta da Cúria Romana. Se este homem não merece as honras dos altares… quem as merecerá? 

Fernando Martins 

Metamorfoses pascais do desejo (2)

Crónica de Frei Bento Domingues no PÚBLICO 


«Ao fim desta Quaresma, da Semana Santa e da Oitava da Páscoa, há um sabor amargo: tirando o Papa, quem, no mundo católico, nas dioceses, nas paróquias, nos conventos, se levantou contra os sinais de guerra que marcam o mapa do mundo?
Repetiu-se: estar com o Papa é estar com a Igreja. Isto era quando os Papas não se comoviam com as dores dos mais feridos.»

1. O filósofo Bertrand Russel não foi muito original ao destacar que os dois grandes desejos humanos são o poder e a glória. Podem realizar-se pelos caminhos da ilimitada vontade de dominação económica, política e religiosa ou pelo desenvolvimento dos próprios talentos em função da vontade de criar condições para que tenham todos iguais oportunidades.
Em Portugal, a julgar pelas aparências, o grande desejo de poder e glória, de pais e filhos, é que ganhe o clube da sua paixão. Os mais devotos têm sempre os caminhos de Fátima à disposição. Se aparecer um Papa, é o segredo da glória, o desejo consumado.
Em meados do séc. VI a.C., nasceu um príncipe desencantado, Siddharta Gautama, mais conhecido por Buda, o iluminado, e viu-se confrontado com a pulsão avassaladora do desejo. No célebre discurso pronunciado em Benares, nas margens do rio Ganges, teria sentenciado que a terceira “nobre verdade”, para acabar com a dor omnipresente, era indispensável abolir o desejo e os seus laços. Vale a pena perguntar: será o desejo uma doença ou uma bênção?
O mundo do desejo, da fantasia, do afecto, é de tal forma essencial ao psiquismo humano que todas as outras faculdades é dele que recebem a sua energia. Nasce de uma falta estrutural no ser humano, não como uma maldição, mas como um infindo desassossego. Para Espinosa, a essência do ser humano é o desejo. Segundo Aristóteles, os desejos que não dependem da fisiologia, mas da razão, são ilimitados; os seres humanos desejam o infinito. S. Tomás de Aquino descobriu, nessa sede insaciável, o desejo natural de ver a Deus que não pode ser defraudado [1].
Não há notícias de que Buda tenha influenciado o Nazareno, embora este também tenha mudado de rumo depois de uma divina iluminação. Já foram descobertas afinidades entre certas passagens dos evangelhos e algumas propostas da sabedoria budista, mas não são da mesma extracção. Jesus não era pela abolição do desejo, mas pela sua intensificação e metamorfose, isto é, pela sua conversão. O seu desejo mais ardente era colocar-se ao serviço do desejo libertador de Deus, alegria do mundo. Era vontade humana e divina de alteração radical da nossa sociedade.
Os Evangelhos sinópticos mostram, no entanto, que ele teve de lutar contra tentações diabólicas infiltradas nos caminhos do advento e da configuração da era messiânica. Se era realmente o Messias, tinha de o provar. Mediante acontecimentos espectaculares, transformações económicas, políticas e religiosas radicais, teria o mundo a seus pés.
Jesus conhecia os desejos, os modelos, os grupos e os movimentos messiânicos que agitavam o povo a que pertencia e que, sem um poder absoluto, era impossível realizar os seus projectos. Percebeu também que, por esse caminho, tinha de renunciar à alma da sua alma: à experiência do Deus do puro amor e ao projecto de passar os marginalizados dos diversos poderes para o coração da sociedade [2].

2. As tentações supunham que conheciam bem a Deus, os apetites do coração humano e o projecto do Nazareno. Vencida a tentação, ficou o aviso: quando alguém invocar a Deus para O negar ou para O louvar, é indispensável perguntar: qual é a experiência pessoal, existencial, donde nasce essa negação, exaltação ou indiferença religiosa? Fora do contexto cultural, político e religioso que provoca essas atitudes, não podemos saber o que está a comandar o uso da palavra Deus.
Na teologia de S. Tomás de Aquino, muito marcado pela teologia negativa do Pseudo-Areopagita, Deus só pode ser conhecido como infinitamente Desconhecido. A tentação permanente das religiões é a criação de deuses à imagem dos nossos desejos distorcidos para legitimar sociedades enlouquecidas pelas lutas da dominação económica, política e religiosa.
Como vimos, Jesus disse radicalmente não às tentações messiânicas que o assaltaram, mas levou muito tempo a compreender a prontidão dos discípulos em abandonar tudo para o seguirem. O Evangelho segundo S. Marcos mostrou, com insistência, que Jesus os chamou para uma missão e o que eles desejavam era que o Nazareno tomasse mesmo o Poder e o resto era só conversa. Por isso, a discussão entre eles girava sempre em torno da futura distribuição dos cargos políticos. Um dia a tensão explodiu: os irmãos, Tiago e João, perderam o pudor e foram reclamar os dois primeiros lugares, o que indignou os outros dez.
Perante essa situação, Jesus resolveu pôr tudo em pratos limpos: sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele dentre vós que desejar ser grande, seja o vosso servidor e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela libertação de todos [3].

3. O texto de S. Marcos deixou claro como devem ser as relações de poder na Igreja. Só dessa forma ela se pode tornar uma instância crítica dos poderes de dominação na sociedade.
O que o Papa Francisco está a fazer na Cúria romana, com tantas resistências, é puro Evangelho. Já em 1969, o Cardeal Suenes denunciava o sistema que aprisiona o Papa e o torna cúmplice e solidário daquilo que ele não quer, tenha ou não a sua assinatura. É preciso conseguir libertar o Papa do sistema do qual há queixas há vários séculos, sem resultado. Porque, como Suenes frisou, ainda que os Papas mudem, a Cúria permanece.
O poema do bispo Casaldáliga gritou: 

“Larga a cúria, Pedro,
desmantela o sinédrio e a muralha.
Ordena que se mudem
todas as filactérias impecáveis
em palavras vibrantes de vida.”

Ao fim desta Quaresma, da Semana Santa e da Oitava da Páscoa, há um sabor amargo: tirando o Papa, quem, no mundo católico, nas dioceses, nas paróquias, nos conventos, se levantou contra os sinais de guerra que marcam o mapa do mundo?
Repetiu-se: estar com o Papa é estar com a Igreja. Isto era quando os Papas não se comoviam com as dores dos mais feridos.

Frei Bento Domingues no PÚBLICO 

[1] José Antonio Marina, Las arquitecturas del deseo, Anagrama, Barcelona, 2007; Juan Guillermo Droguett, Desejo de Deus. Diálogo entre psicanálise e fé, Vozes, Petrópolis, 2000, pp. 13 e 139; Cipriano Franco Pacheco, O desejo natural da visão de Deus. Expressão de abertura humana ao transcendente, Romae, 2001; Teresa Messias, O desejo e a sua transformação no seguimento de Jesus. Uma leitura dos escritos de Sebastião Moore, Paulus, 2017.
[2] Cf. Lc 4, 1-13; Mt 4,1-11; Mc 1,12-13
[3] Mc 10, 35-45

sábado, 22 de abril de 2017

A coragem de Fernando Pessoa



Posso ter defeitos, viver ansioso
e ficar irritado algumas vezes
mas não esqueço de que minha vida
é a maior empresa do mundo,
e posso evitar que ela vá à falência.

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver
apesar de todos os desafios, incompreensões
e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas
e se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si,
mas ser capaz de encontrar um oásis
no recôndito da sua alma.

É agradecer a Deus a cada manhã
pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo
dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um “não”.
É ter segurança para receber
uma crítica, mesmo que injusta.

Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo…

sexta-feira, 21 de abril de 2017

JESUS ESTÁ VIVO NO MEIO DE NÓS

Reflexão semanal de Georgino Rocha


Jesus ressuscitado realiza várias iniciativas para desvendar aos discípulos, e por eles, a toda a humanidade, a novidade do seu ser e do seu agir. Encontros pessoais e comunitários, marchas e refeições, diálogos e provações. Presenças surpreendentes, ausências súbitas e apresentação das cicatrizes da paixão. Hoje, o relato do Evangelho oferece-nos uma “amostra” de algumas destas iniciativas que realçam a sua divina misericórdia. (Jo 20, 19-31).
A desolação dos discípulos contrasta fortemente com a coragem de Jesus ressuscitado. Eles, amedrontados, estão refugiados em casa trancada, a temerem o que lhes podia acontecer na sequência da condenação do seu Mestre. Este, destemido, apresenta-se no meio deles, sereno e ousado, e saúda-os amigavelmente, desejando-lhes a paz. O contraste não pode ser mais radical e provocador. A atitude de Jesus surpreende-os completamente e deixa-os expectantes. Eles ainda não o haviam reconhecido. Que carga de medo inibidor! Que urgência da “purificação” do coração e da mente para iniciar o caminho da fé no ressuscitado! Que importância atribuída à jovem comunidade reunida em assembleia neste “arranque” decisivo!

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