quinta-feira, 13 de maio de 2021

A arte é dom de quem cria

Painel de Jeremias Bandarra - Igreja da Costa Nova

                                                    A arte é dom de quem cria;
                                                    portanto não é artista
                                                    aquele que só copia
                                                    as coisas que tem à vista.

                                                            António Aleixo

Quando hoje escolhi esta quadra do nosso maior poeta popular – António Aleixo –, logo me veio à lembrança a reação de muita gente que tem dificuldades em entender certas expressões artísticas, sobretudo as que fogem do trivial.
Olhar para uma pintura abstrata, ouvir uma música clássica e apreciar uma escultura que se situa longe do figurativo são, frequentemente, motivo de desinteresse. Das duas uma: ou os artistas são malucos ou os apreciadores que olham de soslaio para o que eles criam ainda não estão educados para entender o que está acima do normalíssimo.
Penso que esta última asserção é que está certa.
Sendo verdade que a arte não pode nem deve ser apenas uma cópia do que os nossos olhos veem ou os nossos ouvidos escutam, há que fazer um esforço, com o intuito de educar os sentidos, para chegarmos mais longe. A arte é, essencialmente, não um retrato bruto e simples do que nos rodeia, mas o reflexo de sentimentos, emoções, perspetivas, imaginações e gosto estético do artista, que tem de ser, como diz Aleixo, um criador. Um criador é um artista que, do nada, faz obra que nos eleva, nos enriquece espiritualmente, nos sublima os instintos primários, nos suscita sentimentos do bem e do belo.

FM

Nota: Texto reeditado

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Princesa Joana - Padroeira da cidade e diocese de Aveiro



Hoje lanço um desafio aos amigos de Santa Joana, padroeira da Cidade e Diocese de Aveiro, no sentido de descobrirem quem escreveu sobre a sua vida e santidade e o que disseram. Seria interessante saber-se mais sobre a nossa padroeira, para que os vindouros continuem a honrá-la, a 12 de Maio, e não só, dia da sua partida para o Pai. Como estímulo, socorro-me do livro "Aveiro, suas gentes, terras e costumes", que mais não é do que uma selecção de textos de D. João Evangelista de Lima Vidal, organizada por Mons. João Gonçalves Gaspar e publicada em 1967, com edição da Junta Distrital de Aveiro.

FM 

Diz, D. João  Evangelista, ao referir-se à lição da Princesa Joana: 

"Não há dúvida de que S. Francisco de Assis teria alma para renunciar, não apenas a um lugar de mercador ou de caixeiro na casa paterna, mas a uma realeza, a uma coroa, a um ceptro, a todas as grandezas e vaidades do mundo; objectivamente, não fez um sacrifício tão grande como Santa Joana que, por amor de Deus e para poder dizer ao mundo que não, renunciou a um trono e, em vez de ser uma rainha, foi uma serva! 
Todos os escritores de Santa Joana são unânimes em dizer que a escolha de Aveiro não teve outro propósito senão recolher-se a prófuga dos Paços Reais de Lisboa ao mosteiro mais pobre que se conhecia por esse tempo na Pátria. 
O seu túmulo é grandioso, é certo; mas lá dentro, daquelas cinzas humilhadas pela pobreza voluntária, pela penitência, pelos sacrifícios, sai cá para fora, através de todos aqueles mármores, de todos aqueles mosaicos, de todo aquele esplendor tumular, o grito desconcertante da alma da Santa: - Não! O nosso mandato no mundo é fazermo-nos semelhantes a Cristo; não a Cristo com arminhos ao ombro, não a Cristo sentado em leito das voluptuosidades - isso não é Cristo - mas a Cristo pregado na cruz. E tudo o que seja uma traição a este mandato, um esquecimento desta missão, que oiçam a voz que clamam daqui, do fundo deste sepulcro, as cinzas da Santa: - Não!" 

Notas:

A Princesa Joana, filha de D. Afonso V e de D. Isabel, nasceu a 6 de Janeiro de 1452, tendo sido baptizada oito dias depois. Nessa altura, foi declarada herdeira do trono. Faleceu em Aveiro, em 12 de Maio, cerca das duas horas da madrugada, e a sua morte causou grande consternação. A notícia espalhou-se tão rapidamente, diz o Calendário Histórico de Aveiro, que, momentos depois, a igreja de Jesus estava apinhada de fiéis.
Em 4 de Abril de 1693, a Princesa Joana foi beatificada e em 1711, no dia 23 de Outubro, os seus restos mortais foram transladados para o túmulo de mármores polícromos, que pode ser apreciado no Museu de Aveiro.
No dia 12 de Abril de 1774, foi criada a Diocese de Aveiro e em 5 de Agosto de 1808, o Bispo de Aveiro, D. António José Cordeiro, considera oficialmente Santa Joana como Protectora de Aveiro.
A Diocese de Aveiro foi extinta em 4 de Setembro de 1882, tendo sido restaurada em 11 de Dezembro de 1938. Em 5 de Janeiro de 1965, o Papa Paulo VI declara oficialmente Santa Joana como Padroeira da Cidade e da Diocese de Aveiro, Beata e à espera da canonização.

...

Reedição para este dia de Santa Joana

Há outros modos de chegar a Fátima...

Fátima começa a muitas léguas de profundidade, 
no mistério de cada coração



"Há outros modos de chegar a Fátima, mas nenhum é tão íntimo como quando se chega a pé. Os peregrinos descobrem nos longos quilómetros de estrada, por atalhos e estradas secundárias, que Fátima começa muito antes de Fátima. Fátima começa numa sede que, de repente, assalta a nossa vida e que a princípio, talvez, nem consigamos bem definir. Numa inquietação que não é por isto ou por aquilo, mas que detetamos, com surpresa, em nós próprios. Num desassossego que nos mói devagarinho e que aparentemente não se justifica, pois à superfície tudo se diria conforme e certo. Fátima começa a muitas léguas de profundidade, no mistério de cada coração."

José Tolentino Mendonca
Expresso, 07-05-2021


Jesus coopera com os seus enviados

Reflexão de Georgino Rocha 
para a Festa da Ascensão do Senhor

As novas línguas, que os discípulos hão-de falar, brotam da escola do amor de doação e da multiplicidade dos seus gestos de serviço, da proximidade de ajuda a quem se pretende evangelizar, da aprendizagem das linguagens, da cultura em que a mensagem cristã se deve encarnar.

A ascensão do Senhor marca o início de uma nova fase, na realização da missão. Jesus passa a estar presente de outra forma, como refere o Evangelho de hoje. Mc 16, 15-20. Uma série de expressões pretendem “dar rosto” a esta realidade. A nuvem – sinal de Deus – indicia o mundo novo em que o crucificado/ressuscitado “entra” definitivamente, a intimidade do Pai de que sempre participa, a proximidade invisível, mas interventiva, junto dos discípulos. A nuvem – sinal do homem que ergue o olhar e quer ver o céu – manifesta uma aspiração fundamental que se vive e realiza no tempo, atesta a tendência humana de cultivar o gosto do que se aprecia, suscita interrogações profundas que exigem respostas adequadas.
Outras expressões são o mandato missionário, as maravilhas que podem realizar os que acreditam, o sentar-se de Jesus à direita do Pai, evidenciado o reconhecimento da excelência do seu novo estatuto, a prontidão dos discípulos em assumirem o encargo apostólico, a garantia dada por Jesus de cooperação incondicional.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Pobreza é tradicional

 “a maior parte dos pobres em Portugal, maiores de 18 anos, trabalha… 
É um número que nos incomoda um pouco”



«É dos maiores flagelos da Humanidade e em Portugal tem uma expressão que causa incómodo. Segundo o estudo «Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos», agora conhecido, cerca de 20% da população portuguesa é pobre e “a maior parte tem atividade laboral”. Como diz o coordenador do estudo, o professor da Universidade dos Açores, Fernando Diogo, em entrevista ao SOLIDARIEDADE, “a maior parte dos pobres em Portugal, maiores de 18 anos, trabalha… É um número que nos incomoda um pouco”.
O estudo promovido e já publicado parcialmente em livro pela Fundação Francisco Manuel dos Santos identifica quatro perfis de pobres em Portugal – reformados, precários, desempregados e trabalhadores –, pessoas que vivem uma “pobreza tradicional”, que passa de geração em geração, e que estão permanentemente à mercê das conjunturas. “É verdade que a pobreza se faz corpo em pessoas concretas, os pobres, mas as razões que a explicam são em grande parte resultado de fatores contextuais”, sustenta o investigador.»

Um soneto para começar a semana

“E por vezes”

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira

Nasceu em 24 de Fevereiro de 1927
Faleceu em 16 de Junho de 1996

domingo, 9 de maio de 2021

Três dias a pedalar pela Grande Rota da Ria de Aveiro

Mais um desafio de Maria José Santana 
ilustrado por Adriano Miranda

Foto de Adriano Miranda 

A reportagem vem no suplemento Fugas do PÚBLICO de ontem. Descrições e fotografias desafiantes. Se eu tivesse pernas para caminhar e pedalar, não hesitaria. Como não tenho, faço o que posso de carro. Permitam-me que sublinhe que das rotas da Ria de Aveiro já  conheço algumas, mas há sempre algo para descobrir. A nossa Ria, afinal, surpreende-nos em cada esquina. Por isso, não percam neste verão, que há de chegar no seu tempo próprio. Aliás, não faltarão ocasiões, mesmo nas outras estações do ano, para abrirmos os pulmões ao ar livre temperado pela maresia, enchendo a alma de belezas sem par. 

Diz a conhecida jornalista a abrir: 

«São mais de 100 quilómetros de percurso a bordejar a laguna, com diferentes paisagens e atractivos para descobrir. Sempre em terreno plano. Só mesmo o vento poderá tornar a aventura um pouco mais exigente, mas não faltam (belíssimos) cais e pontos de descanso para recuperar o fôlego.»

E sublinha:

«Prontos para dar ao pedal? Há um longo percurso pela frente, repartido entre trilhos de terra batida, caminhos agrícolas, estradas urbanas e passadiços. Atravessando seis concelhos – Ílhavo, Aveiro, Vagos, Estarreja, Murtosa e Ovar – e quase sempre com a ria ao alcance da vista, tomará consciência que, por mais que se considere um conhecedor da laguna, ela está sempre pronta para o surpreender. Por mais que já tenha calcorreado as suas margens ou navegado nos seus canais e esteiros, esta grande rota terá, certamente, algo novo para lhe oferecer. Palavra de quem cresceu de frente para um dos seus canais.»

Enão, aqui ficam os meus votos de que não ponham de lado este desafio e ala que se faz tarde.

FM 

Toda a gente sabia

«Há anos que a PJ, o SEF, a PSP e a GNR conhecem situações como a que se vive em Odemira. São simplesmente casos de evidente desastre ecológico, de atentado humanitário e de obscena exploração.

Toda a gente sabia que os estrangeiros, marroquinos, árabes, sudaneses, nepaleses, tailandeses, romenos, indianos e outros, vinham para aqui trabalhar por qualquer preço, em quaisquer circunstâncias, directamente ou através de terceiros países (como a Espanha), de avião, de comboio, de carro, de camião TIR ou de barco.

Toda a gente sabia que havia redes de negreiros e de traficantes de gente que trazem trabalhadores de qualquer parte do mundo por preços colossais na passagem, mas irrisórios no vencimento, ficam-lhes com os passaportes, trabalham sem contrato, sem cláusulas de regresso, sem bilhetes de avião garantidos e só lhes pagam, quando pagam, muito mais tarde ou nos países de origem.»

Ler António Barreto no PÚBLICO 

Na morte adormeci e acordou-me Deus

A morte de um amigo é também a morte de algo em nós. No mais fundo do amor humano existe o desejo de eternidade.
1. As atitudes perante a morte foram e são muito diferentes de pessoa para pessoa, mesmo dentro da mesma época e da mesma cultura, religiosa ou não. No primeiro escrito cristão, é-nos dado a ler: “não queremos, irmãos, que fiqueis na ignorância a respeito dos que morreram, para não andardes tristes como os outros, que não têm esperança.” [1]
Mesmo quem julga que depois da morte não há mais nada pode não dispensar algum ritual que exprima o amor, o vazio, a saudade, o reconhecimento. A morte de um amigo é também a morte de algo em nós. No mais fundo do amor humano existe o desejo de eternidade: tu não me morrerás!
Os elogios fúnebres perdem-se, muitas vezes, a destacar o legado deixado por quem partiu. A obra passa a ser mais importante do que o seu autor: é esquecer que a grande obra de um ser humano é a de se tornar cada vez mais humano, em todas as suas relações.
Durante a pandemia, sobretudo nos momentos em que era mais difícil acompanhar os rituais da morte – velório, enterro, cremação –, muitas pessoas pediram-me para celebrar, mesmo à distância, a Eucaristia, na qual, por vezes, também não podiam participar. Esses pedidos, da parte de quem os faz, significam que a morte não é a última palavra sobre a existência humana. As orações e as liturgias são obra dos vivos que exprimem um paradoxo: já não podem viver nas formas de contacto e de comunicação com as pessoas que nos deixaram, mas também não aceitam que tudo tenha acabado. A morte é o impensável, mas faz-nos sentir a perda do outro em nós. Sabemos que a linguagem em torno da morte é sempre inadequada.

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