Cardeal Carlo Martini
O bem conhecido jornalista, político e escritor italiano Eugenio Scalfari, fundador do influente La Repubblica, foi ao encontro do cardeal Carlo Martini, antigo arcebispo de Milão e uma das figuras católicas mais escutadas dentro e fora da Igreja, para uma entrevista, acabada de publicar no seu jornal.
Scalfari, cujo último livro é L'uomo che non credeva in Dio (O homem que não acreditava em Deus), disse ao cardeal que não crê em Deus e que o diz "com plena tranquilidade de espírito". E o cardeal: "Eu sei, mas não estou preocupado por causa de si. Por vezes, os não crentes estão mais próximos de nós do que muitos devotos fingidos".
Então, o que é que o preocupa verdadeiramente, quais são, na Igreja, os problemas mais importantes? Resposta: "Antes de mais, a atitude da Igreja para com os divorciados, depois, a nomeação ou a eleição dos bispos, o celibato dos padres, o papel do laicado católico, as relações entre a hierarquia eclesiástica e a política. Parecem-lhe problemas de solução fácil?"
A nossa sociedade está cada vez mais invadida pela indiferença e são o individualismo e a procura exacerbada dos próprios interesses que cavam fundo o abismo entre a fé e a caridade. Talvez ainda se vá uma ou outra vez à missa e se ponha os filhos em contacto com os sacramentos. Mas esquece-se o essencial: a caridade. Ora, "sem caridade, a fé é cega. Sem a caridade, não há esperança nem justiça". Entenda-se: a caridade não é esmola, é atenção ao outro, compreensão e reconhecimento do outro, presença ao outro na sua solidão, "comunhão de espíritos, luta contra a injustiça". O verdadeiro pecado do mundo é a injustiça e a desigualdade, que bradam aos céus. Jesus disse que "o reino de Deus será dos pobres, dos débeis, dos excluídos".
Para Martini, a questão fundamental não está na escassa frequência dos sacramentos, da missa, das vocações, que são "aspectos externos". "A substância é a caridade, a visão do bem comum e da felicidade comum", incluindo a das gerações futuras.
Assim, quando Scalfari cita um escrito recente de Vittorio Messori, no qual o influente intelectual católico distingue entre o clero que se ocupa da salvação das almas e a Igreja institucional, o cardeal faz notar que o Vaticano com a sua Secretaria de Estado e os seus Núncios são o resíduo de "uma fase em que ainda existia o poder temporal e o Papa era sobretudo um soberano; mas, graças a Deus, esse poder acabou e não pode ser restaurado". Quanto à estrutura diplomática vaticana, nem sempre existiu e "poderia no futuro ser fortemente reduzida ou mesmo desmantelada. A tarefa da Igreja é testemunhar a palavra de Deus, o Verbo Encarnado, o mundo dos justos que virá. Tudo o resto é secundário".
É neste contexto que é preciso rever o papel dos fiéis na Igreja. "Demasiado frequentemente é um papel passivo. Houve épocas na Igreja nas quais a participação activa das comunidades cristãs era muito mais intensa". Martini tem insistido na desolação do carreirismo na Igreja. Assim, na sequência desta denúncia, há quem se pergunte se os bispos escolhidos são sempre os melhores. Aliás, uma vez que é o Papa que nomeia os bispos e, entre eles, os cardeais, que, por sua vez, escolherão o seu sucessor, há igualmente quem se interrogue, não sem razão, se não se corre o perigo de certa endogamia.
Martini concorda com Scalfari, quando lhe pergunta se o impulso do Vaticano II não está debilitado. O Concílio "queria que a Igreja se confrontasse com a sociedade moderna e a ciência, mas este confronto foi marginal. Estamos ainda longe de ter enfrentado este problema e quase parece que voltámos o olhar mais para trás do que para a frente".
Mostra-se, pois, favorável a outro Concílio, que considera mesmo "necessário", mas para tratar de "temas específicos e concretos". Seria necessário concretizar o que foi sugerido e até decretado pelo Concílio de Constança: "convocar um Concílio cada vinte ou trinta anos, mas só com um tema ou dois no máximo". Os temas do próximo seriam "a relação da Igreja com os divorciados" e a confissão, "sacramento extraordinariamente importante, mas hoje exangue".
Anselmo Borges